Desde que surgiram os primeiros casos de coronavírus, governos de todo o mundo recorreram a medidas drásticas para conter as contaminações. Tendo como base a experiência da pandemia da gripe H1N1, na qual crianças e idosos eram os principais grupos de risco, uma dessas medidas foi a suspensão temporária das aulas presenciais. De acordo com dados da Organização Mundial de Saúde, aproximadamente 1,5 bilhão de estudantes em todo o planeta chegaram a ficar sem aulas presenciais.
Com o surgimento de estudos científicos que concluíram que crianças são menos propensas a contrair a Covid-19 e oferecem menor capacidade de transmissão do vírus para a comunidade em geral, diversos países passaram a retomar as aulas presenciais com diferentes medidas de segurança, que levaram a resultados positivos. A maioria, porém, foi capaz de evitar surtos significativos que levariam a um novo fechamento das escolas.
Apesar de evidências científicas de que crianças representam menos de 10% dos casos, têm baixo número de internações e mortalidade de até 0,3%, no Brasil as aulas permanecem suspensas na grande maioria das escolas há quase nove meses.
Preocupados com as consequências do fechamento das escolas relacionadas aos aspectos físico, mental e social das crianças (sobretudo aquelas matriculadas em escolas públicas), um grupo criado por pediatras lançou, em 1º de dezembro, a campanha “Lugar de Criança é na Escola”. O objetivo da iniciativa é mobilizar a sociedade e o poder público para o retorno seguro das escolas públicas no início de 2021.
A Gazeta do Povo conversou com o pediatra Rubens Cat, que é professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), trabalha no Hospital de Clínicas da UFPR e um dos líderes do grupo, para saber mais sobre a iniciativa.
Quais são os principais objetivos da campanha “Lugar de Criança é na Escola”?
Rubens Cat: Queremos devolver aos pais o direito de deixar seus filhos em locais seguros e aos professores e demais profissionais de educação o direito de terem segurança em seu trabalho.
O que nos tocou nesse momento prolongado de fechamento é que crianças de escolas particulares vão ter o benefício do retorno às aulas antes das crianças de escolas públicas, não se respeitando o princípio básico e elementar da isonomia. Vários pediatras estão lançando em todo o país diferentes campanhas, trazendo somente informações com comprovações científicas de que escolas podem e devem reabrir com segurança. Nosso manifesto ou campanha tem como informação primordial que escolas com protocolos de segurança são locais seguros a todos os que nelas estudam ou trabalham.
O que se cobra para a volta às aulas são os protocolos de segurança. As escolas particulares têm condições de colocar em prática essas medidas, como diminuir o número de alunos por sala, manter o ambiente o mais arejado possível, manter atividades em áreas externa, garantir máscaras em crianças acima de 5 anos e álcool gel. Mas há regiões do Brasil em que não há água encanada, tratamento de esgoto, nenhuma condição. Nosso movimento consiste em uma mobilização para cobrar da sociedade e do poder público que nesses próximos meses a gente crie condições para que no início do calendário escolar, em fevereiro de 2021, as escolas públicas sejam reabertas.
Se não houver essa mobilização, no ano que vem as escolas não vão voltar e vamos perder também o calendário de 2021. São perdas e danos irreparáveis para essas crianças.
Quando falamos em “volta às aulas para as crianças”, qual faixa etária pode ser considerada?
Rubens Cat: É considerado criança todo ser humano abaixo de 18 anos. Se analisar crianças abaixo de 10 anos, é muito mais seguro – elas apresentam menos contaminações, formas mais leves da doença e poder de transmissão menor. Se tiver que escolher entre abrir escolas até 10 anos ou entre 10 e 18, abaixo de 10 anos é mais seguro.
Mas isso não quer dizer que o movimento é só para abrir creches e escolas primárias. É para a volta às aulas em todo o ensino para crianças e adolescentes. Com os protocolos de segurança, a gente consegue proteger todo mundo que convive com crianças.
Como será feita essa mobilização no sentido de pressionar o poder público em suas diferentes esferas para garantir a segurança das escolas?
