Em 2021, o Brasil pretende "virar a página" da história e ser um país educacionalmente desenvolvido. Mas isso só acontecerá, segundo o governo, se todos os municípios alcançarem a nota 6 no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), nos anos finais do ensino fundamental. Ou seja, quando o desempenho médio dos alunos do 5º ano fundamental em português e matemática, associado à taxa de aprovação escolar, alcance no mínimo a nota 6, em uma escala de 1 a 10.
Mas esse nível é o desejado? Para avaliar melhor essa situação, pode ajudar uma comparação distante do contexto escolar, mas que pode fazer sentido: e se você chegasse ao topo de uma montanha e descobrisse que, na verdade, é apenas um falso cume, e há muito mais pela frente? João Batista de Oliveira e Araújo, presidente do Instituto Alfa e Beto, propõe que o Brasil pode se deparar com essa "ilusão" em 2021, por dois principais motivos. 1) Depositar total crédito ao Ideb e não questionar seu método de aferição e 2) estabelecer 6 como a nota ideal a se alcançar.
Essa opinião é defendida por Araújo no documento "Para desatar os nós da educação: uma nova agenda". À Gazeta do Povo, ele comenta sobre o assunto. Confira:
Por que o Brasil vive uma ilusão quando olha para os números do Ideb?
O Ideb não é uma medida estável e segura. Explicá-lo, na verdade, é como perguntar a uma criança qual é o resultado da soma de duas laranjas e três maçãs. Ela poderia dizer que a resposta é cinco frutas. Mas aprendemos na educação primária que não se soma coisas diferentes. Por isso o Ideb, que mistura duas coisas (os índices de reprovação e os resultados das provas) pode transmitir uma ilusão.
Da mesma forma que se mede peso e altura para calcular o índice de massa corporal, a ideia de contemplar mais de uma dimensão em uma medida não é ruim. No entanto, é preciso tratar diferentemente as duas coisas.
Além disso, há maneiras de manipular os resultados. Um município pode melhorar os números, por exemplo, fazendo "promoção automática", ou seja, não reprovando os alunos. Há, também, a possibilidade de os alunos "ruins" estarem abandonando a escola e, dessa forma, reduz-se os números de reprovação. A meu modo de ver, o Ideb pode, sim, ter criado alguma ilusão de progresso maior do que efetivamente aconteceu.
Você acredita que muitos municípios podem fazer "promoção automática em massa" para "maquiar" a nota?
Claro, pode ser que um prefeito ou outro tenha feito isso. Mas como os índices ainda são extremamente elevados, sobretudo no Nordeste, percebe-se que não era a intenção e não houve instrumentos ou incentivos suficientes para se fazer manipulação.
É um lado curioso, eu não acho que houve muita manipulação para aprovação "em massa". Os municípios poderiam ter aprovado muita gente para melhorar a nota no Ideb, mas não fizeram isso, e continuam não fazendo. Há uma crença arraigada de que aprovar é bom. Mas pode-se concluir que o Ideb não teve efeito positivo ou negativo para acabar com a repetência.
O MEC estabeleceu como meta alcançar, em 2021, a nota 6 no Ideb. Segundo a pasta, esse índice "equivale ao nível de qualidade educacional da média dos países desenvolvidos". O que há de errado nisso?
Não há nenhuma comprovação empírica. Quando se compara as notas que o Brasil tem no Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes) em relação a outros países, é visível que estamos muito longe do ideal. Mesmo Sobral, que tem as melhores notas do país. Creio que o MEC estipulou essa meta com base em alguma manipulação estatística, um equívoco. Pressuposto não verificado. Não acho que tenha sido proposital. Foi mais como uma forma de "animar a galera".
Mas essa nota não tem nada a ver com o nível europeu. Estipular essa meta criou uma falsa impressão de que, no ano de 2021, vamos virar a página da história, que seremos um país educacionalmente desenvolvido. É óbvio que a intenção é boa, mas a realidade não se conformou com ela.
Apesar das falhas da apuração do Ideb, é possível dizer que houve progresso? E o indicador consegue detectar isso de forma concreta?
É importante dizer que, sim, houve progresso, de 2007 para 2017, subimos 30 pontos [nos resultados da Prova Brasil, anos iniciais do ensino fundamental]. Mas o resultado disso não parece ser adequado, quando se mistura duas notas dissonantes e não ajuda muito a entender que o progresso das notas é bem menor do que o progresso do Ideb. Caímos em relação às notas, o progresso é muito diferente.
Vou dar outro exemplo: se você subir do 1º degrau para o 4º, progrediu bastante. Mas tem 20 degraus. Outra coisa é estar no 16º degrau e subir 4; neste caso, chegou ao topo. Então, subir do 1º ao 4º é muito mais fácil do que ir do 16º ao 20º. Isso demonstra que é mais fácil melhorar as coisas mais simples do que melhorar as mais difíceis. Não há nenhum demérito nisso, é preciso apenas entender que um salto desse tamanho dificilmente se manterá com a mesma proporção nos próximos anos. Essa curva não é linear.
Além disso, a melhora dos índices ocorreu apenas nos anos iniciais da educação. Mais à frente, do 5º ao 9º ano do ensino fundamental, não ocorreu. Então, só o 5º é pouco. É como se "o doente estivesse melhorando", mas pode ser que ele morra de fraqueza.
