Desde que a pandemia do novo coronavírus teve início, o Ministério da Educação (MEC) tem sido amplamente cobrado para criar e coordenar protocolos de ação e, em especial, de retorno às atividades escolares. Titular da pasta, Milton Ribeiro tem defendido que, embora os entes subnacionais aguardem por uma diretriz do MEC, a gestão é responsabilidade de estados e municípios: "não podemos nos intrometer".
O ministro diz basear sua posição na decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de garantir autonomia a estados e municípios no que diz respeito às medidas de enfrentamento ao coronavírus. Ele afirma que a determinação exime a pasta da necessidade de definir uma data para o retorno às aulas e de suprir escolas com ferramentas de acesso à internet, por exemplo.
Representantes da educação, por outro lado, apontam omissão e falta de interlocução por parte do ministério. Mas, afinal, o que deve fazer e até onde pode atuar o governo?
O que é o Regime de Colaboração?
Desde 1988, a gestão da educação no país funciona sob o chamado Regime de Colaboração, previsto no ordenamento jurídico brasileiro. Isso é, sob o escopo do modelo federativo, são distribuídas competências e responsabilidades entre os entes, numa espécie de descentralização articulada, na qual eles possuem, ao mesmo tempo, autonomia e interdependência, uma vez que devem estar submetidos à diretriz geral da educação.
"A atribuição dos três entes federados, estabelecida pela Constituição, é algo que poucos países têm no mundo. Isso coloca, portanto, permanentemente na ordem do dia, e em especial quando diz respeito a políticas públicas, o que chamamos de regime de colaboração", afirma Ocimar Alavarse, doutor em Educação pela USP.
Entre os fundamentos legais do regime está o artigo 23 da Constituição Federal, dispositivo que preconiza ser competência comum da União, estados e municípios "proporcionar os meios de acesso à educação".
Ainda como prevê a CF, quanto à organização dos níveis de ensino, estados devem atuar prioritariamente no ensino fundamental e médio, ao passo que municípios, no ensino fundamental e na educação infantil. A União, por sua vez, é responsável pelo ensino superior e deve exercer papel de "coordenação e função supletiva e redistributiva, definindo conjuntamente formas de colaboração de modo a assegurar a universalização do ensino obrigatório".
A competência maior para legislar em matéria de educação é regida pelo artigo 24 da CF, o qual atribui à União a responsabilidade de elaboração de normas gerais. Estados e municípios, por sua vez, podem suplementar as diretrizes federais para atender suas necessidades regionais específicas.
Um dos instrumentos criados para que o regime de colaboração fosse efetivado é o Plano Nacional da Educação (PNE) - em síntese, um conjunto de diretrizes, metas e estratégias para a educação do país. Segundo o artigo 8º da Lei de Diretrizes e Bases (LDB), cabe à "União a coordenação da política nacional de educação, articulando os diferentes níveis e sistemas e exercendo função normativa, redistributiva e supletiva em relação às demais instâncias educacionais".
Complexidade em um Brasil "continental"
Ainda que o arranjo seja formalizado por normativa, especialistas apontam para sua complexidade histórica, em um Brasil "continental", e para falta de definição clara de funções, que implica na dificuldade de ações coordenadas entre as três esferas de governo. Haveria necessidade de aperfeiçoamento dos mecanismos de cooperação entre os entes, para que entendimentos e ações variadas não promovam desarticulação.
"Gostemos ou não, isso exige do MEC uma capacidade de articulação. E, nesse processo, raramente haverá alinhamento político-partidário. Mas, do ponto de vista das políticas públicas, coloca-se a necessidade de colaboração".
Ocimar Alavarse
Há, ainda, outros fatores que tornam mais complexa a efetivação do regime de colaboração atualmente: 1) a dificuldade de interlocução entre MEC e estados e municípios, acentuada pela polarização política, e 2) o despreparo técnico de cada um dos entes diante de uma pandemia imprevisível.
"A imensa maioria não considerava, com grande probabilidade, a hipótese de uma pandemia como essa, que veio numa rapidez e encontrou o nosso despreparo. Esse quadro encontrou o Brasil, do ponto de vista da educação, já sem articulação entre os entes federados. É muito difícil. Mas é preciso sentar à mesa e ir costurando elementos comuns e variáveis. E sentar à mesa é difícil".