Rubens Cat: Nesse grupo que formamos não há só pediatras, têm também pessoas com articulação política. Nosso objetivo é sensibilizar a população que a educação pública no país está totalmente sucateada, não tem condições de segurança em grande parte das escolas. A partir daí, pensamos num manifesto assinado pela educação pública no Brasil com identificação de todos que concordam com essa causa. Também estamos conversando com pessoas ligadas à política que tenham afinidade com a educação. Essas pessoas estão apoiando o movimento e têm acesso às câmaras de vereadores, deputados e ao Congresso.
Como exemplo, nesta semana a Assembleia Legislativa de Santa Catarina aprovou um projeto de lei que tornou a educação uma atividade essencial. Isso significa que, em caso de uma nova pandemia, as escolas serão iguais aos hospitais, serão atividades essenciais e não irão fechar. Queremos tentar fazer isso a nível federal. Temos contatos com deputados federais que brigam pelo ensino público e são canais para que, por meio de lei, a educação seja considerada essencial e não possa fechar por qualquer motivo. Isso seria um grande avanço.
Quais os critérios que apontam que uma escola está segura para receber os alunos a partir do início de 2021?
Rubens Cat: Basicamente, para dar o carimbo de que a escola é segura para a volta às aulas, é preciso viabilizar máscaras para todos os que estão na escola (exceto crianças abaixo de 5 anos); protetor facial (face shield) para os profissionais de educação; álcool gel; água para lavar as mãos; e criar espaços para que haja espaçamento entre um metro e um metro e meio entre as pessoas. Há escolas que não têm estrutura física com condições de ter várias áreas abertas, mas precisam ter o “carimbo” das outros medidas de segurança.
É preciso também providenciar um local para que crianças que apresentem sintomas sejam isoladas até que chegue a assistência médica e ter protocolos para os casos em que uma criança fique doente. Nesses casos, fecha a escola ou só a sala daquela criança?
Essas medidas e protocolos são viáveis de serem efetivados. Dependem muito mais de boa vontade do que grandes volumes de dinheiro. É um direito que toda criança tem e todos os profissionais também, de estar e trabalhar em um local seguro. O problema não é dinheiro, o problema é vontade de fazer.
Crianças pegam menos e transmitem menos a Covid-19. Porém, há uma grande preocupação quanto à contaminação de professores e demais funcionários das escolas, especialmente aqueles que integram grupos de risco. Como convencer os profissionais de educação de que o retorno é seguro?
Rubens Cat: Não vejo professores com má vontade de retornar às aulas presenciais, vejo profissionais de educação inseguros para trabalhar. E nós daremos segurança para o professor passando para ele informações científicas de qualidade. Hoje existem muitas fake news, com os “especialistas” de internet e de mídias sociais.
Minha preocupação é que as pessoas precisam ter informações cientificamente corretas e passadas por profissionais competentes da área de saúde.
Um estudo americano com 57 mil profissionais da área de educação, em que metade trabalhou de forma presencial e a outra metade de forma remota, mostrou que não houve diferença de contaminações entre professores que trabalharam remota e presencialmente.
Outro trabalho, publicado nesta semana, concluiu que escolas abertas não aumentam o número de casos e escolas fechadas não reduzem o número de casos. Isso quer dizer que a retomada das aulas não muda em nada o número de casos, desde que haja protocolos de segurança.
Outro estudo escocês com mais de 300 mil trabalhadores da área da saúde evidenciou que o convívio com crianças em casa pode ter ação protetora contra formas graves da Covid-19, em seus pais e irmãos. Este benefício pode ser extrapolado aos profissionais que trabalham com as crianças nas escolas.
O queremos dizer para esses profissionais é que trabalhar na escola não oferece maiores risco do que trabalhar em outras atividades. Nosso objetivo é convencê-los de que escolas com protocolos de segurança são locais seguros para se trabalhar.
Quando as pessoas vão em um ambiente médico, elas vão tranquilas porque os profissionais de saúde estão se protegendo, estão usando máscaras, lavando mais as mãos, tem espaçamento. Queremos estar juntos com os professores para tentar corrigir essa injustiça que é a qualidade das instalações físicas das escolas e que, ao trabalhar com crianças eles estarão seguras, o risco não será maior.
Há muitas famílias de alunos, tanto de escolas públicas quanto particulares, que têm receio de enviar seus filhos às escolas. Como mostrar para essas famílias de que é seguro o retorno às aulas?