E essa "pequena progressão" aconteceu dobrando o gasto, certo? Os recursos do Fundeb ajudaram para essa melhora?
Pelas análises, as causas dessa melhora, possivelmente, não se devem a isso. Há municípios que gastam muito, outros, pouco, e que têm o mesmo desempenho, gente com pouco que faz muito e outros com muito que fazem pouco.
Dessa forma, podemos afirmar que o dinheiro é um ponto importante, mas, sozinho, não explica nada em lugar nenhum.
E quais são os outros fatores envolvidos na melhora?
O Brasil é grande, disforme, as coisas chegam de forma diferente aos 27 estados. Nos últimos 20 anos, houve pouquíssimas “mensagens educacionais” importantes que, uniformemente, foram adotadas no país inteiro.
A acessibilidade à educação pode ter melhorado de uma forma geral. Há também o currículo [a Base Nacional Comum Curricular, BNCC], que está em funcionamento agora, mas, mais do que isso, não houve nenhuma ação educacional significativa. Também não se pode atribuir a melhora às escolas de tempo integral, ao salário dos professores, à formação deles.
No âmbito de um estado ou outro, pode ter sido feito alguma coisa. Mas em lugares como o estado de São Paulo, por exemplo, que abarca muitos municípios, não se pode achar que a secretaria estadual vai ser capaz de influir na rede dela e na rede municipal de forma significativa. Quem infere isso, não entende como funciona o mundo real.
O único caso que realmente teve um avanço consistente é o do Ceará, no qual não houve intervenção. Teve incentivo, mas, na verdade, ninguém sabe ainda porque funcionou, ainda temos dúvidas e temos feito pesquisas para tentar entender. A única coisa que sabemos é que está associado, possivelmente, a um sistema de incentivo.
Então são fatores externos à escola, certo?
Há uma série de variáveis externas que, paralelas à literatura, explicam parte da melhora. Não tem nenhum demérito em afirmar isso. Todo mundo se esforçou para a melhora, muita gente fez muita coisa, mas nós não sabemos a relação direta dessas coisas com os resultados.
As explicações de dentro da escola dificilmente seriam suficientes para provocar um aumento grande. Não houve mudança significativa no material didático, na qualidade dos professores. Dessa forma, passamos a olhar para os fatores externos à escola, e achamos alguns.
Primeiro, aumentou o ano de escolaridade, passou de oito para nove. É possível que esse ano explique parte da melhora, e pode ser que ele aumente mais nas séries iniciais. O nível do IDH do município é outro fator. O Brasil melhorou bastante em relação à escolaridade da mãe, e isso influi bastante nas séries iniciais, e isso também explica parte da melhora.
Não existe uma bala de prata, e não conseguimos observar uma coisa consistente, em lugar nenhum, que explicasse o resultado. Não estamos negando o esforço do estado, mas não conseguimos captar, nos dados estatísticos, uma causalidade entre alguma coisa que se fez e o resultado. Eles tendem a ser mais ou menos aleatórios e mais ou menos dependentes de coisas extraescolares.
Isso sugere que, talvez, seja preciso políticas diferentes para coisas diferentes?
Sim. E isso esbarra em outra situação estranha. Em tese, os professores de séries finais são mais bem preparados do que das séries iniciais. O nível deles é melhor. Seria de se esperar, dessa forma, que eles respondessem melhor a qualquer coisa. Mas, na verdade, não é isso o que os dados dizem. Há “engasgos” aí.
Tivemos avanços e sabemos que muito disso se deve a fatores externos. Temos a convicção de que o país está tentando acertar, mas ele ainda não faz coisas essenciais. Ou seja, ter um currículo sólido, ter professor muito bem formado, ter um sistema de gestão eficiente.
Ficamos buscando explicações em iniciativas avulsas aqui e ali e essas avaliações não são robustas. Realmente, eu diria que estamos melhorando um pouco, muito do que melhora é fator externo e esses fatores são mais ou menos aleatórios. O barco está à deriva, a onda está a favor.
O que acha sobre o "novo Fundeb" e a permanência dele?
Tenho participado de um grupo que se aprofunda nas discussões fora do contexto do andamento. Percebemos que há hegemonia em relação a isso e o grupo da tese do "mais", que afirma que "tem que colocar mais dinheiro, mais disso, disso e aquilo”, deverá ganhar o debate. Assim como deverá ganhar a tese de transformar o que é provisório em algo permanente.
Eu lamento. Acho que é uma perda de oportunidade. Não tenho nada contra mantê-lo, mas não acho que seja essencial. Outra dificuldade é que o MEC não sabe dialogar, não tem preparo para lidar com as pessoas. Se antipatizou muito em todo lugar e, ainda que apresente ideias boas, dificilmente vai ter aceitação.
*Nota do editor: o Ideb foi criado em 2007 para ser a principal ferramenta nacional que mede a qualidade da educação básica do país. Através dele, se estipulam metas a serem alcançadas. O índice é calculado a partir de dois fatores: 1) a taxa de aprovação dos alunos e 2) os resultados dos estudantes em exames aplicados pelo Inep, como a Prova Brasil e o Saeb. A soma desses dois fatores gera um resultado em uma escala de 0 a 10. Cada rede de ensino tem notas e metas diferentes.
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