Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Entrevista

Melhor ensino do Brasil, Sobral utiliza componente fônico na alfabetização desde 2001

Escolas de ensino fundamental em Sobral são as melhores do Brasil. (Foto: Divulgação)

Ouça este conteúdo

A pesquisadora Ilona Becskehazy lembra o impacto que sofreu ao perceber que as crianças das escolas públicas de Sobral, no interior do Ceará, eram melhor alfabetizadas do que sua filha, aluna de uma escola privada de São Paulo. “Desde a primeira visita, ficou óbvio que as reformas educacionais que eu estudava em países desenvolvidos já estavam sendo implementadas ali, e era possível replicá-las para o resto do país”.

A fórmula de sucesso de Sobral, explica Ilona, inclui um currículo exigente e preciso, expressado em livros didáticos de alto nível, com um monitoramento da aprendizagem segundo os padrões internacionais.

“Sobral mede, por exemplo, desde 2001, a fluência dos alunos em leitura, quantas palavras a pessoa lê por minuto com compreensão, algo que até agora não se faz em outros lugares no Brasil, mas é prática comum em todos os países desenvolvidos”, explica a pesquisadora, que é autora de uma tese doutoral defendida na USP sobre a rede de ensino cearense.

Em Sobral, ela atestou o desenvolvimento de um conjunto de habilidades que levam à qualidade na leitura, como o componente fônico, o ensino da decodificação das palavras, pouco utilizado no Brasil e até proibido em algumas redes de ensino. “No município de São Paulo, por exemplo, é proibido apresentar letras do alfabeto até o primeiro ano”, lamenta Becskehazy.

Em entrevista à Gazeta do Povo, Ilona Becskehazy explica por que os mais pobres em Sobral recebem ensino de qualidade e a resistência de educadores às evidências científicas, por motivos políticos, ideológicos e comerciais – lembrando que o setor de materiais didáticos é o que mais vende livros no Brasil. “Infelizmente para o Brasil, os autores de livros desatualizados ainda têm muito poder e causam muito ruído”, alerta.

Acompanhe a entrevista:

Sobral é um case de sucesso no país. Mas afirmar isso apenas com base nos resultados do Ideb é mesmo seguro? O Ideb é uma ferramenta segura?

O Ideb é um índice que combina fluxo de alunos (serem ou não aprovados e matriculados no ano seguinte) com a média das notas das provas de compreensão de texto e matemática. Há ruídos nesse indicador. Para selecionar o caso de Sobral, eu ainda comparei (para além de cada um desses componentes) a presença nas provas (mais alta do país) e os indicadores de distorção idade/série (também os mais baixos do Brasil). Não tenho a menor dúvida de que Sobral tem a rede de grande porte mais eficiente e eficaz de nosso território.

Você atribui esse sucesso à “política feijão com arroz”. O que significa isso?

Feijão com arroz é uma expressão variante de outra mais dura, “ter vergonha na cara” e fazer o que um sistema de governo local deve fazer por sua população. Infelizmente, é um caso quase único, que foi levado ao nível do estado do Ceará pelas mesmas pessoas que montaram a rede municipal: dois dos irmãos Gomes, Cid e Ivo.

E como se faz isso. É uma receita que começou a ser desvendada nos anos 1970 e que ficou conhecida entre os formuladores de políticas públicas e acadêmicos (infelizmente pouco difundida no Brasil, pois sofreu oposição sistemática dos acadêmicos locais) como “escola eficaz”.

Tem os seguintes ingredientes básicos: 1) objetivos de ensino absolutamente claros (no início, em Sobral, eram medidas de fluência leitora), 2) um sistema de monitoramento que permite feedback rápido para as escolas, professores e para a gestão municipal e 3) material didático unificado (pelo menos o básico, pois os professores podem, em conjunto com suas coordenações, complementar as sequências didáticas dos livros didáticos e as que são preparadas centralmente). A formação continuada é feita em cima dessas sequências didáticas.

Quais são os “personagens” envolvidos no desempenho desse município pobre?

Prefeito e Secretário de Educação que, deliberadamente, montaram uma equipe motivada, com cada vez mais recursos para trabalhar bem em sala de aula, com autonomia pedagógica e administrativa, mas com desempenho monitorado de forma incansável e muito competente. Todos os alunos têm sua fluência leitora gravada e avaliada off site durante, no mínimo, os dois primeiros anos de escolaridade.

