Uma decisão tomada recentemente pelo Ministério da Educação (MEC) acalorou o debate a respeito da liberdade de expressão acadêmica. Após endossar recomendação do Ministério Público Federal de Goiás (MPF-GO) - que sugeria, entre outras coisas, punição a atos político-partidários realizados nas dependências das universidades federais do país -, o MEC recuou. Na última quinta-feira (4), a pasta voltou atrás e afirmou que o ofício circular em questão estava cancelado.
Agora anulada, a medida contrariava uma decisão de 2020 do Supremo Tribunal Federal (STF). Segundo a Corte, restringir o "direito de livremente expressar pensamentos e divulgar ideias", incluindo as de cunho político-partidário, ainda que durante período eleitoral e com o uso de espaço público das universidades, configura-se inconstitucional.
Mesmo com a determinação do Supremo, a avaliação de alguns especialistas é a de que a tentativa do MEC é legítima à medida em que mira casos concretos de proselitismo político. Mas, ao fazer isso, é preciso garantir a autonomia universitária, a liberdade de expressão, o embate de ideias e a discordância construtiva. Fontes que defendem com mais veemência existir um "uso político do sistema educacional" veem "ingenuidade" do governo ao tentar atuar por meio de "ferramentas tradicionais do direito administrativo" - em especial após a decisão do STF.
O registro de casos de proselitismo, no entanto, não anula uma necessidade cada vez mais premente: a de se valorizar a pluralidade de vozes e diversidade política dentro da academia. Cada vez mais se mostra necessário, apontam especialistas, investir em iniciativas de despolarização e contra a intolerância ideológica, preservando um canal de diálogo. Ao avaliar o ofício do MEC, apontam que o documento "veda no atacado" e poderia ferir a liberdade de opinião e expressão.
A pasta afirma o envio da recomendação visava atender à solicitação da corregedoria frente ao recebimento de denúncias. Procurado pela reportagem, o ministério não explicou de que tipo de denúncias se tratavam. O documento assinado pelo diretor de Desenvolvimento da Rede de Instituições Federais de Ensino Superior (IFES), Eduardo Gomes Salgado, afirmava que o intuito era fomentar "que as Universidades Federais garantam a adequada utilização de seus bens públicos, observando sempre a afetação daqueles à finalidade instituição".
Embora o MEC não tenha dito quais denúncias teriam motivado o envio da recomendação, recentemente, a corregedoria da Controladoria-Geral da União (CGU) instaurou um processo administrativo disciplinar contra dois professores da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), por terem preferido "manifestação desrespeitosa e de desapreço" contra o presidente Jair Bolsonaro em um evento online e institucional.
Recomendação é legítima?
Enquanto parte da comunidade universitária recebeu o comunicado em tom de "intimidação", especialistas como Gabriel Giannattasio, professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina (UEL), conselheiro no CNE e fundador de um grupo de estudos sobre liberdade acadêmica, entendem que, no limite, trata-se apenas de uma recomendação por parte do MEC, e não de uma tentativa de interferência na autonomia universitária.
"Não há, por parte do MEC, ingerência nas decisões das instituições. O que estão dizendo é: fiquem atentos e tomem providências que você considerarem necessárias diante desse quadro. O documento ajuda, na medida em que alerta para uma dada situação. Todos têm o direito de ter a inclinação política que bem entenderem. Mas, por princípio, a liberdade nunca é absoluta. Todo direito está contingenciado por uma obrigação".
Gabriel Giannattasio, professor do Departamento de História da UEL e conselheiro no CNE.
O que se deveria evitar, na opinião do professor Antonio Jorge Pereira Júnior, doutor em Direito pela USP, seria o uso indevido das instalações ou o desvio de recursos para agremiações partidárias. A Lei Eleitoral estabelece, em seu artigo 37, que "nos bens cujo uso dependa de cessão ou permissão do poder público, ou que a ele pertençam, e nos bens de uso comum, inclusive postes de iluminação pública, sinalização de tráfego, viadutos, passarelas, pontes, paradas de ônibus e outros equipamentos urbanos, é vedada a veiculação de propaganda de qualquer natureza, inclusive pichação, inscrição a tinta e exposição de placas, estandartes, faixas, cavaletes, bonecos e assemelhados".
Pereira Júnior lembra que qualquer ameaça de punir manifestações, sem apresentar clareza de critérios, pode acabar em censura. "Precisaria de maior clareza da restrição, que pode culminar em censura direta. Se o que se quer evitar é a usurpação do espaço por partidos políticos, e o desvio indireto de recursos para atos partidários por meio de agentes da universidade, isso deve estar claro bem como os caminhos de verificação. A vedação no 'atacado', genérica, parece mesmo ferir a liberdade de opinião e expressão", diz o professor.
"O que parece incomodar e pode distorcer o papel e missão da universidade, eventualmente, seria a manipulação político-partidária. A colaboração e participação de partidos talvez não seja possível proibir, posto que são sujeitos da cidadania, reconhecidos na Constituição e manifestam efetivamente a opinião de parte dos cidadãos, que por eles exercem sua ação de caráter político", afirma Pereira Júnior.
Pedro Damazio Franco, pesquisador e mestre em História pela PUCRJ, concorda que é preciso fazer distinções claras e coibir o que já é previsto em lei. "Mas, na prática, é muito difícil definir o que é ou não ato político-partidário. A decisão do que pode ou não está muito sujeita às predisposições ideológicas subjetivas da 'comissão' que vai tomar essa decisão", diz Franco.
