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Doutor pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o microbiólogo brasileiro Bruno Martorelli Di Genova se mudou há quase quatro anos para Madison, capital do estado de Wisconsin, nos Estados Unidos. Como pesquisador associado da Universidade de Wisconsin, ele participou de um estudo decisivo para explicar por que o parasita Toxoplasma Gondii, causador da toxoplasmose, precisa se instalar no intestino de gatos para se reproduzir. Bruno Martorelli não pretende voltar ao Brasil.
“Em 2015, eu e um outro colega da Unifesp decidimos que não havia mais como ficar no país. Estava claro que os recursos para pesquisa iam cair, o que de fato aconteceu depois. Quando eu vim para os Estados Unidos, tinha em mente que seria sem retorno”, explica. Martorelli lembra que 25% dos brasileiros com doutorado, e 35% dos que têm mestrado, estão desempregados – o percentual foi levantado em 2014 pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações.
O microbiólogo estava terminando o mestrado quando percebeu que corria o sério risco de ficar sem trabalho. “Nunca fiz uma única entrevista de emprego no Brasil. A indústria não se interessa por nós, somos considerados profissionais caros. Você passa anos da sua vida numa faculdade e não tem nenhuma opção de trabalho. É muito frustrante”.
Já Dayson Friaça Moreira tentou voltar ao Brasil. Ele cursou Ciências Biológicas na Universidade Estadual Paulista (Unesp) e mestrado e doutorado no Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP). Hoje vive na Califórnia, onde trabalha desenvolvendo técnicas de imunoterapia para tumores, especialmente na próstata, na cabeça e no pescoço. Seu empregador é o Beckman Research Institute.
“Em 2015, quando tinha terminado parte do meu trabalho aqui nos Estados Unidos, eu até entrei em contato com pesquisadores na Universidade de São Paulo (USP) e na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)”, afirma. Diante do cenário político e econômico e da possível falta de recursos para pesquisas, mudou de ideia. “Achei melhor ficar por aqui e aceitar a promoção que o meu chefe dos Estados Unidos tinha me proposto para me manter aqui”.
Dinheiro do bolso
Bruno Martorelli e Dayson Friaça Moreira não estão sozinhos nessa decisão. Não existem números confiáveis a respeito da evasão de pesquisadores brasileiros em busca de melhores oportunidades no exterior, mas os casos se multiplicam. Suzana Herculano-Houzel, uma das mais conhecidas neurocientistas do mundo, tentou de tudo para permanecer no país. Desde 2004, ela era chefe do Laboratório de Neuroanatomia Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Em 2015, ela e o físico Bruno Mota alcançaram um feito raro: um artigo publicado na revista Science, assinado exclusivamente por brasileiros. O estudo explicava a origem das dobras do córtex cerebral, a parte externa do cérebro. Naquele momento, a pesquisadora vinha realizando iniciativas de financiamento coletivo para manter o laboratório em pé. Chegou a tirar dinheiro do próprio bolso.
“Assim que meu artigo com o Bruno Mota sobre como e quanto o córtex cerebral se dobra saiu na revista Science, a Universidade Vanderbilt, onde eu já mantinha uma colaboração científica havia 10 anos, se interessou em me atrair para seus quadros com uma posição criada especialmente para mim, um ‘opportunity hire’. O processo de entrevistas e visitas foi rápido, e em fevereiro eu recebi oficialmente uma oferta irrecusável”, conta. “Como a essa altura fazer ciência no Brasil já era claramente inviável e os únicos sinais eram de que a decadência só se acentuaria dali em diante, aceitar a proposta de vir para os Estados Unidos foi uma decisão facílima”.
Neste momento, ela dá aulas e desenvolve pesquisas na instituição americana, instalada na cidade de Nashville. Por lá, a realidade é diferente. “Além do apoio financeiro médio por projeto ser cerca de duas ordens de grandeza maior nos Estados Unidos do que no Brasil, mesmo as universidades estaduais aqui (a Vanderbilt é privada) entendem que é preciso oferecer infraestrutura e administração de qualidade, e ágeis, para que o pesquisador possa fazer seu trabalho. Trabalhar aqui é um prazer”, diz Suzana.
