Ouça este conteúdo
Desde o início do governo Bolsonaro, grande parte da imprensa passou a chamar de “pauta de costumes” o conjunto de projetos e temas que seriam diretamente relacionados ao eleitorado do presidente. Não está claro se o termo foi inventado com o objetivo de tratar dos assuntos de modo pejorativo, desqualificando-os, ou se foi mero reducionismo de linguagem, artifício típico do jornalismo para economizar caracteres. O que se pode afirmar como fato incontestável é que se trata de um termo completamente impreciso e generalizante.
Basta notar que temas bastante distintos, e que interessam a diferentes públicos, têm recebido esse mesmo rótulo, talvez, com o propósito de que a rejeição a um projeto contamine também os outros. Nesse balaio de gatos entram, por exemplo, a flexibilização da posse e porte de armas, o relaxamento das regras e multas de trânsito e a regulamentação da educação domiciliar. Por que, afinal, esses assuntos não podem ser chamados, respectivamente, de “pauta de segurança pública”, “pauta de trânsito” e “pauta de educação”? Se há a necessidade de catalogá-los numa categoria, essas não seriam muito mais naturais?
A desconfiança de que a intenção por trás do termo sempre foi a de prejudicar a imagem dessas pautas junto à opinião pública se deve a uma constatação histórica. Não há nenhum registro de rótulo semelhante usado pela mídia em governos anteriores, em especial naqueles do PT. Ainda que as gestões de Lula e Dilma tivessem uma ligação umbilical e explícita com segmentos da sociedade extremamente ideologizados, em nenhum momento a imprensa chamou de “pauta de costumes” as investidas petistas em influenciar comportamentos sociais, ainda que indiretamente.
Voltemos alguns anos no passado, e adotemos a lógica reducionista atual por um instante, abrindo mão de rigores semânticos, exatamente como os jornais e alguns políticos têm feito hoje. Será que a descriminalização do aborto, a liberação do plantio e uso de maconha, a promoção da agenda LGBT nas escolas e a equiparação da união civil entre homossexuais ao casamento também não caberiam numa hipotética lista chamada de “pauta de costumes”? Penso que sim, aliás, parece-me que se encaixariam com ainda mais facilidade no termo do que a confusa mistura que envolve projetos de trânsito, segurança e educação. Mesmo assim, aqueles itens da agenda petista jamais foram chamados de “pauta de costumes”.
Se a ideia era a de vincular os assuntos ao conservadorismo, o erro da generalização se torna ainda mais explícito, revelando até certa ignorância. O homeschooling, por exemplo, como já exposto de forma aprofundada em outras ocasiões nesse espaço, está longe de ser uma pauta de interesse exclusivo de conservadores. Entre seus defensores estão liberais e esquerdistas com notórias ressalvas ao governo Bolsonaro e até mesmo aos outros itens da “pauta de costumes”.
É fácil encontrar, por exemplo, famílias adeptas e defensoras da educação domiciliar que consideram uma loucura a proposta de dispensar o uso da cadeirinha de segurança para crianças em automóveis, sugestão que ganhou grande repercussão no ano passado. O perfil pacifista e religioso de outras famílias homeschoolers também as faz ver com preocupação o porte de armas liberado, ainda que a posse tenha mais aceitação.
Na verdade, entre as famílias adeptas da educação domiciliar, há todo tipo de costume, exatamente como ocorre em qualquer sociedade. O problema é que essa constatação não interessa aos opositores da modalidade. Para eles, é conveniente que o homeschooling, e todas as famílias que o praticam, continue sendo relacionado com extremismo e fantasias absurdas, como aquela que as apresenta como terraplanistas que mantêm os filhos numa cela de clausura.
É por isso que, para quem odeia a modalidade, quanto mais os homeschoolers se esconderem, melhor, pois quando a verdade vem à tona, com grupos de pais e mães tão diferentes, embora unidos, organizados, formando associações, lutando por direitos e conversando sobre leis com políticos, a ridícula farsa fabricada por quem não quer a lei do homeschooling cai por terra.
Jônatas Dias Lima é jornalista e presidente da Associação de Famílias Educadoras do Distrito Federal (Fameduc-DF). E-mail: jonatasdl@live.com.