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A Medida Provisória 979, de 9 de junho, que permite a escolha de reitores temporários para as instituições federais pelo ministro da Educação Abraham Weintraub, enquanto durar a pandemia e só nos casos em que terminar o mandato de um reitor, desencadeou um turbilhão de críticas ao governo federal. Os partidos de oposição e os sindicatos de professores e de reitores classificaram o documento como ditatorial, porque estaria interferindo na autonomia universitária, prevista no artigo 207 da Constituição Federal, permitindo uma espécie de intervenção indevida. Parlamentares pediram ao presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), que devolva a MP ao Poder Executivo, por ser “antidemocrática”. Mas, afinal, como são eleitos os reitores hoje e por que a iniciativa de Jair Bolsonaro trouxe tamanha repercussão?
O rito para a escolha de reitor está previsto na Lei 9.192, de 1995. Pela norma, o conselho universitário de cada instituição federal forma um Colégio Eleitoral que decide quais serão os três nomes a serem enviados ao Presidente da República, que deverá escolher um deles para o cargo de reitor. Essa escolha por esse pequeno grupo – que é formado, em geral, dependendo do estatuto de cada instituição, pelo atual reitor, pró-reitores, diretores de faculdades, representantes de professores, etc. – pode ou não ser precedida de uma consulta a toda a comunidade acadêmica, conhecida como “eleições para reitor”, ainda que juridicamente não tenha esse valor.
Ou seja, atualmente não existe voto direto para reitor – e se isso é antidemocrático não foi alvo até agora de reclamação de reitores, partidos políticos e sindicatos de docentes. Aliás: em dezembro de 2019, o governo tentou implantar eleições diretas para reitor por meio da MP 914, desde que respeitado o peso de 70% para o voto dos docentes, 15% para o voto dos alunos e 15% para o voto dos servidores. A proposta não foi aceita por reitores e partidos de oposição, que pressionaram o Congresso para deixá-la caducar, o ocorreu no último 1º de junho. A justificativa? As eleições seriam diretas só para reitor – e hoje se escolhe reitor e vice-reitor – o que daria “muitos poderes para os reitores” para decidirem todos os cargos. A pergunta que ficou no ar era se esse argumento era suficiente para continuar a manter um pequeno grupo decidindo quem irá compor a lista tríplice.
De setembro a dezembro desse ano terminam os mandatos de 20 reitores de universidades. As instituições devem enviar a lista tríplice ao governo federal até 60 dias antes do fim dos mandatos. Universidades, como a Federal de Sergipe, marcaram reuniões do Colégio Eleitoral para decidir a lista tríplice durante a pandemia, reunindo apenas o pequeno grupo ligado às Reitorias e sem consulta à comunidade – o que está sendo chamado de “golpe” por chapas opositoras. Outras, como a Federal do Piauí farão eleições online, mesmo tendo paralisado suas atividades alegando falta de estrutura de professores e alunos para migrar para o ensino remoto – o que também está sendo contestado por docentes e alunos.
A MP 979, já em vigor até decisão contrária do Congresso e enquanto não caducar, proíbe que sejam escolhidos reitores definitivos (com quatro anos de mandato) durante a pandemia, de forma online – o que não está previsto em lei – e sem garantir ampla discussão com a comunidade e a probidade das eleições. Ao mesmo tempo, define um reitor temporário que poderá ficar no comando da universidade por dois, três ou quatro meses – até que o procedimento normal possa ser implantado.
Essa atitude é ditatorial? Um reitor eleito para quatro anos de mandato nas circunstâncias atuais de pandemia seria democrático? Quanto um reitor temporário pode “prejudicar” a universidade?
Chapas há 20 anos no poder das universidades
Os ex-presidentes da República Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff e Michel Temer seguiram em seus governos a tradição de escolher o primeiro nome da lista tríplice enviada pelo pequeno grupo do Conselho Eleitoral das instituições. Ao ser eleito em 2018, Jair Bolsonaro quebrou esse costume e tentou fazer o que lhe permite a lei: escolher não o primeiro nome escolhido pelo conselho universitário, mas o segundo ou o terceiro.
Bolsonaro também não escondeu o motivo. Para ele, as reitorias estão dominadas por partidos políticos – a maioria de esquerda –, com mais poder de persuasão nas “eleições acadêmicas” e nas decisões do conselho universitário. Por isso, era necessário garantir a alternância de poder escolhendo um nome diferente do grupo da reitoria ou de chapas que dominam as universidades há anos – situação que, para ele, não é democrática.
Há grupos consolidados nas reitorias das universidades há mais de 20 anos, com várias denúncias de corrução, sendo um dos casos mais conhecidos o da UFMT. Entre os reitores, não são poucos os que foram ou são filiados a algum partido e privilegiam a ideologia desses em suas decisões. O reitor Rui Vicente Oppermann, da UFRGS, por exemplo, apoiou eventos contra o impeachment de Dilma Rousseff; a reitora Nilda de Fátima Ferreira Soares, da UFV, concedeu a Lula o primeiro de seus títulos de doutor honoris causa - ação repetida por outras federais, como a UFPI; o ex-reitor da UFRJ, Roberto Leher, é filiado ao PSOL e contava com diversos militantes do partido em sua equipe, muitos deles que ainda continuam na universidade... a lista poderia continuar por várias linhas. Em outubro de 2018, dezessete reitores ou vice-reitores de federais assinaram uma carta de apoio ao então candidato à Presidência do PT, Fernando Haddad.
