As passarelas da reitoria da Universidade de Brasília (UnB) foram tomadas por centenas de estudantes no dia 12 de abril. Os jovens invadiram o prédio central e ali acamparam por 19 dias. A ocupação foi um protesto contra a situação de penúria administrativa vivida pela instituição. Em março, dias antes da invasão, a UnB havia aumentado os valores do restaurante universitário e anunciado a demissão de funcionários terceirizados e estagiários. O motivo: contenção de gastos devido à queda nos repasses do Ministério da Educação (MEC).
Apesar dos movimentos, a previsão é fechar 2018 com um déficit superior a R$ 92 milhões. No ano passado, o rombo ultrapassou os R$ 100 milhões. O problema da UnB se estende à maior parte das Instituições de Ensino Superior (IES) públicas do Brasil. A rede federal, por exemplo, perdeu 50% dos recursos de investimentos e 20% da receita de custeio entre 2014 e 2017, segundo a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes).
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O horizonte não traz boas perspectivas. A aprovação da Emenda Constitucional 95/2016, que congela o teto dos gastos públicos, reduziu a probabilidade de uma retomada nos patamares de receita. Assim, o país precisa encontrar soluções para equilibrar o quadro das IES estatais. Uma das medidas consideradas é a cobrança de mensalidades no ensino público superior. Controverso, o tema carece de aprofundamento e exige debates técnicos e conceituais.
Funil estreito
Em outubro de 2017, o então deputado federal Andrés Sanchez (PT-SP) enviou à Câmara Federal uma proposta de emenda constitucional (PEC 366/17) que permite a cobrança de mensalidades por parte das universidades públicas a estudantes com maior poder aquisitivo. O pagamento seria condicionado ao nível socioeconômico do aluno.
A relação desproporcional entre a renda dos estudantes e o acesso às IES estatais é a principal justificativa apontada por quem apoia o fim da gratuidade. “Há uma inversão cruel do perfil do aluno das universidades públicas. Em geral, quem cursa a educação básica na rede privada conquista uma vaga nas instituições públicas”, afirma Sólon Caldas, diretor executivo da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES). O Banco Mundial também pensa assim.
A entidade defendeu a solução no relatório “Um ajuste justo”, divulgado em novembro de 2017. De acordo com o documento, cerca de 65% dos estudantes das IES federais integram a faixa dos 40% mais ricos da população. Já a “Pesquisa do Perfil Socioeconômico dos Estudantes das Universidades Federais”, elaborada pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior no Brasil (Andifes) e pelo Fórum Nacional de Pró-Reitores de Assistência Estudantil (Fonaprace), encontrou outros resultados. Realizado em 2014, o levantamento demonstrou que dois terços dos alunos têm origem em famílias com renda média de até 1,5 salário mínimo e 60% deles vêm de escolas públicas.
A disparidade pode derivar do recorte feito em cada instituição. “Existem diferentes análises da situação, com argumentos baseados em dados seletivos”, explica Roberto Lobo, consultor de ensino superior do International Entrepreneurship Center (IEC-EUA) e ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP). Ainda assim, o desafio para um aluno com pouco poder aquisitivo chegar à universidade pública é grande. A chance de um jovem com renda familiar per capita de R$ 250 ao mês ingressar em uma faculdade estatal é de 2%, segundo um estudo realizado pelo Instituto Mercado Popular em 2016. Entre os alunos com renda superior a R$ 20 mil, a probabilidade chega a 40%. Ou seja, o funil se mostra bem mais estreito a quem tem menos dinheiro. Já a conta para manter a estrutura de ensino superior estatal funcionando é dividido entre todas as fatias da população.
A PEC elaborada por Sanchez prevê a isenção apenas para estudantes que tenham cursado o Ensino Médio completo em escola pública ou como bolsistas integrais em unidades particulares. Em janeiro, o Chile aprovou a gratuidade do ensino superior para a população situada entre os 60% mais pobres. Desde o começo da década de 1980, o país cobrava mensalidades nas instituições públicas.
Como mecanismos de equilíbrio, o Banco Mundial recomenda a distribuição de bolsas e a expansão de linhas de financiamento – a exemplo do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies). O ProUni concede bolsas parciais ou totais para viabilizar o ingresso de pessoas com menor renda nas universidades particulares. A condição é o candidato ter cursado o Ensino Médio em escolas públicas ou como bolsista integral na rede privada.
Risco de inadimplência
A eficácia poderia servir como parâmetro para direcionar os financiamentos nas instituições públicas. Ao menos é o que defende o cientista político Simon Schwartzman. Ex-presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ele propõe um programa de crédito atrelado a critérios mercadológicos e de desempenho institucional.
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“Carreiras sem perspectivas profissionais ou instituições que sistematicamente reprovam muitos alunos ou não capacitam para o mercado não podem ser financiados, a não ser em casos de especial interesse público”, recomenda.
A ideia seria o antídoto para evitar o medo da inadimplência – um fator capaz de afastar ainda mais os alunos pobres das universidades. “Quando bem desenhados, os sistemas de crédito associam o pagamento da dívida aos resultados futuros no mercado de trabalho”, diz o cientista político. Atualmente, a inadimplência do Fies passa dos 40%. Os atrasos somaram R$ 32 bilhões só em 2016, segundo o MEC. E o modelo não é inseguro apenas por aqui.
