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O Prêmio Capes, criado em 2005, deveria servir como um incentivo teses de alta qualidade. Mas nem sempre é o que acontece.
O Prêmio Capes, criado em 2005, deveria servir como um incentivo teses de alta qualidade. Mas nem sempre é o que acontece.| Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

A baixa qualidade da produção acadêmica no Brasil é um problema crônico, e foi para atacar este problema que a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), órgão vinculado ao Ministério da Educação, decidiu premiar anualmente as melhores teses de doutorado em cada área. O Prêmio Capes, criado em 2005, deveria servir como um incentivo à pesquisa de alta qualidade. Mas nem sempre é o que acontece.

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A lista mais recente, divulgada em agosto, tem 49 teses premiadas e 96 menções honrosas. Segundo a descrição da Capes, o prêmio “reconhece os melhores trabalhos de conclusão de doutorado defendidos no Brasil em 2022”. A Gazeta do Povo analisou os trabalhos. Há muitas teses meritórias, especialmente nas ciências exatas e da natureza. No campo da Biologia, por exemplo, um estudo da USP utilizou de testes genéticos para detalhar a dinâmica de migração e assimilação dos povos indígenas antes do contato com os europeus.

Mas o apanhado geral é preocupante. Chama a atenção a quantidade de teses com forte carga ideológica, muitas delas “fora de lugar”: os trabalhos premiados incluem uma tese de Serviço Social sobre o “conservadorismo” do jornalismo brasileiro, uma de Arquitetura e Urbanismo sobre a sociologia dos “excluídos”, uma de Educação Física sobre a “transfobia”, uma de Ciências da Informação sobre a Pedagogia Crítica de Paulo Freire e uma de Saúde sobre os males do racismo. Em comum, estes trabalhos carregam a premissa de que todos os fenômenos sociais (e muitos não sociais) podem ser explicados por uma dinâmica de opressão de gênero, raça ou classe social.

No Prêmio Capes, as teses indicadas são escolhidas pelos departamentos de cada universidade. Depois, os vencedores são escolhidos por uma comissão de premiação em cada uma das áreas (49). Estas comissões são escolhidas pelo presidente da Capes – atualmente, o cargo é ocupado por Cláudia Mansini Queda de Toledo. O presidente da Capes, por sua vez, é escolhido pelo Ministério da Educação. Cláudia foi nomeada pelo então ministro Milton Ribeiro no ano passado.

Os autores de teses premiadas receberão bolsa de até um ano para pós-doutorado no Brasil, além de um cerificado e uma medalha. O orientador receberá R$3 mil.

A reportagem da Gazeta do Povo procurou a Capes e o Ministério da Educação para perguntar se os órgãos consideram haver algum problema na premiação de teses com conteúdo ideológico, inclusive com ataques pesados ao atual governo. Até o fechamento da reportagem, não houve resposta.

A equipe da Gazeta separou as oito teses mais evidentemente ideológicas do Prêmio Capes – todas elas oriundas de universidades públicas. Veja a lista abaixo.

1) Categoria: Serviço Social            

Título da Tese: “Mídia e Conservadorismo: O Globo, a Folha de S. Paulo e a ascensão política de Bolsonaro e do bolsonarismo”.
Autora: Fabíola Mendonça de Vasconcelos
Instituição: UFPE (Universidade Federal de Pernambuco)
Resumo: A autora alega que a imprensa, em especial a Folha de S. Paulo e o Globo, têm grande parcela de responsabilidade pela eleição de Jair Bolsonaro. A conclusão foi alcançada por meio de uma “abordagem qualitativa, com base na concepção teórico-metodológica de Marx”. A tese equipara o conservadorismo a tudo o que existe de pior, “criando um ambiente de retrocessos e perseguição a homossexuais, mulheres, negros, pobres, periféricos e minorias sociais de forma geral.” Gramsci é citado 61 vezes.

Trecho: “A hipótese inicial de que a mídia seria corresponsável pela retomada do conservadorismo no país, facilitando a vitória do militar, foi confirmada no decorrer do estudo, uma vez que O Globo e a Folha contribuíram para criar um ambiente político-eleitoral favorável ao então candidato, estimulando e retroalimentando a antipolítica e o antipetismo. A pesquisa mostra que os editoriais dos dois jornais ajudaram na criminalização das forças progressistas ao mesmo tempo em que colocaram em evidência a Operação Lava Jato - peça central nesse processo -, favorecendo a crise de hegemonia que deu lugar ao ressurgimento e fortalecimento do conservadorismo”.

