Dia sim e outro também, Simone Lima precisa esclarecer a seus interlocutores a posição que ocupa em um dos melhores e mais exclusivos hospitais privados do Rio de Janeiro. “Não, eu não sou a enfermeira”, explica a uma pessoa. “O senhor precisa falar com um técnico de enfermagem, não comigo”, recomenda, em outro caso. Também são comuns em sua rotina frases como: “Sim, eu sou a médica” e “O colega está passando o caso para um estudante, a médica sou eu.”
Simone tem 50 anos e há mais de 20 trabalha como médica. Mesmo assim, ainda precisa se explicar todos os dias, sendo uma das raras intensivistas negras da rede privada do Rio. Agora, na crise da covid-19, trabalhando de touca, face shield, máscara e avental, a situação ficou ainda mais difícil.
“Cansei disso. Aí, peguei uma dessas máscaras descartáveis, escrevi em letras bem grandes doutora Simone Lima e pendurei no pescoço, que é para ninguém mais ficar na dúvida”, conta a médica. “O racismo existe sempre, é algo que vivenciamos todos os dias. Mas agora algo está mudando. A gente está começando a se ver nos lugares onde não se via. Outro dia mesmo, entrou aqui no hospital um neurocirurgião preto. Preto mesmo, que nem eu.”
A percepção de Simone está correta. Profissão normalmente associada a homens brancos oriundos de famílias abastadas, a Medicina está mudando de perfil, ainda que lentamente. De acordo com o estudo Demografia Médica, da Universidade de São Paulo (USP), mulheres, negros e pessoas vindas de famílias de baixa renda estão cada vez mais presentes nas faculdades, apontando para um futuro mais diverso da profissão.
Paralelamente à grande expansão quantitativa do ensino médico de graduação — foram 20 mil novas vagas nos últimos dez anos —, há transformações recentes nos perfis demográficos e socioeconômicos dos estudantes. Confirma-se, desde a graduação, a tendência de haver mais mulheres na profissão. Em 2019, elas já representavam 60% dos formandos, porcentual que vem aumentando nos últimos anos.
Entre os períodos estudados, houve também uma alta gradual do porcentual de alunos autodeclarados pretos e pardos (negros): em 2013, eram 23,6%; em 2016, representavam 26,1% e, em 2019, somavam 27,7% do total. Segundo o IBGE, no ensino superior em geral, os negros já são 50% dos alunos, ainda um pouco abaixo do que sua presença no total da população brasileira, 56%. O porcentual registrado em Medicina ainda é bem menor do que a média dos cursos, mas a alta é significativa.
Alunos oriundos de famílias de menor renda ou que cursaram todo o ensino médio em escolas públicas também vêm sendo mais recorrentes nas salas de aula. A mudança foi maior nas graduações públicas — que hoje são a menor parcela do ensino médico no país.
“As desigualdades ainda são grandes e a Medicina é um dos últimos cursos a promover essa maior inclusão social”, explica o coordenador do estudo, Mario Scheffer, especialista em saúde pública da USP. “Ainda assim, é um ganho.”
Quando se formou, em 1998, na Faculdade Souza Marques, Simone era a única negra entre 200 alunos. Embora seu pai fosse oficial general da Aeronáutica e pudesse pagar o curso privado, não foi fácil chegar lá. Ela fez o ensino médio em uma escola de bairro e não tinha a bagagem necessária para entrar em uma universidade pública. Foram quatro vestibulares até passar.
O sistema de cotas para alunos negros — implementado na UERJ desde 2003, mas na USP apenas no ano passado — é um dos maiores responsáveis pela inclusão. Mas isso não quer dizer que a vida dos alunos negros hoje seja mais fácil do que foi a de Simone. Os obstáculos ainda existem e é preciso muita obstinação para superá-los.
Ingresso no curso de Medicina foi difícil
Larissa Sousa Cardoso Alexandre, de 24, está no segundo ano de Medicina na USP. Foram cinco anos fazendo cursinho, trabalhando e tentando entrar na faculdade até conseguir a vaga. Larissa conta que fez o ensino médio em uma escola pública de bairro e tampouco estava preparada para lidar com concorrência de um vestibular da USP. “No último ano, não trabalhei, só estudei. Aí, consegui passar na USP e também na Unicamp.”
Diferentemente de outros cursos, o de Medicina, além de ser mais longo, exige dedicação integral. São oito horas de aula por dia, durante seis anos, além da residência médica. Não dá para conciliar com trabalho, por exemplo. Larissa tem uma bolsa de R$ 425,00 mensais. E só.
“Conto com o auxílio da faculdade e minha família me ajuda como pode”, conta a estudante. “Mas não é aquela ajuda do tipo morar num apartamento na Oscar Freire ou em Pinheiros, do lado da faculdade. Eu moro no Itaim Paulista, levo duas horas de ônibus para chegar lá.”
Este também é o dia a dia de Matheus Cordeiro, de 23, do terceiro ano na UERJ, um dos três presidentes do centro acadêmico da universidade. De Bangu, na zona oeste, onde mora, até o câmpus do Maracanã, na zona norte, são pelo menos duas conduções e uma caminhada.
“O sistema de cotas mudou muita coisa na UERJ. Ganhamos bolsa de R$ 500, que é vital. Mas estamos longe do ideal”, diz Cordeiro. Para ele, o racismo persiste no curso, por parte de alunos brancos e até de professores. “A diferença é que agora, sendo 20 30 alunos numa turma de 100, sabemos reconhecer comportamentos racistas”, diz Cordeiro. “Quando era só um aluno, por exemplo, era mais fácil passar por algo pontual, e não estrutural.”
Reconhecimento
Uma das queixas mais recorrentes das alunas negras da UERJ diz respeito às toucas para o centro cirúrgico, muito pequenas, que não servem para acomodar os cabelos das jovens. A pró-reitora de política e assistência estudantil da UERJ, Cátia Antonia da Silva, reconhece que ainda há muito a ser feito. Para isso, diz, a pró-reitoria que lidera foi criada, em março de 2020.
“Precisamos adequar melhor a infraestrutura do curso”, diz Cátia. “Não podemos ter uma aluna linda, com suas tranças afro, e a touca não caber na sua cabeça. A questão passa também pelo reconhecimento da beleza negra, da cultura negra, da ancestralidade.”
Na opinião dos alunos, para o curso se tornar ainda mais inclusivo e diverso, os estudantes deveriam poder também contar com cotas para entrar nas monitorias e na residência médica, setores em que o porcentual de negros costuma cair. “Não consegui fazer residência e isso foi muito ruim para a minha formação”, conta Simone Lima. “Eu tinha de começar a trabalhar e ganhar dinheiro, não dava mais para ficar sem remuneração.”
A maior diversidade nos cursos e na profissão de forma geral traz contribuições importantes tanto na formação quanto na prática diária da Medicina. “A profissão vai ganhar com essa maior diversidade, com os negros e também os indígenas, sobretudo se eles vierem das bases populares. Vão ser mais sensíveis à periferia, à favela”, acredita Cátia. “Eles vão contribuir para pensar soluções diferentes para o País, que é de uma riqueza cultural tão grande.”
Simone conta que tem muito orgulho de sua trajetória na Medicina. “Sou referência para minha filha e para muitas pessoas da minha família”, diz a médica. “Mas tem muita gente boa vindo por aí, e é muito bom a gente começar a se enxergar, a gente mulher e a gente preta.”