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Alfabetização

Governo aposta em livros didáticos na pré-escola e abre nova frente de debate com educadores

O presidente Jair Bolsonaro, em evento em 17 de abril de 2019. (Foto: Aalan Santos/Arquivo PR)

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Pela primeira vez, o Brasil passará a contar com livros didáticos para alunos da pré-escola. A ação é iniciativa conjunta entre Secretaria de Educação Básica (Seb) do Ministério da Educação (MEC), capitaneada por Ilona Becskehazy, e Secretaria de Alfabetização (Sealf), chefiada por Carlos Nadalim.

A partir de 2022, professores de creches terão livros didáticos e guias de preparação para alfabetização dos alunos. Os estudantes também terão acesso a livros didáticos e uma nova remessa de obras literárias adequadas à sua idade. O edital do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) 2022 leva em conta tanto aspectos preconizados pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) como pela Política Nacional de Alfabetização (PNA). Nas palavras do MEC, há uma relação "harmônica" de complementaridade entre os dois parâmetros.

Assim como se viu durante a divulgação da PNA, no entanto, a nova medida promete debate acalorado. Enquanto a política se baseia em pesquisas científicas que indicam a educação infantil como a melhor etapa para obter habilidades preparatórias para a alfabetização, alguns educadores afirmam que o ciclo não deve ser "escolarizado". A aversão à propostas dessa natureza é tão grande que determinados municípios do país proíbem, por lei, até mesmo a presença de cartazes que remetam ao alfabeto dentro das salas.

"Não se trata de alfabetização formal na pré-escola, não se deve confundir. A preparação não se confunde com a realização da coisa em si. Trata-se de preparar alunos para a alfabetização", afirmou Fabio Gomes, diretor de Políticas de Alfabetização do MEC, em audiência pública realizada em 23 de abril. Ele enfatizou ainda que a própria BNCC preconiza a importância da transição da educação infantil para o ensino fundamental. "Isso é, integração e continuidade dos processos de aprendizagem da criança".

Tirar oportunidade de alunos

A ação, segundo o MEC, encontra amparo em evidências científicas chanceladas pela comunidade internacional e em experiências exitosas. A Unesco, por exemplo, por meio do documento International Standard Classification of Education (ISCED) 2011, entende a educação infantil como etapa preparatória para a entrada no ensino fundamental e, portanto, para a aquisição da alfabetização. É, também, o que preconiza o National Early Literacy Panel, um dos documentos mais bem conceituados internacionalmente no campo da educação infantil.

"Uma etapa pré-escolar só é considerada suficiente quando cumpre a intencionalidade pedagógica, no sentido de apresentar ao aluno o início da literacia e numeracia", afirma Ilona. A intencionalidade de ensino e necessidade de habilidades precursoras da alfabetização é aspecto verificável tanto na PNA como na BNCC.

No Brasil, sabe-se que vários municípios, por conta própria, adotam materiais didáticos (não, necessariamente, em formato livro) na pré-escola. É o caso de Sobral, no Ceará, que, de longe, tem os melhores indicadores do país. A prática também é comum em escolas privadas com bom sucesso pedagógico.

"Se nada disso convencer, temos de deixar claro que é uma política por adesão. Coordenadores pedagógicos que não acreditam no que estamos dizendo, que não se interessam em estudar sobre as evidências amplamente documentadas, pedimos encarecidamente que reflitam", afirma a secretária de Educação Básica.

"Ao decidir ficar fora desse programa, vocês podem estar roubando a oportunidade de seus alunos de terem acesso a materiais que estudantes de escolas privadas têm".

O diretor do MEC afirma ter recebido inúmeras solicitações para que a política fosse implementada. "Com a adesão ao programa, certamente comprovaremos isso", afirmou Fabio Gomes.

Ainda na perspectiva da pasta, orientações que vetam livros didáticos estão equivocadas, "fecham oportunidade de debate" e ferem o direito do aluno a uma educação baseada em evidências científicas.

"Interações e brincadeiras não cabem em uma folha A4"

"Por que um livro didático para a pré-escola?", questionou uma docente durante a audiência pública de apresentação do edital. "Quais indícios levam a crer que devemos ter livros didáticos para as diferentes infâncias do Brasil?".

