Pelo menos 70% das secretarias estaduais de Educação do país, além do Distrito Federal, aderiram ao programa do governo federal Tempo de Aprender, iniciativa da Secretaria de Alfabetização do Ministério da Educação (MEC). Por parte das secretarias municipais de Educação, a adesão chegou a 75%. Confira se o seu município faz parte do programa.
A iniciativa, lançada em fevereiro deste ano e voltada à alfabetização formal na pré-escola e no 1º e 2º ano do ensino fundamental, encontrou resistência da parte de representantes da educação. Inicialmente, muitos gestores a rechaçaram e acusaram o MEC de não debater a elaboração do programa com estados e entidades do setor.
Mas, em última instância, a crítica se dirigia ao conteúdo da ação, uma vez que ele decorre da nova Política Nacional de Alfabetização (PNA), cuja abordagem difere do que os governos anteriores promoviam na área da alfabetização. (Para entender melhor, sugerimos que leia esse conteúdo). Sem ressaltar que o programa é de adesão voluntária, secretários também afirmaram que o MEC confrontaria políticas já em andamento nos estados e municípios.
Para muitos especialistas, os indicadores de alfabetização do país - embora sejam, em parte, influenciados por fatores extracurriculares - são resultado, em grande medida, dos programas adotados, que não levaram em conta as evidências científicas mais recentes sobre a aquisição da leitura e escrita.
"O diagnóstico do secretário [Carlos] Nadalim está correto, nós não estamos alfabetizando, 50% dos alunos de escolas públicas brasileiras, no 3º ano fundamental, saem não alfabetizados. Há, sim, um problema sério que precisa ser endereçado", diz Cláudia Costin, diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da FGV, e mentora de 50 secretários municipais de educação. Ela afirma que todos aderiram ao programa e "estão contentes com o que tem sido oferecido pelo governo nessa área".
O número significativo de adesões ao programa poderia, portanto, apontar para dois principais aspectos: em um primeiro momento, que estados e municípios estão interessados em adotar práticas baseadas em descobertas da ciência cognitiva da leitura. E, por outro lado, que o cenário polarizado na educação, ao menos no campo da alfabetização, poderia estar com dias contados - e o governo finalmente teria conseguido "conquistar" estados e municípios para aderir às suas políticas.
Undime e Consed, que representam, respectivamente, secretários municipais e estaduais de educação, foram até mesmo convidados a compor um grupo de trabalho que normatiza as próximas ações do programa.
"A PNA demorou a decolar, talvez até por falta de diálogo maior com entes, mas, hoje, há um certo consenso de que precisamos mudar a forma como alfabetizamos. A ciência já diz isso há bastante tempo. E um diálogo mais aberto, menos agressivo, tornou isso possível. Repito, a falta de diálogo não vinha do Nadalim", afirma a especialista.
"Com isso, ganha o Brasil. Quem sabe já na próxima avaliação de alfabetização teremos resultados que reflitam a qualidade. Política pública não pode ser submetida a jogos e guerras ideológicas. Ela tem que ter abordagem técnica, quanto mais na educação, que é o que constrói o futuro da nação."
Cláudia Costin.
Procurada, a Undime não respondeu às perguntas da reportagem.
"Mentalidade dominante ainda é contrária a qualquer discussão séria sobre alfabetização"
Dar passos no sentido das evidências é fato comemorado por muitos especialistas, embora isso não necessariamente signifique avanços na prática, se a implementação de um novo modelo não for sólida. "O fato de 75% dos municípios aderirem é auspicioso. Mas adesão por si só não alfabetiza ninguém", diz João Batista Araujo e Oliveira, doutor em Educação pela Florida State University e presidente do Instituto Alfa e Beto.
"O sucesso de qualquer reforma em educação, grande ou pequena, se avalia pelo que chega efetivamente à sala de aula e pelos resultados que isso produz. Boas intenções e boas ações são apenas isso, mas não levam a resultados", diz o especialista. "No caso da alfabetização temos dois movimentos necessários. O primeiro é enterrar 40 anos de equívocos – e isso levará tempo. A mentalidade dominante ainda é contrária a qualquer discussão séria sobre alfabetização. O segundo é dispor de estratégias comprovadamente eficazes para levar a alfabetização para as salas de aula".
Ainda para Oliveira, "a estratégia proposta pelo MEC ataca algumas dessas questões. A base conceitual é sólida. Os materiais para capacitar professores são bem feitos. Mas é preciso muito mais – instrumentos concretos para o professor usar". Apenas com todas essas ferramentas alinhadas seria possível mudar o quadro. "Sem isso é pouco provável que haja qualquer resultado concreto. O MEC tem décadas de experiência frustrada em usar modelos de capacitação que comprovadamente não funcionam. Pelo visto não aprendeu com a experiência".
