Se a ação judicial de estudantes contra a Universidade de Harvard, por supostamente beneficiar negros e latinos em detrimento de estudantes americanos de origem asiática, nos ensina algo, deveria ser que existem mais jovens brilhantes e habilidosos nos Estados Unidos interessados em uma educação de alto nível do que assentos para acomodá-los. Lugares como Harvard e outras universidades de elite selecionam estudantes de uma base com candidatos muito bem qualificados capazes de dar conta dos trabalhos acadêmicos, contribuir para a vida no campus e realizar grandes coisas depois de formados.
A ex-presidente de Harvard, Drew Faust, disse certa vez que instituição poderia preencher duas vezes o número de vagas com alunos que foram os primeiros de suas turmas no ensino médio. E como parte de sua defesa no que ficou sendo conhecido como “o caso da ação afirmativa”, a universidade disse que também poderia preencher praticamente duas vezes a sua quantidade de vagas anuais – aproximadamente duas mil – com estudantes que tiraram nota máxima em matemática no SAT, o Scholastic Assessment Test (uma espécie de Enem nos EUA).
Como especialista em admissões nas universidades, vejo uma solução simples para esse desafio de seleção que pode não só salvaguardar o controle das universidades sobre como elas selecionam seus estudantes, como também poupar-lhes muito tempo e dinheiro. Como sugiro em meu livro The Diversity Bargain And Other Dilemmas of Race, Admissions, and Meritocracy at Elite Universities (“A barganha da diversidade e outros dilemas de raça, admissão e meritocracia em universidades de elite”, em tradução livre), as universidades deveriam tentar selecionar seus alunos através de sorteios.
O professor de Ciências Políticas Peter Stone afirma que quando há mais candidatos do que vagas e não há nenhuma maneira de distinguir quem merece mais, um sorteio se torna a maneira mais justa para escolher candidatos em um processo seletivo. Se algum dia já existiu uma universidade nessa situação, trata-se de Harvard.
O sorteio de admissão que imagino – que envolveria candidatos que atinjam um determinado patamar acadêmico – ajudaria universidades que se deparam com um grande número de candidatos qualificados, como Harvard, a selecionar estudantes de uma maneira mais equitativa. O sorteio iria atingir dois objetivos importantes.
1. Tornar o processo mais justo
A assim chamada “justiça” do processo seletivo de Harvard tem um significado simbólico incrível na sociedade norte-americana. O grupo que está processando Harvard a respeito de seleções com base na raça dos candidatos até mesmo se autodenomina “Estudantes por Seleções Justas”. A coisa mais justa que universidades como Harvard podem fazer é reconhecer que seleções inevitavelmente favorecem aqueles com recursos. De fato, quanto mais seletivas são as universidades, mais privilegiados são os estudantes selecionados.
Um sorteio mandaria uma mensagem clara que o processo seletivo é significativamente baseado na sorte, não no mérito, que é como o processo atual realmente funciona – a questão é que os alunos pensam que ele é baseado exclusivamente no mérito, quando não é. Mesmo as extensas análises feitas pelos melhores economistas, tanto a favor como contra Harvard no caso da ação afirmativa, não conseguem prever os resultados do processo de um em cada quatro candidatos.
Em outras palavras, mesmo quando você constrói um modelo estatístico que inclui tudo, desde as notas de um candidato no SAT até a profissão de seus pais, em que estado vivem e muitos outros fatores, é difícil entender as decisões de admissão. Isso se parece com os resultados de um sorteio.
Além do mais, o atual processo seletivo sugere, para os estudantes que caem nos gostos de Harvard, que eles mereceram seu posto exclusivamente por causa de seus méritos – isto é, não obstante o fato de que também contam a riqueza de seus pais, se seus pais frequentaram ou não a escola e quaisquer vantagens provenientes da escola em que estudaram. Como mostro no meu livro, a maior parte dos alunos de graduação nas universidades da Ivy League pensa que os processos seletivos de suas universidades são justos e que são a melhor maneira de selecionar estudantes.
Mas é bem conhecido que aqueles que entram em instituições como Harvard vêm de famílias mais ricas e mais instruídas do que os adolescentes norte-americanos em geral. Eles também tendem a ser, com mais frequência, brancos ou asiáticos. Então, a não ser que a sociedade acredite que o mérito não é distribuído igualmente entre a população, fingir que a seleção é meritocrática faz parecer que os estudantes de elite são mais merecedores do que aqueles que estão em desvantagem quando, na realidade, o que eles têm são simplesmente mais vantagens.