“Além disso, aqui a cultura entre cientistas é de coleguismo e incentivo; os feitos dos nossos colegas são celebrados e nos dão orgulho. A cultura na academia brasileira é em geral muito mesquinha e considera que o sucesso de um é uma atestação do fracasso de todos os outros”.
Problemas estruturais
Bruno Martorelli cita outras três questões que ajudam a explicar a fuga de cérebros. “As pesquisas acontecem somente em universidades públicas, que acabam servindo como moeda de troca de política pública. Dependendo do candidato eleito, os investimentos podem cair”, afirma. Além disso, não existe uma indústria voltada para a produção acadêmica, de forma que equipamentos, peças de reposição e reagentes são adquiridos no exterior. “Quando o dólar e o euro sobem muito, muitos laboratórios simplesmente não conseguem funcionar. Precisamos de uma indústria nacional de equipamentos de suporte à ciência”.
“Aqui, se eu comprar um reagente, ele vai estar na minha mão em um ou dois dias ou no máximo em uma semana. No Brasil, o mesmo reagente pode demorar mais de um mês para chegar. Às vezes, fica preso na alfândega por vários meses e, quando chega na sua mão, já está estragado”, aponta Dayson Friaça Moreira. “Aqui eu posso mandar uma célula para a Europa ou Israel que no outro dia ela estará na mão do pesquisador de lá. Se eu mandar para o Brasil, na maioria das vezes fica retido na alfândega. Se for liberado, as células já estão mortas”.
Além disso, segundo o pesquisador, os laboratórios americanos são geridos por profissionais especializados. “Aqui é tudo muito regulado e temos muito mais pessoal para ajudar com a administração. Têm gerentes que controlam as compras e fazem todo o controle financeiro do laboratório. E o dinheiro da pesquisa vai para a instituição, e não para uma conta aberta pelo pesquisador que tem que gerenciar e fazer a prestação de contas de tudo que se compra, o que reduz muito a produtividade do pesquisador”. A falta de confiança no financiamento, diz Dayson Moreira, inviabiliza o trabalho. “A maioria dos meus colegas estão saindo do Brasil porque não conseguem manter o laboratório aberto”.
Desconfiança geral
Para Bruno Martorelli, outra explicação impulsiona as demais. “No Brasil, temos uma grande parcela da população que não acredita que financiamento em ciência seja algo positivo. A opinião pública do Brasil tende a desconfiar da ciência”. Dayson Friaça Moreira concorda. “Nos Estados Unidos, o cientista é muito valorizado e respeitado, o que em geral não acontece no Brasil. Quando estava fazendo meu doutorado no Brasil, tive que ouvir muito a frase ‘você só estuda, não trabalha’”.
Suzana Herculano-Houzel aponta também questões estruturais das instituições de ensino superior. “As universidades precisam de agilidade na contratação, flexibilidade na remuneração para incentivar desempenho, suporte administrativo e infraestrutural”, avalia. A isonomia universitária, que iguala professores independentemente do desempenho e da relevância de suas pesquisas, engessa a estrutura e não permite que áreas mais produtivas sejam valorizadas com investimentos.
A neurocientista vai mais longe: “É preciso mudar a mentalidade do público e sobretudo do governo. É preciso entendimento pelo Executivo e Legislativo de que a ciência é um investimento de longo termo, e que começa com investimento em educação. Campanhas públicas de valorização da ciência e dos cientistas também são necessárias, para acabar com a lenda de que ciência é luxo”.
Preparação adequada
Além das questões que dificultam a permanência de pesquisadores no Brasil, o fato de eles serem tão solicitados no exterior indica que as universidades, especialmente as públicas, cumprem seu papel de formação. “Eu tenho um treinamento fantástico, acredito que tudo o que eu aprendi lá é completamente relevante, tive excelentes supervisores. Muitas pessoas do laboratório em que eu trabalhava estão nos Estados Unidos hoje”, afirma Bruno Martorelli.
“O brasileiro é tão ou mais preparado que qualquer pesquisador norte-americano”. Ou seja: com algumas mudanças estruturais, seria possível aproveitar no Brasil esses pesquisadores, que são bem formados no ensino superior nacional. “Temos que manter a esperança”, diz Dayson Moreira, “se as coisas melhorarem, eu quero muito voltar para meu país”.