Nas últimas semanas, diversas instituições de ensino superior anunciaram que tiveram suas graduações de Direito 100% online aprovadas pelo Ministério da Educação (MEC), algo inédito no Brasil. A novidade, que ainda não foi confirmada pelo governo no Diário Oficial da União (DOU), já tem causado polêmica no meio jurídico.
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Grupos favoráveis à modalidade EaD (ensino a distância) para cursos de Direito argumentam que isso ajuda a democratizar a educação na área e que o EaD já se comprovou eficaz durante a pandemia da Covid-19. Já seus opositores – como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) – dizem que a qualidade da formação de novos juristas está ameaçada.
Por meio de sua Comissão Nacional de Educação Jurídica, a OAB tem papel consultivo na análise dos pedidos de autorização de novos cursos de Direito feitos ao MEC. Quem tem a palavra final sobre a aprovação, no entanto, é o Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), órgão do MEC.
Com a ressalva de que uma avaliação sobre as propostas de graduação EaD não pode ser generalizada, a OAB afirma à Gazeta do Povo que vê com “grande preocupação” que as medidas adotadas por conta da pandemia “sejam utilizadas por grandes empresas educacionais como uma forma de ampliação desenfreada de cursos jurídicos sem a mínima qualidade jurídica exigível”.
Segundo a OAB, isso pode ocasionar “malefícios à sociedade, tal como a demissão em massa de diversos professores e a formação de bacharéis incapazes de exercer as diversas profissões jurídicas existentes, dentre as quais a de advogado”.
A instituição diz ainda que “as medidas paliativas adotadas durante a pandemia no que concerne ao EaD foram fundamentais, mas não devem tornar-se o alicerce da educação do país ou ser mais uma forma de facilitar a expansão desenfreada de cursos de qualidade duvidosa”.
Para Renato Saraiva, presidente da faculdade CERS – uma das instituições que anunciou que seu curso de Direito 100% virtual foi aprovado pelo MEC –, é preciso “acabar com o preconceito contra o ensino EaD, que já se mostrou possível e viável em função do isolamento forçado motivado pela pandemia em todo o mundo”. “Nossos processos já são digitais, o peticionamento já é eletrônico, as audiências já são feitas através de videoconferência, enfim, a revolução tecnológica e digital nos empurra, sem freio, para esse novo mundo”, diz.
Segundo Saraiva, a instituição recebeu visita do MEC e obteve relatório favorável para implementação da graduação em Direito EaD, mas está aguardando a aprovação ser oficializada por meio de publicação no DOU para abrir o primeiro processo seletivo.
Vantagens e desvantagens
Luiz Felipe Panelli, doutor em Direito do Estado pela PUC-SP, diz que o problema das novas graduações 100% online “não é o EaD em si”, mas sim “o contexto de massificação”.
“O EaD, em si, não é um vilão. É só uma tecnologia. Não tem nada de errado em si no EaD. O problema é que isso veio em um contexto de empobrecimento do curso de Direito. Primeiro, você tem um crescimento muito grande dos concursos públicos e dos cursinhos, que são naturalmente empobrecedores. Daí, há um empobrecimento da literatura, e o surgimento de novas faculdades, cada vez piores. E aí vem o EaD. Em si, ele não é ruim nem bom, mas, neste contexto, ele está servindo ao empobrecimento”, observa.
Boa parte dos cursos aprovados, segundo ele, tendem a uma formação “técnico-profissionalizante, se distanciando do que o Direito era no começo: um curso muito forte em ciências humanas”. “Isso empobrece a formação de uma geração inteira de bacharéis em Direito”, diz.
Em algumas instituições que oferecem o ensino a distância, comenta Panelli, a graduação em Direito acaba deixando seus atributos de curso superior para se tornar um “preparatório para concursos públicos”. “Cria um exército de profissionais alienados que não conseguem discutir temas elevados de política, filosofia e outras matérias de humanas”, afirma.
Para Renato Saraiva, a ideia de que as faculdades EaD tendem a oferecer um curso puramente técnico “revela um preconceito dos mais conservadores”. “Acredito que o curso de Direito EaD pode, sim, trazer conhecimentos humanísticos”, diz.
Ele acrescenta que esse modelo de graduação “democratiza o acesso ao ensino jurídico de qualidade” e “possibilita o acesso de estudantes que têm dificuldade de frequentar um determinado local físico ou que necessitem de total flexibilidade de tempo e ritmo”. “O Brasil é muito grande, e podemos perceber no interior que alunos chegam a rodar 200 a 300 km por dia para frequentar um curso de Direito”, comenta.
Saraiva não se preocupa com o possível efeito negativo das críticas da OAB para a imagem da nova graduação da CERS. “Acreditamos que teremos uma procura muito grande dos estudantes pelo curso de Direito à distância”, afirma. “Essa modalidade torna possível e viável o sonho de milhares de brasileiros que, por diversos motivos, não conseguiam, antes, cursar Direito”.
Sucateamento dos cursos de Direito é preocupação anterior ao EaD
Para a OAB, há discussões mais importantes do que a liberação do EaD sobre a educação em Direito no Brasil que têm sido negligenciadas. “Antes de se discutir sobre a expansão do ensino jurídico na modalidade a distância, o país deve preocupar-se com a baixa qualidade dos cursos jurídicos já existentes, muitos deles um verdadeiro estelionato educacional, já que prometem uma formação que não é entregue”, afirma a instituição.
Panelli considera que os cursos de Direito têm sido dominados por um espírito “concurseiro”, de pessoas que buscam essa graduação com o único objetivo de passar em concursos públicos.
“Desde o começo da faculdade, o aluno entra no curso de Direito não mais pensando em ter uma formação em Direito, ser um jurista. Ele está tentando passar num concurso público”, diz. “As pessoas não querem mais discutir teoria geral do Direito, por exemplo. Filosofia do Direito eles veem como uma discussão estúpida, algo que não tem nenhum relevo prático. Aí você tem um exército de bacharéis que só buscam concursos públicos.”
De acordo com Panelli, “há um empobrecimento geral do debate jurídico” que se reflete em diversos contextos. “A gente já está vendo isso hoje nos tribunais, o que a gente chama de crise hermenêutica. Várias decisões judiciais importantes, inclusive no Supremo (Tribunal Federal), não têm tanta preocupação com doutrina, com uma justificativa sólida, até porque a doutrina está em crise. Os grandes autores não produzem mais.”
Panelli acrescenta que “várias carreiras estão sendo contaminadas pelo exército de concurseiros”. “Entre delegados de polícia em São Paulo, hoje, grande parte são pessoas que entram sem querer ficar na carreira – querem ser juízes, promotores e outras coisas. Ficam um tempo na Polícia até poderem ir para outro concurso. Há muita rotatividade e pouca gente vocacionada para determinadas carreiras. Há reflexos disso em todo o campo jurídico”, observa.
Na nossa sociedade, segundo ele, vendeu-se a ideia de que o curso de Direito, por abrir as portas para concursos públicos, “seria a grande salvação da população mais pobre”. “E, muitas vezes, é o aluno mais pobre a principal vítima dessas faculdades. Ele faz uma faculdade ruim, pagando um preço que, para ele, é alto. Depois, quando ele recebe o diploma, mal consegue passar na prova da OAB. É quase um sistema de estelionato dos grandes grupos educacionais”, conclui.