Rubens Cat: É muito comum que as pessoas pensem: “Meu filho vai para a escola e pode trazer o vírus pra mim. Eu sou hipertenso, diabético, obeso, tenho cardiopatia, sou de idade”. Mas o vírus não sai da escola, ele entra na escola. Quando uma criança é contaminada, em 80 a 85% das vezes ela pegou o vírus em casa, por um adulto. Quando você analisa crianças acima de 10 anos essa faixa diminui porque ela está mais exposta.
Se alguém da família se contaminar, provavelmente não foi a criança que trouxe o vírus pra casa. Na grande maioria das vezes quem contaminou foi um adulto da casa. Então a escola é um ambiente muito mais protegido do que muitas casas.
Sabemos das condições precárias de muitas escolas públicas brasileiras. Nesses casos, a habitação de várias crianças dessas escolas também pode não ter esse direito à higiene garantido. Há estudos que mostram que a chance de a criança se contaminar em casa é três vezes maior do que na escola. Se mando meu filho para a escola, estou mandando para um local seguro.
As famílias muitas vezes não têm alternativas e estão deixando seus filhos sozinhos em casa, ou em creches clandestinas, ou deixando crianças de 10 anos cuidando de crianças de 3. Para essas famílias, as escolas – ainda que com todas as carências – é um ambiente mais seguro.
Muitas crianças estão com alterações na saúde mental, depressão, ansiedade, transtornos pós-traumáticos estão sendo expostas à violência, a agressões físicas e sexuais. A gravidez em adolescentes aumentou na pandemia, assim como o uso de drogas e a evasão escolar.
Temos que garantir aos pais que estamos brigando por um direito que eles têm, que é deixar seus filhos em escolas com segurança. E também é um direito dos profissionais que lá trabalham ter essa segurança.
Queremos que as crianças voltem às aulas não para aprender português, inglês, matemática, mas para socializar, ver os amigos. Vemos vídeos de crianças voltando às escolas, vemos a expressão de alegria nos olhos e a alegria dos pais também. O sucesso dessa campanha é sensibilizar os professores e outros profissionais de educação e, com a ajuda deles, também mobilizar os pais. Se eu for conversar com os pais, o impacto vai ser um, mas se os profissionais de educação forem junto falar à comunidade, o poder de sensibilização vai ser muito maior.
Como tem sido a experiência em outros países quanto à volta às aulas?
Rubens Cat: Se você pegar países que estão abertos, como Alemanha, França, Bélgica, Dinamarca, Holanda, Noruega, todos abriram as escolas com protocolos de segurança. Não houve nenhum surto que surgiu na escola. Já Israel, que é muito usado por quem prega a não reabertura, abriu sem distanciamento, sem nenhum protocolo de segurança e sem obrigatoriedade do uso de máscaras. Em todos os países que abriram com os protocolos, o resultado foi fantástico. A Europa é um continente que valoriza muito a educação. Agora, com a segunda onda, as escolas não foram fechadas.
O prefeito de Nova York decretou que na segunda-feira, 7 de dezembro, todas as escolas serão reabertas. Os Estados Unidos estão no caos, Nova York está no caos – eles estão tendo 200 mil novos casos por dia. Mas vão abrir as escolas porque se convenceram pelos bons resultados dos países europeus. A partir do momento em que Nova York está abrindo, isso vai ser um formador de opinião. Essa informação para nós é muito importante.
Aqui no Brasil, temos que abrir as escolas sem expectativa de vacina, porque nenhuma criança será vacinada no Brasil em 2021. Elas não fazem parte dos estudos, poucos deles usaram crianças abaixo de 18 anos. E como elas têm o menor risco de contrair e, se contrair, a grande maioria vai ter uma evolução muito boa caso não haja comorbidades e fatores de risco, acho correto que elas não sejam vacinadas em 2021 pois existem gruposde maior risco.
Não temos a utopia de achar que em dois meses vamos conseguir corrigir defeitos estruturais das escolas. Mas o ideal é inimigo do bom. Não precisamos esperar condições ideais. Se houver condições mínimas, podemos começar. Se 50% das crianças voltarem às escolas, com o sucesso dessa primeira leva, as outras 50% que estão com receio vão ter segurança para voltar.
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