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A legislação brasileira deve reconhecer o direito natural já existente à educação domiciliar

Artigo de Carlos Eduardo Rangel Xavier discute o direito natural à educação domiciliar
Artigo de Carlos Eduardo Rangel Xavier discute o direito natural à educação domiciliar (Foto: Pixabay)

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A quem pertencem os filhos: aos pais ou ao Estado? A autoridade dos pais sobre os filhos é originária ou derivada? A educação domiciliar deve ser proibida ou permitida?

Muito se tem debatido a respeito da educação domiciliar no Brasil recentemente. Em parte, em razão das medidas de isolamento social decorrentes do enfrentamento da pandemia do novo coronavírus, muito embora o debate tenha se intensificado mesmo antes desses tempos difíceis que estamos experimentando, uma vez que a adesão à prática já vinha crescendo exponencialmente no país. De fato, seguramente o número de famílias educadoras brasileiras hoje está na casa das dezenas de milhares.

A última das três perguntas trata diretamente do debate político acerca do tema, e a forma como é apresentada pode mesmo induzir ao erro. A primeira delas, por sua vez, é absurda, ainda que muitas vezes o debate seja conduzido em seus termos – e ela é absurda porque os filhos, por serem eles mesmos indivíduos dotados de dignidade humana, não podem ser considerados propriedade de outros seres humanos, sejam seus pais, sejam aqueles que compõem a comunidade política (o Estado).

A chave para o debate, portanto, está na segunda das perguntas, que diz respeito à natureza da autoridade dos pais sobre os filhos: seria ela originária, decorrente do vínculo direto da paternidade, ou seria ela derivada, uma espécie de concessão da comunidade política aos genitores?

Quem pensa que a autoridade dos pais sobre os filhos é derivada da comunidade política, uma mera concessão do Estado, poderá admitir que se discuta a conveniência de a mesma comunidade política autorizar, ou não, a prática da educação domiciliar. Ainda que essa premissa filosófica muitas vezes não seja diretamente admitida, ela é percebida em grande parte do debate político que ocorre hoje no Brasil acerca do tema, no contexto de proposições legislativas que tramitam nos três âmbitos da Federação (União, estados e municípios), e mesmo em grande parte do julgamento do Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário 888.815.

Esta, no entanto, não parece ser a melhor maneira de conduzir a questão. Noutro sentido, a consideração do assunto a partir da tradição da lei natural permite que se conclua pelo caráter originário da autoridade dos pais sobre os filhos, o que será demonstrado logo em seguida.

Autoridade derivada: uma hipótese contraintuitiva

Mas, antes disso, pode-se levar a tese anterior ao seu limite, a fim de demonstrar, por redução ao absurdo, quão equivocada deve ser reputada. Se a autoridade dos pais sobre os filhos fosse derivada, e não originária, poderia ser concebida – como fez Platão num passado distante – uma sociedade em que os seres humanos gerados não estabelecessem nenhum tipo de vínculo com seus progenitores, sendo imediatamente entregues, após o nascimento, a um sistema oficial de cuidado físico e instrução intelectual e moral. E se fosse possível a geração artificial extraútero, tanto melhor (quem é familiarizado com a cultura pop facilmente percebeu o paralelo com a distopia proposta na famosa trilogia cinematográfica Matrix).

A questão vai muito além da reflexão introduzida pela sétima arte. Tal estado de coisas é absurdamente contraintuitivo (para não dizer repugnante), sendo volta e meia proposto por algumas pessoas com base exclusivamente em especulação teórica desapegada de qualquer razoabilidade prática, e a proposta pedagógica de Platão – felizmente, acrescentaríamos! – parece jamais ter sido verificada de forma integral na história da humanidade. Além de manifestamente absurda, a situação deve ser mesmo faticamente impossível. Quer dizer, uma estrutura estatal que desse conta de tarefa dessa monta seria realmente impraticável.

Mas a hipótese é mesmo tão contraintuitiva porque fere bens humanos básicos, e este insight nos introduz à consideração da educação domiciliar a partir da tradição da lei natural.

