Durante as discussões para a aprovação da Lei 12.711/2012, que prevê cotas para ingresso nas universidades públicas federais, definiu-se que a proposta, cujo objetivo seria “reparar injustiças históricas”, teria a duração de dez anos e que ao final desse período (que se encerra neste ano) seria feita uma revisão dessa política.
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Como a lei não deu mais detalhes sobre o que seria essa revisão, movimentos sociais passaram a alegar que o sistema de cotas será encerrado, caso um novo projeto de lei que amplie a medida não seja aprovado ainda em 2022 – possibilidade que não está prevista na legislação.
A chamada “Lei de Cotas” é alvo de críticas sobretudo porque, para grande parte dos cotistas, o fator “renda” não é considerado. Pessoas negras, indígenas ou com deficiência que figuram em classes econômicas mais altas podem ingressar nas instituições de ensino por meio das cotas, deixando de fora pessoas mais vulneráveis nos critérios socioeconômicos.
Em meio ao “limbo” legal em que a lei se encontra, parlamentares começaram a apresentar diversos projetos com o objetivo de aumentar a extensão do programa, bem como os benefícios aos cotistas. Um deles, de autoria do deputado Valmir Assunção (PT-BA), propõe prorrogar a lei de cotas por 50 anos, fazendo uma nova revisão somente em 2062.
O projeto também cria o “Conselho Nacional das Ações Afirmativas no Ensino Superior”, com o objetivo de criar benefícios específicos para determinados grupos sociais. Apensado a esse PL está outra proposta, de autoria da deputada Maria do Rosário (PT-RS), que torna o sistema de cotas definitivo e elimina o sistema de revisões periódicas. As propostas tramitam em regime de urgência e podem ser colocadas em votação a qualquer momento.
Crítico de longa data do atual formato da lei de cotas, o deputado Marcel Van Hattem (Novo-RS) tem buscado afastar o debate do campo ideológico, alegando que a medida é injusta ao priorizar determinadas categorias de indivíduos em detrimento de aspectos socioeconômicos. Para ele, o programa também ignora problemas estruturais da educação brasileira, como a não priorização do ensino básico, o que prejudica o acesso da população pobre como um todo ao ensino superior.
Veja a seguir a entrevista exclusiva da Gazeta do Povo com o parlamentar.
Apesar de não haver essa determinação legal, entidades que militam pela renovação e ampliação dos benefícios desse programa alegam que as cotas serão extintas caso não sejam ampliadas. Qual é sua avaliação a respeito dessa narrativa?
Marcel Van Hattem: Como já dizia o poeta, “nada é mais permanente do que um programa provisório de governo”. Esse é mais um desses exemplos. Foi dito na época da discussão desse projeto de lei, até para que fosse aprovado, que seria um programa provisório, que não seria para sempre. Se em dez anos não se resolveu o suposto problema, não vai se resolver em 50. Pelo contrário, a lei de cotas acaba virando parte do problema, que é a falta de foco no ensino básico em detrimento do ensino superior no Brasil.
Estão tentando consertar a casa pelo telhado. Uma casa com um fundamento ruim, que está caindo, você não conserta pelo telhado. E infelizmente é isso ocorre com o sistema de cotas. E essa tentativa de prorrogação demonstra também a desonestidade de muitos daqueles que lá em 2012 defenderam essa lei, porque na verdade escondiam seus verdadeiros interesses, que eram fazer militância política, fazer discurso segregacionista, e não promover a melhoria da qualidade da educação no Brasil, que deve ser o verdadeiro foco de qualquer política pública nessa área.
Recentemente o senhor disse em suas redes sociais que o sistema de cotas é racista e discriminatório. Como, na prática, isso ocorre?
Marcel Van Hattem: Em primeiro lugar, quando se estabelece um critério de raça em que se dá condições de aprovação diferentes para pessoas que tiveram a mesma origem. Duas pessoas que são vizinhas no mesmo bairro, por exemplo, e que tiveram a mesma formação no ensino básico só são diferenciadas na hora do ingresso na universidade porque têm cores de pele diferentes. Isso é uma discriminação muito clara, e é uma discriminação racial. Não existe outra definição para esse tipo de política.