Nos Estados Unidos, a busca por financiamentos cresceu desde a década passada, em razão da crise econômica. Lá, a maior parte das universidades públicas é paga. E são poucos os que podem arcar com as mensalidades. “O empobrecimento da classe média faz com que muitos estudantes americanos precisem de empréstimos para custear seus estudos e acabem contraindo uma dívida que não conseguem pagar depois de formados”, afirma Arabela Oliven, doutora em Sociologia pela Universidade de Londres. Ela leciona na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e se dedica ao estudo comparativo entre as políticas de inclusão educacional brasileiras e norte-americanas.
A dívida estudantil dos EUA alcançou US$ 1,3 trilhão em 2016 e o Banco Central Americano contabiliza 43 milhões de inadimplentes. Cerca de 70% dos estudantes recorrem aos financiamentos. Muitas vezes, os montantes se tornam impagáveis. A ONG Student Debt Crisis (Crise do Débito Estudantil, em livre tradução) estima que 20% dos americanos com mais de 50 anos tenham dívidas de diploma.
Se optar pela estratégia de combater a exclusão advinda da cobrança de mensalidades com o aumento do crédito, o Brasil precisará ter inteligência para desenhar uma estrutura profícua de financiamento. Assim, o risco de ampliar o passivo estudantil ou de estabelecer subsídios sem critérios deve ser considerado. “É preciso evitar tanto a situação extrema dos Estados Unidos quanto a distribuição indiscriminada que vigorava até recentemente no Fies”, aconselha Schwarzman.
Para ele, o modelo da Austrália pode servir como inspiração. O sistema australiano prevê o pagamento do crédito apenas quando os graduados atingem um nível determinado de renda. As amortizações são proporcionais ao rendimento e não há prazo de quitação. O método poderia reverter até R$ 9 bilhões para as universidades públicas no período de dez anos, conforme um cálculo do economista Paulo Meyer, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Divergência de interpretações
Além de exigir a definição de um novo filtro para a gratuidade e um escalonamento na liberação de créditos, o tema da cobrança de mensalidades ainda suscita outros debates. A questão gerencial e a própria idoneidade administrativa fazem parte dessa análise. Há quem receie, por exemplo, uma diminuição da atenção dedicada pelo governo federal às instituições. “Se houver o pagamento de mensalidades, acredito que os governos se sentirão menos obrigados a sustentar as universidades. Os repassem cairão”, diz Roberto Lobo, do IEC. Apesar da ressalva, ele é favorável à contribuição financeira.
A proposta de Lobo seria cobrar dos alunos com maior poder aquisitivo para equilibrar o orçamento e dar apoio aos estudantes carentes. O problema, segundo ele, é a insegurança quanto à destinação das verbas provenientes das mensalidades. “Os recursos até poderiam ser alocados em outros projetos governamentais, desde que tivessem o propósito de reduzir a desigualdade. Seria aceitável. Mas temos uma classe política que só dá maus exemplos. Quem poderia acreditar nisso?”, questiona. “A situação é agravada pela falta absoluta de confiança nos gestores públicos brasileiros”.
Já Arabela Oliven se posiciona contra a cobrança. A professora considera a ideia simplificadora e inócua em diversos âmbitos, além de mascarar uma das principais chagas do país. “A medida teria um impacto mínimo no financiamento da educação superior e encobre o grande problema brasileiro que é a imensa concentração de renda”, acredita a socióloga. “Os ricos não devem pagar por meio das matrículas dos seus filhos, mas por meio de um sistema tributário mais justo.” Outro ponto levantado por ela é a inconstitucionalidade da pauta.
De fato, a gratuidade do ensino em estabelecimentos oficiais é um princípio estipulado na Constituição Federal de 1988. Mas a adequação dessa diretriz à atual conjuntura sofre contestações. O cientista político Simon Schwartzman considera-a anacrônica.
“Isto precisa ser alterado. A lei foi feita quando havia muito menos estudantes, os custos eram bem menores e o desequilíbrio fiscal sequer era vislumbrado. Não se trata de um princípio de direito universal”, diz ele. O Brasil tinha 1,5 milhão de universitários em 1988 – 39% matriculados na rede pública. Atualmente, o número de graduandos ultrapassa os 8 milhões. Cerca de 25% deles estão em instituições gratuitas. Os dados são do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP).
O próprio conceito de gratuidade é relativizado. “Não existe gratuidade nos serviços públicos. A universidade não tem custo para quem estuda, mas é financiada pelos contribuintes. No caso, os mais pobres pagam para os mais ricos”, pondera Sólon Caldas, da ABMES. A discussão em relação à constitucionalidade gera interpretações dúbias por parte das próprias instâncias diretivas da União.
Em março de 2017, a Câmara Federal reprovou a PEC 395/14, que admitia a cobrança de mensalidades em cursos de extensão e pós-graduação lato sensu (especializações) em faculdades públicas. O Superior Tribunal Federal, por sua vez, foi no sentido inverso e um mês depois liberou as universidades para cobrarem por essas modalidades de ensino.
O episódio demonstra o quanto a pauta é polêmica e mexe com questões complexas. Inclusive, a PEC de Andrés Sanchez causou desconforto no próprio Partido dos Trabalhadores (PT). A legenda obrigou o deputado a retirar a proposta em novembro do ano passado, um mês depois de o projeto ter sido inscrito. Existe outra proposta relacionada ao tema tramitando em Brasília – a PL 782/15, elaborada originalmente em 2005 pelo então deputado federal Marcelo Crivella (PRB-RJ), hoje prefeito do Rio de Janeiro.
O texto prevê a cobrança de mensalidade para alunos com renda familiar superior a 30 salários mínimos. As opiniões contrárias à cobrança das mensalidades consideram que a medida abriria a porta para a privatização das universidades públicas – um assunto ainda mais abstrato e farto em lacunas.
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