2. Poupar tempo e dinheiro
Um sorteio economizaria recursos incríveis para as universidades. Por exemplo, em Harvard, um comitê de 40 pessoas assalariadas, responsáveis pela seleção, com dedicação integral, votam juntos a respeito de cada um dos milhares de candidatos.
Mas se alunos qualificados passam a concorrer via sorteio, a universidade pode simplesmente tirar nomes de dentro de um chapéu, por assim dizer, economizando centenas de milhares de dólares em horas de trabalho. Poderia haver economias em outras universidades da mesma forma.
Um sorteio também pouparia tempo e dinheiro dos jovens e de seus pais, e eliminaria muito do estresse pelo qual eles passam ao mergulhar em um processo de seleção cada vez mais competitivo. A busca por uma vaga na universidade levou muitos estudantes do ensino médio a empenhar-se em alcançar um padrão cada vez mais rígido de excelência tanto acadêmica quanto extracurricular. Isso tem feito aumentar o número de jovens com níveis nocivos de estresse e ansiedade.
Eu não estou querendo dizer que o processo de seleção deva ser completamente cancelado. O que digo é que as universidades deveriam refletir cuidadosamente sobre quais qualidades procuram nos estudantes. Uma qualidade razoável seria um nível básico de resultados acadêmicos, de tal forma que um estudante – com o suporte disponível no campus – seria capaz de atingir as expectativas acadêmicas da universidade.
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Para garantir que todos os jovens tenham sua chance, essas expectativas e suportes deveriam contemplar os melhores estudantes das escolas do país inteiro, incluindo as que ficam em comunidades mais necessitadas e com menos recursos. Universidades criteriosas poderiam se comprometer a satisfazer as necessidades educacionais dos melhores estudantes de todas as escolas de ensino médio, independentemente de suas notas no SAT ou de outras medidas que os compare com seus pares de escolas mais ricas e com mais recursos.
Além disso, as universidades poderiam argumentar que certos indivíduos ou grupos gozam de um status especial – filhos de benfeitores abastados, atletas e músicos promissores para os times universitários e para a orquestra. Se esses alunos são tão desejados que as universidades não queiram perder a chance de selecioná-los, eles poderiam ser isentos do sorteio. Meu instinto é o de rejeitar essas categorias especiais, mas elas não impedem que haja um sorteio. De fato, um sorteio combinado com medidas que abarcassem categorias especiais deixaria clara essa condição que alguns candidatos têm, como já é evidenciado no processo de Harvard. Categorias especiais poderiam também ser concedidas para aumentar a chance de grupos com menor representatividade, em vistas da preocupação com a diversidade no campus.
Algumas universidades poderiam se envergonhar diante da ideia de se tornar a primeira a adotar um sorteio para a admissão. Essas universidades deveriam considerar como instituições tais quais Bates e Bowdoin se tornaram as primeiras a não exigirem SAT, muito antes de centenas de outras universidades. Mesmo assim, essas universidades alcançaram maior diversidade e mantiveram estável o seu índice de diplomações.
Por outro lado, se várias universidades mudassem ao mesmo tempo seu sistema para uma seleção por sorteio, elas poderiam desenvolver conjuntamente um mecanismo de correspondência, como o utilizado para alocar os alunos de medicina em seus programas de residência. Inicialmente os estudantes deveriam ser classificados de acordo com sua universidade de preferência e então aqueles que atingissem o mínimo exigido para entrar nessas universidades participariam do sorteio. Após as primeiras escolhas terem sido feitas, sorteios para as segundas escolhas seriam realizados, e assim por diante. Esse sistema também aliviaria o custo que as famílias têm com o alto número de processos que os estudantes realizam. Da mesma forma, diminuiria para as universidades o custo associado à avaliação do crescente número de candidatos, resultado da candidatura dos estudantes a diversas universidades ao mesmo tempo.
O esforço enorme empregado nos processos seletivos das universidades resultou no aumento dos gastos, da ansiedade entre os adolescentes norte-americanos e de percepções injustas de mérito como sendo um domínio exclusivo das elites. Mas essa situação pode ser evitada se as universidades derem passos corajosos em direção à seleção por meio de sorteio.
* Natasha Warikoo é professora associada de Educação na Universidade de Harvard.
Tradução de Giovani Domiciano Formenton.
©2019 The Conversation. Publicado com permissão. Original em inglês.