Fundador e presidente do movimento Escola Sem Partido, o advogado Miguel Nagib defende existir "uso do sistema político educacional". Para ele, "é ingenuidade da parte do MEC tentar coibir esse tipo de manifestação utilizando as ferramentas tradicionais do Direito Administrativo".
"É só uma questão de tempo até que algum sindicato obtenha uma liminar para sustar preventivamente qualquer procedimento de natureza disciplinar contra servidores das universidades, e imponha mais uma derrota jurídica ao governo no STF. Com outras palavras: no caos jurídico criado pelo STF para favorecer os adversários de Bolsonaro, não é desse jeito que se vai coibir o uso político do sistema educacional", diz.
Clima de guerra e iniciativas de despolarização
Na luta desenfreada contra casos de proselitismo político - por vezes crassos - nas academias, há um perigo: o cerco à liberdade de expressão. O cenário polarizado dificulta ainda mais a resolução do dilema e leva muitos a não quererem mexer no "vespeiro".
Enquanto a academia brasileira não discute o tema, a comunidade internacional o debate amplamente. Damazio vê ingenuidade da parte do MEC em tentar lidar com a questão na base da 'canetada'. "Há, sim, muito partidarismo nas academias. Mas ao adotar atitudes como essa, o governo dá um tiro que sai pela culatra", diz ele.
Trata-se, portanto, de uma questão cultural muito mais profunda. Não é possível resolver o problema macro em ofício. Segundo o pesquisador, recomendações dessa natureza, no fim das contas, atrapalham o trabalho estruturante que precisa ser feito e criam uma atmosfera de animosidade, dificultando ainda mais a discussão da matéria. "O governo tende a ter uma visão bastante dirigista e, muitas vezes, crê que vai resolver determinado problema passando uma lei", avalia.
"É uma mudança cultural que precisa acontecer. Precisamos colocar em prática iniciativas de despolarização na universidade, a fim de prepararmos alunos e professores para lidar com pontos de vistas controversos", diz. "Precisamos colocar em dúvida nossas próprias presunções ideológicas. Já tentaram, por exemplo, fazer com que políticos do PSOL e do PSL dividissem o palanque. Mas, na prática, isso vira uma partida de futebol".
Ele explica só será possível ampliar o debate quando alunos forem educados com relação ao viés cognitivo ao qual estão sujeitos quando discutem política. Temas como raciocínio motivado, viés de confirmação e a influência das emoções na cognição e no raciocínio humano devem estar em pauta.
"Há grande quantidade de conteúdo que precisaria ser popularizado entre a comunidade acadêmica, e isso ajudaria a ter debates mais construtivos", diz Pedro, um dos poucos pesquisadores no Brasil que trabalha para familiarizar o público com o tema. Ele afirma que iniciativas locais que fomentem a "discordância construtiva" entre pontos de vista ideológicos diferentes são praticamente inexistentes. Em geral, para evitar polêmica e rótulos - dado que os interlocutores que levantam o assunto costumam ser imediatamente associados a determinado campo/vertente política - muitos se afastam das discussões. "Virou um problema partidarizado", lamenta.
"A fronteira final precisa ser quebrada. As pessoas precisam entender que não é um problema de esquerda ou direita, é da educação", afirma o pesquisador. "A notícia boa é que está ficando difícil de ignorar o tema. Nossas guerras culturais estão virando meme. É quase impossível conversar com alguém que pensa diferente. A preocupação pública com o tema vai aumentar e, o que antes era risco, agora será uma oportunidade".
"Em clima de guerra, primeiras vítimas costumam ser o bom senso e a razoabilidade"
Num clima polarizado, no qual as visões tendem a estar radicalizadas, o diálogo fica comprometido, e a defesa do bom senso, da razoabilidade, dos consensos compartilhados e dos acordos mínimos vai perdendo espaço. Em situações como essa, aponta o professor Gabriel Giannattasio, é preciso redobrar o cuidado.
"Estamos vivendo um contexto muito particular em que a sensibilidades estão afloradas e no qual cada um tende a torcer as normas, no sentido de adaptar ao seu viés e aos seus interesses. Este clima tem contaminado as decisões que têm sido tomadas pelos agentes, cidadãos e instituições. É a política do olho por olho, dente por dente", afirma.
"Num clima de guerra cultural, as primeiras vítimas costumam ser o bom senso e a razoabilidade. É difícil ouvir argumentos de quem adota pensamentos fundados na razoabilidade, no bom senso. De um lado, em climas como esse a liberdade tem que ser garantida. De outro, é preciso ter consciência de que a liberdade de expressão acadêmica é contingenciada".
Gabriel Giannattasio, professor do Departamento de História da UEL e conselheiro no CNE.
O especialista compara o cenário atual a uma lógica de guerra, na qual é preciso estar em um lado da trincheira. "Não há espaço para uma outra saída ou para quem ainda quer apostar nas vias democráticas: ou sou eu ou é ele. Nunca tivemos, na história da República, um período tão longevo do funcionamento das instituições democráticas. Mas, certamente, essa longevidade está colocada em risco", diz ele. "Não sou favorável ao politicamente correto, que fique claro. Contudo, precisamos conseguir expressar ideias sem incendiar ainda mais o palco em que estamos".