Na Espanha, hoje, poucos recordam que até meados do século passado os relógios eram alinhados com o país vizinho, Portugal. Tudo mudou em 1941, quando o ditador espanhol Francisco Franco decidiu ajustar os ponteiros para a hora alemã em apoio a Adolf Hitler. Mesmo com a transição do regime autoritário do Franquismo para a democracia na década de 1970, o horário permaneceu inabalável, assim como a conservação de alguns símbolos do regime militar no país e a nostalgia em torno do período de repressão.
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Um exemplo disso é o controverso Valle de Los Caidos, um memorial para as vítimas da Guerra Civil Espanhola (1936-1939) construído a cerca de 40 km de Madri. Financiado pelo governo, o monumento abriga ainda hoje os restos mortais de Franco e tornou-se um ponto de encontro de milhares de saudosistas do regime. “Há pessoas que se identificam com o regime e seus valores mais de 40 anos após a morte de Franco. Elas realmente acreditam que viveram melhor naquela época e rejeitam o atual sistema democrático”, diz Marcos Marina Carranza, historiador da Universidade Autônoma de Madri. Muitos defendem a ideia de que valia qualquer preço – também em vidas – para afastar o comunismo.
Embora defender a ditadura tenha passado a ser considerado “politicamente incorreto”, Carlos Fuertes Muñoz, professor do departamento de Didática das Ciências Sociais da Universidade de Valência, afirma que a nostalgia do regime está presente na sociedade de outras maneiras. Em partes, caracteriza-se pela resistência de condenar abertamente o regime de Franco, de rebatizar ruas e lugares dedicados ao ditador, e de auxiliar na reparação das vítimas. “Atrás do Camboja, a Espanha é o país com o maior número de desaparecidos. Pessoas cujos restos não foram recuperados, nem identificados”, relembra.
Vistas grossas
A naturalização do período de coerção e violência também parece estar refletida nos manuais escolares. “Passamos quase três anos revisando boa parte dos livros didáticos, do ensino fundamental ao ensino médio, e descobrimos que a maioria deles não retrata, ao menos com suficiente relevância, muitos fatos relacionados à repressão da ditadura de Franco e os movimentos de resistência. Estes permanecem ignorados, silenciados ou tratados como se fosse preciso pisar em ovos para falar do assunto”, afirma Enrique Gutiérrez, professor da Faculdade de Educação da Universidade de León. Nas aulas de história, conta o pesquisador, parece não haver muito destaque para o tema. “São questões espinhosas e alguns materiais didáticos parecem fugir ou evitar entrar nelas”, explica.
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A lacuna no sistema escolar é presente, acima de tudo, no que se refere à repressão de Franco e ao papel das pessoas que lutaram contra ele. “As guerras e batalhas durante a Guerra Civil Espanhola são detalhadas, mas a história da resistência antifranquista é tratada apenas esporadicamente e nos livros mais recentes”, completa Gutiérrez.
Segundo ele, os 44 anos de Segunda República, Guerra Civil e Franquismo ocupam somente 9% do conteúdo relativo ao século 20 dos manuais escolares espanhóis, um montante expressivamente desproporcional. Gutiérrez afirma ainda que, entre os tópicos ausentes nos manuais escolares, a repressão sistemática dos perseguidos políticos e de suas famílias é um dos mais preocupantes. “Em geral, é dito que houve ‘excessos de ambos os lados’ como se tivessem existido duas partes opostas e equivalentes”, afirma Enrique Gutiérrez. Para o pesquisador Carlos Fuertes Muñoz, essa visão mais benevolente sobre a ditadura de Franco é encontrada com mais facilidade nas escolas privadas, bastantes numerosas na Espanha.
Por ter vivido uma implementação da democracia por transição e não por ruptura, como a vivida no vizinho Portugal, não houve exatamente um ajuste de contas com o passado ditatorial da Espanha. A falta da crítica ao regime opressor de Franco nos manuais escolares, segundo Gutiérrez, é uma consequência do pacto de transição para a democracia, que estabeleceu “a necessidade de um esquecimento de todos os crimes e barbaridades cometidos durante a ditadura”.
Desafio educacional
Para contornar a situação, professores costumam investir em unidades didáticas paralelas para a recuperação da memória histórica, ou seja, essa parte da história da Espanha que foi relativamente esquecida ou silenciada no currículo escolar usual. Individualmente ou por meio de redes e associações, elas colocam estudantes em contato com familiares e vizinhos de vítimas da ditadura, bem como realizam viagens escolares a prisões ou antigos campos de concentração.
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Segundo Marcos Marina, da Universidade Autônoma de Madri, os professores são os que mais podem contribuir para a capacidade dos alunos de avaliar os perigos do autoritarismo. “A ascensão dos movimentos de direita que vivemos hoje leva tempo para entrar nos textos escolares, por isso o trabalho dos professores precisa ser mais dinâmico. Essa é uma das ações fundamentais para que os estudantes internalizem uma série de valores de respeito ao pluralismo político e aos direitos humanos”, pondera.
Para os pesquisadores, o papel do ensino seria crucial para evitar ou tolerar a repetição de soluções autoritárias. “É particularmente importante que, sem ignorar as diferenças óbvias, sejam estabelecidos paralelos entre os movimentos e ditaduras fascistas e fascistizadas do século 20 com as ameaças da extrema-direita em nossas frágeis democracias do século 21”, conclui Carlos Fuertes Munõz, da Universidade de Valência.