Em segundo lugar, vemos na prática isso acontecendo com a instituição de tribunais raciais hoje nas universidades, que acabam avaliando se o fenótipo de uma pessoa que se autodeclara negra ou parda corresponde à autodeclaração, o que é no mínimo uma contradição, porque a autodeclaração é, logicamente, como a pessoa se autodeclara. E é anticientífico, porque a pessoa pode não ter um fenótipo de determinada raça – o que, aliás, também é um critério há muito tempo abandonado pela ciência e pela biologia – e ter no seu DNA origem, por exemplo, no continente africano, de onde veio a maior parte das pessoas que estão hoje no Brasil e que tem cor de pele mais escura.
No lugar das cotas raciais, quais políticas públicas o senhor sugere para aumentar as oportunidades de jovens pobres que, desde a infância, são alvo de um sistema de educação bastante frágil?
Marcel Van Hattem: O que precisamos ter são políticas que garantam mais acesso à educação básica de qualidade – educação infantil, ensino fundamental e médio. Isso significa garantir que lá na base as nossas escolas tenham mais recursos, mais atenção dos governantes, mais atenção dos pais e uma política de administração mais moderna. Além disso, que não sejam tão subjugadas ou sujeitas às atividades sindicais, que hoje são extremamente prejudiciais às escolas públicas.
A diferença entre as escolas públicas e as privadas em termos de qualidade de ensino é abissal, e uma das grandes culpadas por isso são as frequentes manifestações, greves e protestos de professores sindicalizados, que prejudicam o próprio trabalho de muitos professores que querem dar aula e que são constrangidos a ficar em casa e não ir às escolas nos momentos em que ocorrem essas greves gerais. E isso não é algo pontual, é corriqueiro.
Então, é preciso ter mais investimento na educação de base, mais focalização, mais liberdade para os pais de estudantes de escolas públicas escolherem o tipo de ensino seus filhos terão. Como boas alternativas estão modelos mais descentralizados de escolas, como o modelo Charter ou via voucher, como acontece na universidade privada via Prouni, para que se tenham bolsas de estudo também para que crianças com bom rendimento escolar estudem em escolas privadas. São políticas públicas que podem garantir uma melhora no ensino básico para proporcionar que todos os estudantes, independentemente de cor da pele, tenham uma chance de chegar na universidade.
Quando se fala em cotas, argumentos contrários à medida costumam ser imediatamente taxados de “racistas”. Como viabilizar a discussão desse assunto, de tamanha relevância, que é uma bandeira tão ferrenha de grupos identitários?
Marcel Van Hattem: Um ponto interessante é que um dos principais opositores da política de cotas é um economista negro chamado Thomas Sowell. Ele se opõe ferozmente a esse tipo de medida, e chamá-lo de racista seria o mesmo que chamar o atual presidente da Ucrânia, que é judeu, de nazista, como o Putin [Vladimir Putin, presidente da Rússia] está fazendo para justificar esses ataques injustos à Ucrânia.
Quem acusa de racista aquele que está apenas utilizando argumentos, muitas vezes racista é. É o que vejo nesse debate. Por conta do meu fenótipo – sou descendente de imigrantes europeus –, muitas vezes sou julgado antes de ser permitido colocar os argumentos em pauta.
Nessa discussão, acredito que o mais importante é focar nos argumentos, nos estudos que estão sendo feitos e nas consequências dessa política. É preciso, sim, da igualdade de oportunidades, mas da igualdade para todos, para assim termos um ensino aberto e que não perca em qualidade. Ao contrário, esse ganho de qualidade de ensino não é o que estamos vendo, com o Brasil a cada ano perdendo posições nos rankings internacionais de educação.
Qual é sua expectativa quanto à maneira como o Congresso vai lidar com a possível renovação da lei de cotas neste ano?
Marcel Van Hattem: Eu espero que a discussão se dê em torno dos números e argumentos mais relevantes, e que a maior parte dos parlamentares que representa todo o povo brasileiro, cuja responsabilidade é legislar para dar o maior acesso possível e a boa educação, principalmente básica, a todos os brasileiros, rejeite esses projetos de lei. E, paralelamente, que se trate realmente da educação básica e das formas mais eficazes de melhorar a qualidade do ensino desde a educação infantil, passando pelo ensino fundamental e médio para, aí sim, podermos ter mais condições de ver diversidade e qualidade nas universidades.