Parece até pegadinha: duas leis nacionais, muito comemoradas por ampliar o financiamento da educação básica e a remuneração dos respectivos professores, estão na mira de especialistas por falharem na melhoria do desempenho estudantil. Na coletânea de artigos “Para não esquecer: políticas públicas que empobrecem o Brasil”, quatro pesquisadores destrincham os propósitos e trajetórias do novo Fundeb e da Lei do Piso para defender mudanças na legislação.
O livro, lançado no fim de maio em formato digital, tem 25 capítulos sobre diversas políticas públicas implementadas nas últimas décadas, com o diagnóstico de por que não deram certo. Os dois capítulos sobre educação básica estão entre os mais polêmicos, por defenderem mudanças em um setor que tradicionalmente exige mais recursos e valorização. Em comum, ambos os textos afirmam que o objetivo de qualquer projeto na área educacional deve ser o de melhorar o aprendizado dos alunos, e que a destinação de mais verbas, por si só, não tem contribuído para isso.
Segundo o organizador da coletânea, o economista Marcos Mendes, pesquisador do Insper, o debate é necessário para enriquecer as políticas públicas no Brasil. “Por exemplo, todo mundo pensa que tem que defender o piso do magistério, para o professor ganhar bem, mas quando vai ver a lei, ela está cheia de problemas. Gera uma série de efeitos colaterais negativos, inclusive para a qualidade da educação. É preciso fazer um debate mais qualificado”, declarou à Gazeta do Povo.
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Bons professores têm papel fundamental na aprendizagem
No artigo “O piso salarial do Magistério Público”, os autores Gustavo Guimarães e Marcos Mendes explicam a importância de um bom professor para o futuro dos alunos: “Ter um bom professor (...) durante três ou quatro anos seguidos, é o suficiente para eliminar a diferença de aprendizado entre dois alunos em decorrência de distintas rendas familiares. Cada ano a mais de atividade de um professor acima da média agrega centenas de milhares de dólares à renda que será obtida pelos alunos ao longo da vida”.
Em busca da melhoria do ensino, as redes tentam melhorar a remuneração dos professores. Mas, então, os autores do artigo buscam elementos para tentar responder à pergunta: a aprendizagem melhorou após professores receberem salários maiores? Guimarães e Mendes dizem que a literatura sobre o tema não encontra relação entre a remuneração dos professores e a proficiência dos alunos. Para os autores, desde a criação do Fundef (leia mais aqui), em 1996, houve uma contínua valorização do salário do professor, o que os leva a afirmar que o tempo de salários aviltantes na educação pública ficou para trás.
Leia também: Ter mais professores com ensino superior não melhorou o desempenho dos alunos no Brasil
Piso sofre de superindexação, dizem autores
Para os autores, a principal deficiência da Lei do Piso, criada em 2008, foi determinar uma regra de reajuste anual equivalente à variação do gasto mínimo por aluno no âmbito do Fundeb (leia mais aqui). “Esse método de correção provoca fortes e seguidos aumentos reais no valor do piso”, afirmam. Isso foi comprovado em 2022, quando o índice de reajuste ficou em 33,24%, gerando uma movimentação da Confederação Nacional dos Municípios (CNM) para tentar evitar o impacto fiscal com a medida. Neste ano há uma briga jurídica adicional: a CNM sustenta que quando o novo Fundeb foi promulgado, foi revogada a legislação que definia o critério de reajuste anual, e por isso orienta que as prefeituras não apliquem o reajuste de 33,24%.
Segundo os autores, há uma “superindexação” do piso, já que o valor mínimo por aluno, no âmbito do novo Fundeb, tende a crescer bem acima da inflação. “Em 12 anos de existência, o piso remuneratório do magistério cresceu 3,04 vezes em termos nominais, muito acima da inflação, do PIB nominal ou do salário-mínimo”, pontuam. O principal problema, dizem, é que a folha de pagamento vai absorver todos os recursos e diminuir a capacidade de investimento na educação. Isso porque o desenho aplicado pela maioria dos entes subnacionais prevê reajustes para toda a categoria de professores, mesmo aposentados, o que “quebra a argumentação entre maior remuneração e melhoria do ensino, que é a razão de ser do aumento real da remuneração”.
O desafio é ainda maior em um cenário de recessão. “Outro problema está no fato de que a regra é pró-cíclica: quando a economia está crescendo e a arrecadação aumentando, os reajustes do piso serão ainda mais fortes. Isso consolida um novo patamar de remuneração que não poderá ser diminuído quando, mais à frente, a economia entrar em recessão e a arrecadação cair em termos reais”, explicam os autores.