Essa é a mais notória preocupação entre os educadores que não concordam com a proposta de governo. Eles temem que ela invalide o que preconiza a BNCC, isso é, que o currículo infantil deixe de ter como eixos estruturantes "interação" e "brincadeiras", que crianças passem a ser "obrigadas” a entrar na escolarização de forma precoce e percam direitos de aprendizagem como conviver, brincar, participar, explorar, expressar e conhecer-se. Em resumo, consideram que isso pode prejudicar o desenvolvimento integral da criança.

"Vimos essas duas novas inserções [o livro didático para alunos e o guia do professor] com preocupação, pois não está de acordo com a BNCC, que traz a ideia de campos de experiência com uma aprendizagem não fragmentada", afirma Beatriz Abuchaim, gerente de conhecimento aplicado na Fundação Maria Cecília Souto Vidigal.

"Em uma mesma atividade crianças podem vivenciar diversas áreas do conhecimento. Mas quando se dá destaque para uma área – a alfabetização –, obviamente isso é fragmentar o ensino", diz. "Veremos o efeito da incorporação desses materiais à medida em que estiverem nas escolas. Nosso medo é que crianças fiquem enfileiradas em carteiras e cada uma com seu livro – isso vai tirar muito da autonomia delas".

Carol Velho, mestre em Educação pela Universidade de Brasília (UnB), acredita que a ação do MEC invalidaria a produção acadêmica empenhada ao longo dos últimos vinte anos (entenda, aqui, o que se sabe sobre os últimos 20 anos da pedagogia no Brasil). "O que querem fazer não condiz com nada do que já foi construído para a educação infantil. Compreendemos a infância numa perspectiva em que é incabível o apostilamento, educação infantil não é espaço escolarizante".

A "escolarização" da educação infantil, portanto, influenciaria uma "compreensão equivocada a respeito do papel da escola e papel social da educação infantil", afirma ela. "Crianças têm integração sensorial para aprender, não podemos apenas focar no conhecimento e essa fase não é preparatória para o ensino fundamental".

"Colocar uma criança para fazer atividade de folha em cima da mesa é criminoso. Elas precisam brincar de jogos simbólicos, aprender a subir em árvores, ir com baldes para tanques de areia, brincar de caça ao tesouro, desenvolver autonomia", diz a especialista. "Isso [livros didáticos na pré-escola] é assassinamento de criança".

Para João Batista Araujo e Oliveira, presidente do Instituto Alfa e Beto, doutor em Pesquisa Educacional pela Florida State University, a proposta de ter materiais para pré-escola não é ruim.

Apostar em "livros didáticos" nessa etapa, porém, e nos moldes do PNLD, lhe parece um equívoco. "Especialmente pelo fato de o MEC/FNDE vir tratando do assunto da mesma forma como aborda os livros didáticos para a escola (que não é um primor do ponto de vista pedagógico). Há características específicas de instituições de educação infantil – inclusive no que diz respeito aos materiais. É um caso clássico de 'ideias fora do lugar'", afirma.

O especialista entende que, para que se alcance uma educação infantil efetiva, é necessário contar com materiais diversos, incluindo os impressos. Estes, no entanto, devem ser "pertinentes, ricos, variados e atender a diferentes objetivos". "Querer colocar tudo em um livro do 'estudante' – como o MEC chama as crianças de pré-escola – me parece ideia de quem nunca entrou numa pré-escola e não é do ramo", diz.

Contudo, o presidente do Alfa e Beto, que ajudou a elaborar importantes documentos sobre alfabetização no país, discorda do argumento de educadores de que a pré-escola não seria fase de preparação para a aquisição da leitura e escrita. Quem afirma isso, diz, "desconhece o desenvolvimento infantil e a ciência cognitiva da leitura". "Essas pessoas não deveriam ser autorizadas a militar na área da educação, pois, além de revelar profunda ignorância, cometem crime contra a infância. Só para dar um exemplo: o maior preditor da alfabetização é o conhecimento das letras. Como as crianças vão chegar preparadas para se alfabetizar no 1º ano se não conhecem as letras?".