Ocimar Alavarse
Para Guiomar Namo de Mello, doutora em educação pela PUC-SP, embora seja muito mais difícil chegar a uma perspectiva comum com a polarização que existe hoje, o MEC continua sendo responsável pela liderança política e por um diálogo permanente, para que possa haver espaço de pactuação das políticas.
"É verdade que, muitas vezes, o governo merece ser criticado, porque faz por merecer. Mas essa narrativa de que tudo é motivo para falar mal do governo já virou cansativa e previsível. Porém, realmente, o ministério está sem iniciativa que possa servir de apoio nesse momento da pandemia. É lamentável o que está acontecendo".
Guiomar Namo de Mello
"Os problemas do federalismo brasileiro na educação são históricos, mas, dependendo do gestor que se encontra, eles são atenuados, e os conflitos são mediados com mais facilidade, e assim é melhorado o desempenho geral do sistema. Por meio de boa vontade, coordenação e força política", afirma Guiomar.
Na prática, o que deve fazer o MEC?
Do ponto de vista normativo, há consenso, entre a maior parte dos especialistas, de que a gestão direta da educação básica não é da alçada do MEC. Isso, contudo, não eximiria a pasta da coordenação política em âmbito federal, da liderança e assistência técnica e financeira aos entes subnacionais, em especial aos que se encontram em situação de maior vulnerabilidade. Segundo eles, o governo se limitou a elaborar protocolos exclusivamente sanitários e teria abandonado o viés pedagógico.
"Embora cada ente tenha autonomia, isso deve funcionar em um conjunto. Isso é, mesmo que o MEC praticamente não tenha nenhum aluno na educação básica, no limite, ele é responsável por todos os alunos. Ele tem esse papel insubstituível de articulação, quer seja do ponto de vista financeiro ou técnico".
Ocimar Alavarse
Para Alavarse, o MEC deveria ter elaborado protocolos de ação desde o início da pandemia, sem deixar isso apenas a cargo de estados e municípios - ainda que a decisão do STF tenha sido nesse sentido. "Como municípios também dependem de iniciativa das secretarias estaduais, o exemplo do MEC alimenta a falta de articulação no interior dos estados. Por exemplo, há municípios que têm sistemas muito fragilizados. É como se tivesse existido uma pandemia de desarticulação", diz.
O especialista também reconhece a atuação do governo, mas afirma que ações não foram concatenadas. "Não digo que governo não tenha feito nada, mas quando o fez, foi quase que de forma independente. E iniciativas isoladas acabam sendo recursos que muitos municípios não conseguem executar por falta de capacidade das secretarias", diz.
Mapear a pandemia e seus desdobramentos na educação, detalhadamente, deveria ser uma das ações prioritárias. A pasta poderia, por exemplo, ter criado um comitê científico para monitorar condições e estabelecer indicadores.
Em seguida, seria preciso criar um protocolo para testagem em massa, disponibilização de recursos, políticas mais arrojadas de conectividade, capacitação de professores, e, em especial, reorganização curricular são apontadas como medidas necessárias.
"Mesmo diante da decisão do STF, nada impediria que o ministério tivesse armado, em articulação com estados e municípios, um conjunto de medidas visando, por exemplo, não o dia de volta às aulas, mas uma coordenação mínima em relação ao ano letivo. Poderia também redistribuir recursos extras para locais que enfrentam dificuldade e preparação para os gestores educacionais".
Guiomar Namo de Mello
"Toda essa história de volta ou não volta às aulas está sendo feita de maneira caótica. Isso é vergonhoso. O MEC e os entes, cada um tem sua parcela de responsabilidade", diz Guiomar. "O momento pede entendimento político, não há como resolver se não for por meio dele.
O que o MEC tem feito
Ainda sob a gestão do ex-ministro Abraham Weintraub, o MEC disponibilizou um curso online de alfabetização aos professores e criou uma plataforma digital para incentivar o ensino superior federal a continuar funcionando – o que foi visto com críticas por grande parte das universidades públicas (poucas delas utilizaram).
Com relação à educação básica, logo no início da pandemia o MEC liberou, por meio do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), recursos às instituições. A pasta também lançou protocolos de segurança sanitária para o retorno das atividades.
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