2) Categoria: Educação Física     

Título da Tese: “A participação e repercussão de mulheres transexuais no voleibol feminino brasileiro: entre (im)possibilidades esportivas”
Autor: Rafael Marques Garcia
Instituição: UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Resumo: A tese é um duro golpe nos “saberes biopolíticos sexistas que segregam, normalizam e enquadram sujeitos”, seja lá o que isso signifique. O autor não investiga a desvantagem natural dos homens sobre as mulheres – o ponto central da discussão sobre transexuais no esporte. Ele diz apenas que "não há consenso" a respeito do maior rendimento dos homens em termos esportivos. Por quê? "A própria noção de vantagem/desvantagem ainda é furtivamente complexa". Logo, o autor nada pode fazer para esclarecer o assunto: "Como posso afirmar algo sobre uma discussão incompreensível?", justifica-se. A partir daí, ele passa quase 300 páginas problematizando a “heteronormatividade” em uma tese de Educação Física.

Trecho: “A trajetória esportiva de jogadoras transexuais no voleibol feminino brasileiro é cistematicamente interpretada e vigiada, resultando no desconhecimento e ilegitimidade de sua participação no Esporte à luz da cisheteronormatividade. Isso quer dizer que, socioculturamente, as pessoas e instituições na contemporaneidade ainda se encontram muito atadas a modelos ciscolonialistas que instituem normas rígidas e intransigentes que, através das relações de poder, recaem aos demais sujeitos sociais para que se subjuguem a essas normas.”

3) Categoria: Direito 

Título da Tese: “Dando Close nas Cortes: Discursos sobre Travestis nos Tribunais Constitucionais da América Latina.”
Autora: Alice Hertzog Resadori
Instituição: UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
Resumo: A autora analisou a forma como tribunais de diferentes países da América Latina lidam com os travestis. O inimigo aqui é “o modelo de sujeito de direitos baseado em categorias fixas, binárias, cisnormativas e heteronormativas”. Os vilões são os conservadores “enunciados que colocam em funcionamento discursos e estratégias binárias, biologizantes, patologizantes e abjetificantes sobre os sujeitos, fundadas na perspectiva essencialista do sexo, do gênero e da sexualidade, na cisnorma e na heteronorma.” Dentre outras coisas, ela lamenta que pastores tenham a liberdade de afirmar que a conduta homossexuais é pecado, "Como se atribuir um caráter negativo, mesmo que religioso, para a orientação sexual ou para a identidade de gênero, não fosse, por si só, uma forma de discriminação, de hostilidade e de violência."

Trecho: “Apesar de serem demandas que tratam de temas comuns a travestis e transexuais, a maioria das decisões não está indexada com o termo ‘travesti’, havendo pouca visibilidade dessa identidade nas cortes. Também identifiquei que as decisões analisadas são constituídas por três formações discursivas diversas, que nomeei de conservadorismo repressivo, inclusão conservadora e reconhecimento afirmativo. As duas primeiras são constituídas por enunciados binários, cisnormativos e heteronormativos, sendo que a primeira aciona esses enunciados de modo a bloquear direitos às travestis, enquanto a segunda movimenta esses enunciados de forma a lhes reconhecer direitos. Já a formação discursiva do reconhecimento afirmativo é constituída por enunciados que afirmam a autonomia das travestis para desenvolverem livremente suas personalidades.”

4) Categoria: Ensino  

Título da Tese: “Escolas sustentáveis: uma análise de experiências a partir do pensamento freireano”
Autora: Antonia Adriana Mota Arrais
Instituição: UnB (Universidade de Brasília)
Resumo: A tese é uma defesa da importância das chamadas “escolas sustentáveis” na rede pública. A ideia, por si só, não tem nada de absurdo. Mas, ao longo da tese, entretanto, fica claro que a educação ambiental é apenas um caminho para a superação do verdadeiro inimigo: o capitalismo. A autora, que merece pontos pela sua honestidade, escreve que a obra de Paulo Freire tem “potencialidade revolucionária” no caminho de uma “sociedade mais igualitária.”  Freire, aliás, aparece mais de 250 vezes na tese.

Trecho: “Os pensamentos teóricos e práticos de Freire possuem grandes implicações para a EA ao explorar abordagens além da concepção ‘bancária’, ao discutir o processo de transição da consciência ingênua para a crítica por meio de uma educação libertadora, problematizadora e popular que é voltada para a superação da opressão e dos efeitos do capitalismo na desagregação entre humanidade e natureza, ao apostar na educação como um processo dialógico pelo qual os humanos se educam, em conjunto, mediatizados pelo mundo e que não pode ser resumida a puro ativismo, ao desvelar as situações-limites que marcam a realidade opressora e desumanizante e ao acreditar em uma educação que prioriza o desenvolvimento de um pensamento crítico para o rompimento de tais situações, evidenciando uma preocupação com a injustiça e exclusão social que alastra as classes populares.”

5) Saúde Coletiva   

Título da Tese: “A Boca Travada no Racismo: Desigualdades Racionais nas Condições de Saúde Bucal”
Autora: Livia Helena Terra E Souza
Instituição: Unicamp
Resumo:  Depois de notar que as pessoas negras em certas regiões de Campinas têm uma saúde dental pior do que a dos não-negros, autora automaticamente conclui que o racismo é o responsável pelo problema. Ao site da Unicamp, ela afirmou que “Os resultados obtidos são indicativos do racismo que evidenciamos, cotidianamente, na cultura brasileira.”