Ainda para Oliveira, a tentativa, por parte do MEC, de compatibilização da PNA e BNCC, seria um esforço para "tapar o sol com a peneira". "Estão tentando salvar a BNCC, já que não tiveram competência para enfrentá-la e propor algo no lugar. A gestão atual do MEC entrou criticando a base, mas não conseguiu se mobilizar para lidar de forma adequada com a mesma. Portugal se viu diante de situação semelhante e agiu com firmeza, estabelecendo 'metas' que foram feitas da forma correta – e vem se dando muito bem", diz.

"As ideias do PNA parecem razoáveis para a pré-escola – já as propostas da BNCC para a educação infantil, na minha opinião, constituem o capítulo mais lamentável daquele documento. Já tive oportunidade de analisar e escrever sobre isso no meu trabalho 'Fraturas na Base'. Por falar nisso, a BNCC da educação infantil só usa a palavra 'letra' uma vez", afirma.

Intencionalidade educativa

Frente à preocupação de especialistas cujo entendimento é o de que a proposta do governo anularia o que preconiza a BNCC – desenvolvimento integral da criança através de atividades sensoriais, motoras, sociais –, Kátia Simone Benedetti, professora da rede municipal de Itatiba, em São Paulo, lembra que os diferentes fatores não são excludentes.

"De maneira alguma a proposta é preterir o brincar, fazer com que a criança na educação infantil fique sentada, escrevendo, aprendendo o alfabeto, decorando tabuada. Há especialistas que querem dar a entender que é um adestramento das crianças indefesas", explica.

É preciso levar em conta a relação de mão dupla entre intenção e objetivo de aprendizagem. O que deveria pautar a escolha das atividades pedagógicas, além da necessidade legítima e imprescindível de se desenvolver as chamadas habilidades não cognitivas, seria a intencionalidade educativa – quesito amparado pela própria BNCC –, focando em habilidades cognitivas.

"Nossa intenção é abordar o lúdico. Ter um livro, evidentemente, não anula isso", volta a lembrar Fábio Gomes, do MEC. "Enquanto a BNCC impõe a necessidade de se trabalhar com campos de experiências, nada impede que esses campos sejam trabalhados com o auxílio de um livro didático, estamos pensando nele como uma ferramenta pedagógica dentre as diversas que podem ser utilizadas pelo professor. Tudo na educação infantil deve continuar girando em torno das brincadeiras e da interação, com os direitos de aprendizagem e campos de experiência."

Kátia afirma que o objetivo não deve ser apenas desenvolver o lúdico, pois a educação, mesmo e sobretudo nessa fase da infância, tem de ter intencionalidade, dentro dos eixos de desenvolvimento infantil. "Tem, sim, que ter um rumo. Não estamos falando de uma criança que está brincando na rua, ela está na escola, tem que ter progressão de conteúdos", diz.

De acordo com a especialista, é preciso aproveitar essa janela de desenvolvimento para orientar o crescimento integral da criança, pensando especialmente, e não exclusivamente, no fator cognitivo. "Para ter aprendizagem, a criança tem que adquirir conhecimentos e consolidá-los, de maneira que tenha condições de ampliar a aprendizagem, mas isso não acontece hoje".

"A palavra 'lúdico' é um mantra que constitui parte do atraso mental que impede a educação brasileira de avançar. Na BNCC a palavra brincar vira direito e substantivo. Brincar é um aspecto do desenvolvimento humano, a forma privilegiada da criança aprender.  A criança aprende o mundo brincando – tudo é estímulo para brincar. Não existe outra forma da criança se desenvolver. Livros devem ser parte das rotinas da criança desde o berço. A primeira coisa que uma criança faz com um livro é coloca-lo na boca – da mesma forma que o faz com qualquer objeto, pois ela começa aprendendo pelos reflexos e sentidos. Isso é aprender? É brincar? Faz diferença o nome usado?  Materiais para brincar de ler, escrever, desenhar, colorir, recortar, colar, pintar, bem como outros materiais para desenvolver a atenção e memória como quebra-cabeças e tantos outros fazem parte do instrumental necessário para promover o desenvolvimento infantil, conhecer o mundo das letras, dos números, das formas, das cores, das tessituras etc", defende João Batista.

Luiz Carlos Faria da Silva, professor no Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e que integrou o Grupo de Estudos da Academia Brasileira de Ciências (ABC) sobre Aprendizagem Infantil, é taxativo: "embora não corrobore com a gestão de governo, avalio como correta a nova medida".

