Com o envio de um projeto de lei pelo governo de Jair Bolsonaro (PSL) para regular o ensino domiciliar, o debate sobre o assunto deve esquentar novamente no Congresso Nacional. Na mesma manhã em que o governo apresentou o texto, a Gazeta do Povo conversou sobre o tema com Jan De Groof, um dos maiores especialistas do mundo em liberdade na educação, que estava no Brasil a convite do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
Professor do College of Europe, na Bélgica, e na Universidade de Tilburg, na Holanda, e comissário do governo belga para as universidades do país, De Groof já foi chefe da missão de direito à educação da Unesco, de 2007 a 2010, espaço em que continua atuando como membro. Durante a conversa, De Groof falou sobre os positivos resultados da educação domiciliar e sobre o mito de que as crianças educadas desta maneira não conseguem se sociabilizar.
“Sabemos pelas pesquisas que a grande maioria das famílias que optam pelo ensino domiciliar é muito aberta à vida social”, afirmou. “Com base em pesquisas feitas nos Estados Unidos, 95% das crianças em ensino domiciliar têm sucesso nas provas de ensino médio”, disse ainda.
De Groof, que é autor de vários livros e organizador de diversas coletâneas sobre o assunto, analisou as diferentes opções para regulamentação do ensino domiciliar, dos modelos mais rígidos aos mais flexíveis. “O Estado deve regular, mas deve respeitar as opções e escolhas dos pais e a liberdade de optar pelo ensino domiciliar”, resume.
Ainda no tema da liberdade de educação e da liberdade na educação, como o professor frisou durante a conversa, a Gazeta do Povo questionou De Groof sobre os limites da liberdade dos professores na educação básica e na educação superior. Em nenhum desses espaços, segundo o acadêmico, a liberdade de ensinar deve ser confundida com a doutrinação política – embora esse conceito seja de difícil formatação. “Liberdade acadêmica não significa liberdade de dizer qualquer coisa que você quiser, é uma liberdade de falar sobre a academia, a liberdade de pesquisar, a liberdade de haver diferentes linhas de pesquisa, ela não é sobre política”, afirma De Groof.
Confira a íntegra da entrevista abaixo:
O governo brasileiro apresentou um projeto de lei sobre ensino domiciliar. Quais são as melhores diretrizes e princípios para uma legislação sobre esse tema?
Há boas práticas sobre as molduras legais para o homeschooling, mas há uma variedade de molduras legais possíveis. Mesmo dentro da Europa há essa variedade, embora a grande maioria dos países seja favorável à possibilidade de optar pelo homeschooling. Apenas alguns países proíbem o homeschooling na Europa, entre eles a Alemanha e a Grécia. Supreendentemente, a Corte Europeia de Direitos Humanos decidiu em favor da margem de apreciação dos Estados nesse tema. O que isso significa? Significa que os tribunais devem checar se há uma motivação para o Estado banir o homeschooling, com base em diferenças nacionais. Essa margem de apreciação está garantida ao Estado, por exemplo, com base na razão de que não esteja provado de que os homeschoolers consigam se integrar socialmente. Várias vezes a expressão “risco de uma sociedade paralela” aparece na decisão. Mas isso deve ser visto de forma crítica, porque sabemos pelas pesquisas que a grande maioria das famílias que optam pelo ensino domiciliar é muito aberta à vida social, que as crianças vão a clubes esportivos, associações e igrejas.
Então essa proibição seria um mau exemplo de regulamentação. Mas qual seria um bom exemplo?
Os melhores exemplos são os países em que existe uma regulamentação branda, entre a maioria dos que permitem o ensino domiciliar. A maioria dos países regula em algum grau o ensino domiciliar. Nos Estados Unidos, há estados sem regulamentação alguma, com regulamentação moderada e com regulamentação rígida. Estou convencido de que o Estado deve regulamentar – até em benefício da criança, porque não deve haver contradição entre os direitos da criança e as liberdades e as convicções dos pais. Esse equilíbrio deve ser encontrado na regulação. Não sou nacionalista, mas o modelo belga é bastante bom. Primeiro, os pais têm de registrar a criança como homeschooler – de novo, em alguns países os pais têm que registrar no ministério nacional, mas na maioria o registro é feito na autoridade local em alguma escola local. Segundo, a sociedade exige que os pais mostrem os resultados do aprendizado das crianças, e esse aprendizado pode ser provado a cada dois ou três anos. Terceiro, a avaliação – em alguns sistemas, o teste é feito em escolas locais, mas em alguns países, como a Irlanda, o teste é nacional. Em suma, o Estado deve regular, mas deve respeitar as opções e escolhas dos pais e a liberdade de optar pelo ensino domiciliar.
O senhor já falou sobre as pesquisas acerca da sociabilidade das crianças educadas em educação domiciliar, mas o que sabemos sobre os resultados de aprendizado, quando comparados com alunos de escolas regulares?
Com base em pesquisas feitas nos Estados Unidos, 95% das crianças em ensino domiciliar têm sucesso nas provas de ensino médio. Isso não deve ser visto como um argumento contra o ensino domiciliar, porque é uma taxa de sucesso muito impressionante.
Quanto esses resultados dependem do tipo de regulação?
Essa é uma boa pergunta, mas não há estudos sobre isso. O que há é uma impressão de que o cumprimento de requisitos básicos e a transparência da legislação, dos resultados e das avaliações são indicadores de sucesso. Além disso, deve haver algum tipo de abertura para inspeção estatal, mas a flexibilidade é fundamental. E a maioria dos sistemas legais não requer que os pais tenham diploma de educador.