Com base em autores como Germain Grisez e John Finnis, iniciando pela compreensão do casamento como um bem humano básico (sobre isso, indica-se a obra “A Razão do Casamento”, de Dienny Riker, fruto da profunda pesquisa de mestrado da autora acerca do tema), é possível passar à consideração do caráter originário da autoridade dos pais sobre os filhos a partir do vínculo biológico existente entre eles. E quando se alude a um vínculo “biológico”, é importante notar que não se trata de relação meramente física, mas de caráter também metafísico, desde que se compreenda o ser humano como uma unidade corpo-alma (o que pode ser chamado de “antropologia aristotélica”).

Foi assim que Melissa Moschella, tratando do assunto em sua pesquisa de doutorado em Princeton, modelou os direitos educacionais dos pais – os quais incluem, para o que interessa à reflexão aqui proposta, o direito à educação domiciliar – a partir da tradição da lei natural.

Juntamente com a professora Moschella, portanto, pode-se afirmar que os direitos educacionais dos pais não são uma concessão da comunidade política, mas têm caráter originário, pois decorrem do vínculo biológico mantido entre pais e filhos. Esse vínculo biológico – que, reitera-se, não é apenas físico, mas deve ser também compreendido numa perspectiva metafísica – estabelece para os pais uma série de deveres morais, cujo desempenho pressupõe também o reconhecimento de uma série de direitos, dentre os quais o direito à educação domiciliar.

Nessa perspectiva, a educação domiciliar é compreendida como um direito negativo integrante de um subconjunto mais amplo de direitos de consciência. E, na teoria do Direito, um direito negativo é um direito cujo exercício não pode ser tolhido, exatamente porque provê a comunidade política com o que Joseph Raz chama de “razões excludentes”.

"O que vai contra a lei natural é proibição injusta"

A partir daí, e tendo em vista todo o debate atualmente existente a respeito da educação domiciliar no Brasil, é possível retornar à última de nossas três perguntas introdutórias com o objetivo de enfatizar dois pontos fundamentais: primeiro, que a proibição da prática – quer se entenda como decorrente da lei, quer se entenda como consequência de decisão do Supremo Tribunal Federal – será sempre algo contrário aos ditames de razoabilidade prática da lei natural e, por isso, será sempre uma proibição injusta; segundo, que a disciplina legislativa do assunto deve se dar na perspectiva do reconhecimento do direito, e não da imposição de restrições.

O fato de os direitos educacionais dos pais – dentre os quais o direito à educação domiciliar – serem modelados, a partir da lei natural, como direitos negativos é fundamental para que se compreenda o caráter manifestamente injusto de qualquer tentativa de proibição da educação domiciliar.

Direitos negativos pressupõem, da parte da comunidade política, um “não-fazer”: na hipótese, não impedir que os pais eduquem seus filhos em casa. Isso é bem diferente, por exemplo, da maneira como o Supremo Tribunal Federal procurou enfrentar a questão no julgamento do Recurso Extraordinário 888.815, cuja tese de repercussão geral afirmou que inexiste “direito público subjetivo” à educação domiciliar no Brasil. Nesse ponto, pode-se até mesmo concordar com o Supremo que um “direito público” à educação domiciliar, o qual pressuporia o aparelhamento do Estado e uma série de prestações materiais positivas, de fato, não exista na ordem jurídica brasileira; isso, contudo, em nada afeta a existência do direito natural negativo à educação domiciliar, fazendo com que qualquer vedação ou tentativa de sua vedação – ainda que de forma velada, com introdução de restrições legislativas que possam inviabilizá-lo na prática – seja reputada contrária aos ditames da razoabilidade prática e, portanto, injusta.

Assim, a legislação brasileira deve apenas reconhecer o direito natural já existente à educação domiciliar. Qualquer lei sobre o assunto tem caráter declaratório (na medida em que reconhece um direito natural já existente) e não constitutivo (pois não constituirá originalmente este direito). E, nunca será demais enfatizar, qualquer tentativa de proibir a prática será sempre injusta, porque contraria aos ditames da razoabilidade prática inerentes à lei natural.

*Este ensaio é uma reflexão baseada em pesquisa realizada para a redação de artigo intitulado “Educação Domiciliar, Lei Natural e Recurso Extraordinário 888.815”, a ser publicado em breve pelo autor em coautoria com o Professor Victor Sales Pinheiro.

**Carlos Eduardo Rangel é mestre em Direito, Advogado Público, Diretor Jurídico da Associação Nacional de Educação Domiciliar e autor do Livro “Educação Domiciliar no Brasil: Aspectos Filosóficos, Políticos e Jurídicos”.

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