A educação no país como um todo consegue, mesmo, ser “sobralizada” com políticas públicas que partem do Estado?

A educação no Brasil deve ser "sobralizada". Isso significa adotar as mesmas medidas estruturantes, que, por sinal, são as mesmas adotadas em países desenvolvidos. Eficácia escolar é uma “receita” extremamente difundida fora do Brasil. Aqui é que, infelizmente, o que impera são os modismos e neologismos vazios para abrir mercado para charlatões. Sala de aula invertida, aprendizagem ativa e outras baboseiras que não querem dizer nada se não houver um objetivo claro a ser ensinado e uma forma clara de o avaliar.

O Estado brasileiro tem obrigação constitucional, sem falar na moral, de ensinar todos os alunos em um nível próximo ao de seus pares em países desenvolvidos.

Pacificar a “polêmica”, se assim posso dizer, em torno da alfabetização, é um fator que contribui para que um município tenha bons desempenhos como o de Sobral?

Só existe a polêmica sobre alfabetização onde não se estuda. Do ponto de vista técnico, de como os alunos aprendem e as melhores técnicas para os ensinar a ler e a escrever com compreensão e autonomia, o assunto está bem pacificado. Infelizmente para o Brasil, os autores de livros desatualizados ainda tem muito poder e causam muito ruído. Dar muito espaço político a eles é uma irresponsabilidade conjunta de muitos governos, da imprensa e de varias ONGs, que supostamente estariam contribuindo para melhorar a educação no país, mas que optam por dar eco à ignorância.

Para isso, adotar a Política Nacional de Alfabetização (PNA) seria um caminho?

A PNA traz um desenho lógico e competente de política educacional. Se não fossem esses ruídos sobre uma suposta polêmica sobre métodos de alfabetização, já bem superada onde o uso das evidências científicas é mais poderoso que as relações políticas entre autores de livros e militantes do atraso, bastava desdobrar cada item da política localmente para cada município se "sobralizar". Como não temos material didático que faça a abordagem correta, ou pelo menos o que há não está disponível no PNLD, o governo federal terá que fazer importante alterações aí. Espero que consigam fazer isso imediatamente, mas pelo que entendi, há alguns constrangimentos institucionais.

Qual a importância de medir a fluência de leitura das crianças nos anos iniciais do ensino fundamental?

A fluência leitora é um conceito-chave que indica quantas palavras a pessoa lê por minuto com compreensão. Sobral faz a prova de fluência desde os anos 2000. O resto do Brasil não faz essa prova: a palavra fluência é meramente mencionada na BNCC, no meio dos textos de abertura, que ninguém lê. O único local onde se tem a fluência especificada, com a preocupação de que precisa ser medida, é na PNA.

A fluência é fundamental no processo da evolução da leitura, do gosto pela leitura. Pense como lemos: se uma pessoa começar a tentar entender cada palavra, quando chegar ao meio do parágrafo já terá esquecido o resto. Para ter gosto pela leitura, é preciso ler rápido e ir processando no cérebro o significado para que a compreensão mantenha a pessoa interessada naquela leitura. E isso é a fluência. É ler com compreensão.

Os detratores do componente fônico - e de tudo o que está sendo proposto pelo governo federal - gostam de separar leitura de compreensão: ninguém mais fala nessa separação fora do Brasil. É uma coisa tão anacrônica: leitura é compreensão. E não se lê texto adivinhando as palavras. É aflitivo ver como educadores e os autores de livros didáticos brasileiros estão há mais de 20 anos atrasados.

A PNA será uma guinada muito importante, e quem não estiver por dentro, não vai vender livro.

Livros didáticos adotados em Sobral

Com média de 5,9 na avaliação dos anos iniciais do Ensino Fundamental, Sobral, no Ceará, se consagrou como a melhor alfabetização e ensino fundamental do Brasil, segundo o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). Algumas instituições de ensino do município, que tem 150 mil habitantes, até se aproximaram ao conceito máximo, alcançando 9,8.

Para chegar a esse patamar, Sobral utiliza sistemas de ensino de padrão internacional com seus correspondentes exames de medição de qualidade.

Além disso, as escolas ensinam leitura, sem pular o ensino dos conteúdos fônicos, por meio dos livros do Instituto Alfa e Beto, desde 2005. Os conteúdos fônicos fazem parte do sistema que o governo quer fomentar em todas as escolas do Brasil.

* Com colaboração de Denise Drechsel.

Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.