Com tantos desafios fiscais, as prefeituras e governos tendem a desmontar os planos de carreira dos educadores, já que não terão condições de arcar com o aumento de custos, dizem Guimarães e Mendes. Eles sugerem mudanças na lei, mas sabem que os obstáculos são grandes. Lembram que em 2017, na gestão de Michel Temer, o Planalto tentou encaminhar um projeto de lei com alterações no piso do magistério, o qual nem foi apresentado ao Congresso, pelas resistências corporativas que se impuseram. Segundo os dois economistas, o modelo adotado hoje é “um caso clássico de política pública mal desenhada, que produz diversos efeitos adversos, mas que sobrevive à base de pressão política dos seus beneficiários.”
No artigo sobre o Fundeb (leia mais aqui), os economistas Paes de Barros e Machado observam que a política de financiamento da educação básica trouxe muitos avanços, mas que falhou por ter focado de maneira “excessiva” na distribuição de recursos. “Em primeiro lugar, a atenção deveria estar integralmente focada no desenvolvimento pleno dos estudantes, pois a importância da qualidade dos insumos decorre apenas de sua contribuição, indireta e dependente da conjunção de outros fatores, ao objetivo da educação que é o desenvolvimento pleno dos estudantes. Em segundo lugar, a política educacional precisa estar muito mais focada na formulação de projetos de qualidade, pois a captação e repartição de recursos per se não é suficiente nem para uma educação de qualidade nem para uma educação mais equitativa”, dizem.
Fundos regionais mantêm desigualdades
O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) vigorou de 2006 a 2020. O novo Fundeb, aprovado pela Emenda Constitucional n.º 108, ampliou a contribuição da União, mas manteve um desenho que é criticado pelos economistas Ricardo Paes de Barros e Laura Mueller Machado, autores do artigo “Acertos e Desacertos do Fundeb”. Para eles, em vez dos 27 fundos regionais, que fazem a distribuição dos recursos para os entes subnacionais, seria mais justo um único fundo nacional. “A constituição de um fundo nacional único traria certamente uma equalização maior dos gastos por estudante entre redes”, afirmam.
Originalmente, o financiamento para a educação básica foi criado para suprir uma falha da Constituição Federal, que no Art. 212 determinou que 25% das receitas com impostos e transferências dos estados e municípios sejam aplicados em educação. Como a capacidade arrecadatória dos entes subnacionais é desigual, havia também diferenças significativas nos recursos alocados em cada rede de ensino. Para sanar esse problema, foi criado o Fundef, que vigorou de 1996 a 2006.
De lá para cá, o financiamento manteve outros pontos críticos, segundo os autores. “Outro aspecto que perdura desde o desenho original do Fundef é a opção por não incluir nele todos os recursos estaduais, distritais e municipais vinculados à educação pelo Art. 212 da Constituição Federal”, escrevem. Estima-se que 20% desses tributos não contribuem para o Fundeb. O texto faz a ressalva de que a inclusão de toda a cesta de tributos pode provocar desajustes em outras áreas: “A despeito de sua indiscutível contribuição redistributiva, o compartilhamento de todas as receitas vinculadas à educação pode reduzir os incentivos ao esforço local de arrecadação”.
Por fim, Paes de Barros e Machado lamentam que o novo Fundeb não tenha sido alçado à condição de fundo plurianual. Pelo desenho que sempre vigorou, os recursos devem ser usados ano a ano, não podendo ser poupados para depois. Segundo eles, isso “contribui para uma série de ineficiências e dificulta o planejamento de longo prazo. A receita fiscal varia com os ciclos econômicos, enquanto os gastos com educação precisam ser bem mais estáveis”.
A exigência do gasto anual - sem garantir que o recurso seja bem aplicado - faz com que as “sobras do Fundeb” acabem sendo mal utilizadas pelos prefeitos. Em 2021, por exemplo, um município usou o dinheiro do fundo para construir uma garagem no valor de R$ 1 milhão; outro deu gratificações na ordem de R$ 38 mil para professores.
Novo Fundeb prevê recursos para gestão exitosa
Dois pontos positivos previstos no novo Fundeb, na opinião dos autores, são os dispositivos para incentivar a utilização mais efetiva dos recursos. O primeiro replica uma experiência exitosa no Ceará. Na distribuição do ICMS, 10% dos recursos distribuídos dos estados para municípios precisam estar vinculados a ‘indicadores de melhoria nos resultados de aprendizagem e aumento da equidade’. “À medida que os recursos forem alocados em função do progresso (em vez de nível alcançado) e de reduções na desigualdade, as redes mais carentes podem inclusive estar em vantagem”, observam Paes de Barros e Machado.
O segundo dispositivo estabelece que cerca de 11% do aporte da União ao novo Fundeb deve ser alocado diretamente às redes que alcançarem melhorias no atendimento e na aprendizagem com redução na desigualdade e aprimoramentos de gestão. “Embora o desenho desses dois mecanismos ainda precise ser mais bem especificado e sua eficácia devidamente avaliada, a sua adoção representa um importante avanço no reconhecimento de que as disparidades na efetividade do gasto também devem ser mitigadas”, afirmam.
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