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Falando sobre a liberdade de educação, há outro problema muito discutido no Brasil: a doutrinação política e ideológica de crianças nas escolas. Alguns críticos dizem que isso não existe. Esse problema existe? Se existe, quais são as soluções que uma sociedade pode adotar para evitar isso?
A primeira questão é o que significa doutrinação. Há um grande debate sobre isso no Brasil, mas também em outros lugares. Devemos fazer também a distinção entre educação básica e educação superior. Falando na educação básica, precisamos fazer ainda a distinção entre escolas públicas e escolas privadas. [...] Em escolas confessionais, é claro que educação religiosa não pode ser considerada doutrinação. Em suma, é preciso estar atento a essas nuances todas e a regulação estatal deve encontrar o equilíbrio entre a liberdade de educação, a liberdade na educação e as exigências de qualidade e igualdade. Mas, mesmo no setor privado, é possível haver doutrinação: digamos um professor radical que está usando mal sua missão como professor. Não se trata de proselitismo, mas de dar liberdade ao professor de tomar decisões – trata-se de liberdade vis-à-vis o ethos da escola e isso não é uma coisa homogênea: há escolas católicas, evangélicas, Montessori, etc. Para as escolas públicas, é diferente, e publiquei um livro sobre isso. Há diferentes abordagens: que as escolas deveriam ser neutras e mesmo aí há a neutralidade negativa, isto é, você não permite que o professor expresse suas convicções e a neutralidade positiva, em que há espaço para expressar convicções, mas de forma moderada: levando em conta a faixa etária dos alunos, por exemplo. Já a abordagem pluralista entende que o Estado deve ser objetivo e crítico na informação, mas deve permitir alguma margem de debate, levando em conta também a faixa etária dos alunos, mas mesmo aí a doutrinação não pode ser permitida: a escola não pode ser mal utilizada por razões políticas.
Mas no caso de isso ocorrer, e muita gente no Brasil defende que isso ocorre, tanto nas escolas privadas quanto nas públicas, como poderíamos lidar com esse problema?
Primeiro, trata-se de responsabilidade da escola e responsabilidade na escola. A responsabilidade da escola é articular sua missão, seu ethos. A política não é um aspecto comum da vida escolar, o que não significa que não se deve admitir discussão política na escola, mas isso deve ser feito dentro de uma moldura transparente e por pessoas completamente objetivas. E como esse ethos é conhecido? Pelo envolvimento das famílias, os pais devem ser envolvidos na construção desse ethos pela direção e pela coordenação, e tanto os pais quanto os professores devem ser leais a esse ethos. Segundo, em outro nível, está o Estado. Não sou a favor de uma lei regulando todos os aspectos da vida escolar, mas a moldura jurídica deve permitir que se discuta caso a caso os conflitos com o ethos das escolas públicas: se o currículo é pluralista, baseado na ciência e estimula o espírito crítico, de acordo com o sistema jurídico de cada país.
Estávamos falando da educação básica, mas há outro debate no Brasil, que envolve o ensino superior. Existe algum fundamento para combater o uso político das universidades ou a liberdade nesses espaços deve ser o mais ampla possível?
Novamente, é uma questão de direitos e responsabilidades. A liberdade acadêmica é um direito individual – mas é um conceito complexo e delicado. A primeira questão é que a liberdade acadêmica é um valor constitucional independente de outro valor constitucional, que é a autonomia universitária, mas amparado por ela. Eles estão interligados. A liberdade acadêmica é um direito individual, mas também um dever: ela não é apenas uma caixa vazia, mas requer padrões éticos de cada pesquisador, professor e estudante. O que isso significa? Liberdade acadêmica não significa liberdade de dizer qualquer coisa que você quiser, é uma liberdade de falar sobre a academia, a liberdade de pesquisar, a liberdade de haver diferentes linhas de pesquisa, ela não é sobre política. Isso não exclui o debate político da universidade – mas as autoridades acadêmicas têm que assumir sua responsabilidade. Há condições para isso acontecer: é preciso garantir a diversidade de opiniões, e não pode haver extremismo, não há lugar na universidade para discursos antidemocráticos, xenófobos ou negacionistas do holocausto. No entanto, isso é totalmente diferente de um professor tentando fazer proselitismo ou usar a universidade para fazer discurso político.
Como lidar com isso?
Certamente, não chamando a polícia. A chave da solução está na responsabilidade acadêmica. Se o professor está fazendo proselitismo, isso deve ser detectado, o professor deve ser avisado pelas autoridades acadêmicas, de acordo com as normas internas da universidade. Devem existir regras e elas devem ser seguidas de acordo com algum procedimento de devido processo legal.
Já que o senhor falou em devido processo legal, os estudantes têm o direito de gravar os professores? Esse debate está acontecendo principalmente na educação básica.
Do meu ponto de vista, não existe uma razão para algo que o professor, que está lá como professor, diz em um local público, que tem uma missão pública, que não possa ser gravado. Nem sequer a privacidade é uma razão para isso. Não há razão para não ser transparente.
Alguns críticos dizem que isso mina a confiança no processo educacional.
Normalmente, os estudantes estão gravando e anotando o que os professores falam. É a vida. Tudo que se diz em aula é público por definição. Não há espaço para sigilo. Há privacidade, mas não enquanto você está executando seu trabalho.
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