"Ganha a guerra quem chega lá. Não basta ter inimigos para combater ou conquistar aliados. É preciso chegar e remover as razões que levaram à guerra e conviver em períodos de paz. Qualquer mudança envolve um ciclo que inclui o currículo, escolhas pedagógicas corretas, avaliação consistente e instrumentos adequados para uso desse professor que existe. Nossos professores além de formação inadequada, são fruto de uma cultura conceitualmente oposta ao que o MEC está propondo. As inconsistências são gigantescas, e sem instrumentos concretos há pouca chance de avançar apenas com base em conceitos. As propostas do MEC, no meu modo de ver, são insuficientes. No ano passado, o MEC perdeu a chance de inserir a alfabetização no PNLD do ensino fundamental. E tem dificuldade de diálogo com todos – inclusive com quem tem experiência e poderia ajudar".
João Batista Araujo e Oliveira.
O que é o programa Tempo de Aprender
Diferentemente do programa Conta pra Mim, direcionado à preparação (não consolidação) informal, no seio familiar, para a aquisição da leitura e da escrita, Tempo de Aprender foca na alfabetização formal. A ação é orientada pela chamada Política Nacional de Alfabetização (PNA).
Há especialistas que discordam, sobretudo, de iniciar o processo de alfabetização na pré-escola e avaliar fluência de leitura nos alunos, como também propõe a iniciativa. Mas, apesar das críticas, segundo levantamento da pasta, 4.218 secretarias municipais adotaram o programa. Quanto aos estados, das 27 unidades da federação, 19 aderiram.
"Estou muito contente com o número de secretarias de educação que aderiram ao Tempo de Aprender. Com o sucesso do programa, a expectativa é a de que mais adesões sejam feitas nos próximos anos", afirma Carlos Nadalim, secretário de Alfabetização.
Com o objetivo de mudar os indicadores de alfabetização do país, o programa prevê quatro principais ações: 1) fornecer formação continuada a profissionais de educação, com base nas evidências científicas mais recentes e já consolidadas; 2) fornecer recursos pedagógicos, estratégias de ensino, atividades e avaliações formativas para que docentes apliquem em sala; também com base em experiências exitosas mundo afora; 3) fornecer aos profissionais de educação um método de aferição de fluência de leitura oral de alunos e 4), por fim, o governo prestigiará professores quando os alunos obtiverem bom desempenho em alfabetização.
Dados públicos do MEC revelam que um dos cursos do programa Tempo de Aprender é o mais acessado do portal AVAMEC - o que corresponde a 23% de todas as inscrições no site. São mais de 2,7 milhões de acessos e ao menos 271.203 inscrições.
Alfabetização na pré-escola
O programa é alvo de críticas de educadores que divergem quanto aos pilares da iniciativa. Há especialistas, por exemplo, que discordam sobre alfabetizar alunos na pré-escola e nos primeiros anos do ensino fundamental. O MEC ressalta que a ação não se propõe à alfabetizar alunos na pré-escola, mas a ajudar crianças a adquirir os chamados precursores da aquisição da leitura e escrita.
Embora esse seja o caminho apontado pelos achados científicos, alguns educadores afirmam que o ciclo não deve ser "escolarizado". Na prática, deveria haver mais ênfase em ludicidade e brincadeiras que não prezam pelo aprimoramento cognitivo voltado à alfabetização, como prevê a BNCC.
Medir a fluência de leitura dos alunos também é um aspecto apontado por críticos, para os quais mensurar esse ponto não passa de uma "pressão" a mais sobre os estudantes. Eles também interpretam que quem defende e realiza testes de fluência de leitura ignora os diagnósticos de compreensão de texto. É conhecido que fluência pode não significar compreensão, e é por essa razão que Sobral, município cearense considerado ilha de excelência, e outros países que adotaram os testes não desprezam a importância de, mais do que saber se o aluno é capaz de ler rapidamente, sem erros, e com a entonação certa, saber se ele consegue entender o que lê.
Um dos relatórios mais conceituados entre os pesquisadores da área é o divulgado em 2000, do National Reading Panel, antigo órgão norte-americano constituído com objetivo de realizar estudos sobre a eficácia de diferentes abordagens utilizadas para o ensino da leitura e escrita. Após rigorosas análises, foram identificados cinco pilares essenciais para uma alfabetização efetiva, dentre os quais está a fluência. São eles: consciência fonêmica, instrução fônica sistemática, fluência de leitura, o vocabulário e a compreensão de textos.
Outro estudo publicado pela Society for the Scientific Study of Reading (SSSR), em 2001, chegou à conclusão de que um alto número de palavras lidas corretamente por minuto indica uma base robusta de conhecimento de vocabulário e compreensão significativa do texto. "Por outro lado, uma baixa taxa de palavras por minuto (ppm) sugere habilidades ineficientes de reconhecimento de palavras, um vocabulário pobre e habilidades de compreensão de texto com defeito", afirma, por exemplo, o relatório.
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