"Crianças em idade pré-escolar que vão às escolas privadas contam com material didático, amplo e diversificado, como apoio ao aprendizado. Por que, então, crianças de escolas públicas não haveriam de contar com o mesmo recurso?", questiona.

Silva ressalta que, do ponto de vista técnico-científico, as últimas descobertas da neurociência e da psicologia cognitiva indicam que o fator isolado de maior capacidade para explicar um desempenho positivo na aprendizagem de leitura está relacionado com a memória fonológica, o processamento fonológico e conhecimento do princípio alfabético.

"Se você tem um material didático que favorece o desenvolvimento linguístico das crianças, e que está alinhado com o estado da arte, a medida está plenamente correta", afirma. "É óbvio que, na primeira fase da educação infantil, a ênfase deve ser no cuidado. Ênfase. Não digo que deve ser exclusiva. A partir dos quatro anos, deve-se começar a assistir a criança para mirar no desenvolvimento das habilidades cognitivas e capacidades linguísticas, que serão requeridas para que o aluno tenha maior probabilidade de sucesso a partir dos seis anos".

Nobel de Economia: medida combate à pobreza e desigualdade

Nos últimos anos, a ideia de se investir em boas políticas de educação infantil que prezam o desenvolvimento cognitivo e não cognitivo das crianças ganhou muita notoriedade. Em especial, o economista James Heckman, laureado com o Nobel de Ciências Econômicas em 2000, constatou isso.

Por meio de estudos e utilizando dados de longo prazo, Heckman comparou o desempenho cognitivo e não cognitivo entre crianças que seguiram programas de educação pré-escolar similares ao do MEC com crianças que não contaram com medidas dessa natureza.

O veredito: investimentos de qualidade na formação de habilidades cognitivas e não cognitivas na pré-escola têm contribuição crucial no combate à desigualdade e pobreza. "Programas de educação infantil de alta qualidade têm capacidade de reduzir o gap existente entre crianças que nascem em famílias abastadas – e passam sua infância em ambientes de estimulação intensa e diversificada – e crianças que não têm essas condições favoráveis", afirma Silva.

"Quando adultas, essas pessoas tendem e demandar menos serviços do Estado, têm menos chance de se envolver com crime, com drogas, menor chance de cometer suicídio, melhor perfil de saúde mental e física. Existem vários benefícios sociais, econômicos e políticos associados a um melhor investimento nessa fase inicial", explica Luiz da Silva. "É importante investir em educação infantil escolarizada, evidências mostram que cada unidade monetária investida traz altas taxas de retorno".

É conhecido entre os pesquisadores do campo da neurociência, além disso, o fato de que crianças menos favorecidas socioeconomicamente necessitam de maior incentivo para a aquisição de habilidades cognitivas. Por isso a importância do ensino explícito.

Desafio

O governo já previa o desafio frente ao vácuo editorial existente para essa faixa etária educacional. Para as editoras, por outro lado, uma das maiores dificuldades é o pouco tempo para a elaboração dos materiais. Até setembro deste ano, conteúdos devem ser apresentados ao FNDE.

Os materiais devem passar por criterioso processo de avaliação, tanto por parte do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) como da Secretaria de Educação Básica do MEC, além de uma equipe técnica de especialistas - da qual, inclusive, podem participar docentes externos à pasta, conforme inscrição prévia.

"Há 20 anos, as editoras estão habituadas a desenvolver materiais didáticos com abordagens inteiramente distintas do que prevê o MEC, é algo que está fora de seu horizonte de conhecimento", afirma Kátia Benedetti.

Questionado sobre como avalia o tempo fornecido pelo MEC para a elaboração, Oliveira diz considerar "um crime". "Além do que, esses materiais devem valer por quatro anos. Ao se fazer algo pela primeira vez, dar um prazo tão curto é muito suspeito – não consigo entender quais motivações estão por trás disso. O mais grave é o processo – ao invés de partir de um entendimento adequado do desenvolvimento infantil e conversar com quem entende e tem experiência, o MEC quis salvar a BNCC e se apoiou na tradição do PNLD – que nada tem a ver com educação infantil", afirma.

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