Trecho: “Parece que os avanços sociais não foram suficientes para quebrar os padrões estruturais do racismo na sociedade brasileira. No campo dos direitos, o tema da raça ainda é uma prioridade para discussão, já que não houve processo de reparação histórica. As desigualdades permanecem e permeiam as atividades diárias de cuidado. Também existe uma necessidade de combater as desigualdades nas condições de vida entre brancos e negros para impedir que tais condições medeiem a associação entre raça/cor da pele e o baixo acesso a/uso de serviços de saúde e uma situação pior de saúde oral.”*

*A tese completa não está disponível ao público, mas um trecho dela foi publicado na forma de artigo em uma revista científica em inglês, de onde esse trecho foi extraído e traduzido.

6) Categoria: Arquitetura, Urbanismo e Design            

Título da Tese:  “Dos bêbados, das putas e dos que morrem de amor: os marginais do embelezamento e dos melhoramentos urbanos (1905-1938)”
Autora: Maira Cunha Rosin
Instituição:  USP (Universidade de São Paulo)
Resumo: Embora seja um trabalho de Arquitetura e Urbanismo, esta tese tem como ponto central uma defesa dos “excluídos”: o argumento é o de que prostitutas e bêbados, perseguidos, foram parte essencial da construção da cidade de São Paulo. O texto abusa de chavões como “burguesia” e "sociedade machista e patriarcal". Depois de analisar documentos, mapas e fotografias da época, a autora conclui que houve um “apagamento da memória” das prostitutas e dos bêbados.

Trecho: "Esta história é sobre mulheres. É sobre a cidade. É sobre a forma como a cidade invisibilizou e a pagou de suas memórias a história de tantas mulheres e homens. É sobre as imagens e memórias roubadas não só do cotidiano, mas também dos espaços físicos e públicos que tais 'Excluídos da História' ousaram um dia ocupar. De como o gênero, a cor e o estrato social foram vítimas de apagamentos e de tantas outras violências em vida e até mesmo após a morte."

7) Categoria: Planejamento Urbano e Regional/ Democracia

Título da Tese: “‘Nós Que Mudamos, Eles Não’: a Importância do Suporte Familiar, da Idade e do Gênero na Análise do Desenvolvimento da Identidade Sexual e da Saúde Mental de Lésbicas, Gays e Bissexuais em Minas Gerais.”
Autor: Samuel Araujo Gomes Da Silva
Instituição: UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais)
Resumo: Esta tese traz os resultados de uma pesquisa online com 754 lésbicas, gays e bissexuais em Minas Gerais. O estudo aponta as preferências e hábitos desta população; um dos problemas, diz o autor, é a presença de políticos “preconceituosos”, como o atual presidente do Brasil. A eleição de Bolsonaro, por si só, causou “medo, angústia e controle do próprio comportamento” neste grupo.

Trecho: “O impacto da eleição de Trump e Bolsonaro não representam só a presença de uma figura abertamente LGBTfóbica no cargo máximo do Poder Executivo, mas, essencialmente, o reconhecimento de que os avanços legais em prol dos direitos LGBT ainda não foram assimilados culturalmente nessas sociedades.”

8) Categoria: Comunicação e Informação          

Título da Tese:  “Competência Crítica em Informação como Resistência à Sociedade da Desinformação sob um Olhar Freiriano: Diagnósticos, epistemologia e caminhos ante as distopias informacionais contemporâneas”
Autora: Anna Cristina Caldeira De Andrada Sobral Brisola
Instituição: UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro)

Resumo: A autora afirma que Paulo Freire e sua Pedagogia Crítica (além de Antonio Gramsci e Karl Marx) têm a solução para a propagação de fake news. A autora já começa se desculpando por ser parte de uma estrutura de “privilégios”: “Admito meus privilégios de branca, classe média e minha luta feminista e contra qualquer discriminação e opressão.” Ela tampouco faz questão de esconder os seus objetivos ideológicos: a “transformação social” completa da sociedade, dentro do prisma marxista. Aliás, um ponto elogiável é a transparência: a autora afirma que segue o método de Paulo Freire, e que, por vez, Freire tem raízes em Karl Marx. Gramsci é citado mais de 70 vezes.

Trecho: “Seguindo metodologicamente a Teoria Crítica, Paulo Freire e Boaventura Santos, essa tese busca não somente uma visão crítica, como também uma postura que, rompendo com o positivismo e, mais ainda com o determinismo, conclama uma ciência que se aproxima do povo, que busca a práxis e contribuir, de alguma forma, com a mudança do status quo, singrando os caminhos, através da longa marcha para uma nova hegemonia, como aconselha Gramsci.”

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