Em 2019, de 14 listas tríplices recebidas, Bolsonaro só escolheu o primeiro colocado em oito universidades. Bolsonaro rejeitou, por exemplo, na UFVJM, Gilciano Saraiva, que foi filiado ao PT; Fábio da Fonseca, na UFTM, que foi do PSOL; Custódio Luís Silva de Almeida, na UFC, que era vice-reitor do mandado anterior.
A reação contra Bolsonaro: escolha de “laranjas” para a lista tríplice
Para tentar burlar a escolha de Bolsonaro de um nome que não fosse o preferido pelo conselho universitário, instituições implementaram um artifício: ao invés de enviar em lista tríplice os nomes mais votados nas “eleições acadêmicas”, algumas universidades decidiram enviar um nome da sua confiança e outros dois da mesma chapa, chamados de “laranjas”, impedindo que grupos diferentes assumam o controle da universidade. Essa estratégia foi utilizada, por exemplo, na Universidade Federal de Grande Dourados (UFGD), do Mato Grosso do Sul e na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).
Mas, em alguns casos, o governo acabou cedendo. A lista da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), por exemplo, que foi formulada apenas com nomes da chapa mais votada, e não com indicações de outros grupos, não foi rejeitada pelo governo. A vencedora nas urnas, Denise Pires de Carvalho, acabou nomeada pelo presidente, até porque, segundo fontes do ministério, era o nome mais afastado da esquerda psolista que domina há anos a universidade.
A prática do uso de “laranjas” foi um dos motivos para a edição por parte do governo da MP 914, que previa que as “eleições acadêmicas” de fato se transformassem em escolha juridicamente válida para a formação da lista tríplice. Como nessas eleições amplas sempre estão entre os mais votados um nome mais próximo à Reitoria e outro de oposição, caso o conselho universitário não pudesse modificar a lista e fosse obrigado a enviar os três nomes mais votados nas “eleições acadêmicas”, o presidente poderia ter a liberdade de escolher para governar a instituição um grupo diferente do atual.
“Golpe” de reitores durante a pandemia?
Para driblar a MP 914, os reitores cujos mandatos terminam esse ano esperaram passar o dia 1º de junho, quando a medida perdeu a validade, para iniciar o processo eleitoral comunidade. O fato foi inclusive tema de discussão na Andifes, o sindicato dos reitores das instituições federais. Esse movimento, porém, não foi visto com bons olhos por boa parte da comunidade acadêmica e, principalmente, pelas chapas de oposição. Entre outros motivos, porque a lei atual não prevê eleições online e, ao mesmo tempo, as chapas não veem como é possível confiar em uma eleição virtual organizada por grupo ligado a uma das chapas, o candidato do reitor, por meio do sistema “Siga Eleição”.
A Universidade Federal do Sergipe (UFS) talvez seja o caso mais emblemático. Quatro chapas se inscreveram para participar das eleições em fevereiro, e os candidatos participaram de seis debates, produziram e divulgaram material de campanha e participaram de eventos de divulgação das chapas. As eleições acadêmicas estavam previstas para os dias 19 e 20 de março, mas, em virtude da pandemia, o atual reitor, Ângelo Roberto Antoniolli, não deflagrou o processo eleitoral, mesmo tendo recebido duas recomendações do Ministério Público Federal. No dia 4 de junho, depois de caducar a MP 914, o reitor convocou uma reunião com o Colégio Eleitoral Especial “a fim de proceder à eleição de lista tríplice dos nomes para escolha do reitor e vice-reitor” para 15 de julho, em momento que dificilmente a oposição e outros representantes da comunidade acadêmica poderão acompanhar. O movimento não passou despercebido às chapas que concorrem à escolha nem ao sindicato dos técnicos-administrativos. A chapa 2 da professora de Direito Denise Leal Albano publicou uma carta aberta, em que critica a “convocação esdrúxula e casuística dos conselhos para a eleição da lista tríplice” dizendo que o reitor “desdenha das chapas que estavam em franca campanha, das entidades de classe que encampam essa consulta e da comunidade universitária, alijada da participação no processo de escolha direta dos seus dirigentes, violando o que impõe a legislação e reza a tradição”. O Sintufs, em nota do dia 8 de junho (antes da publicação da MP 979), apontou que a atitude da reitoria era “uma medida antidemocrática e autoritária”.
Na Universidade Federal do Piauí (UFPI), a instituição definiu que haverá consulta online com a comunidade (mesmo com as aulas suspensas pelas dificuldades tecnológicas de professores e alunos), mas quem decidirá os nomes que serão enviados em lista tríplice será mesmo o conselho universitário. Para garantir isso, a instituição também esperou caducar a MP 914.
Na Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), a exoneração da ex-reitora, Myrian Thereza de Moura Serra, cercada de denúncias de corrupção e irregularidades identificadas pela Controladoria-Geral da União, foi seguida de outro ato irregular: o vice-reitor, Evandro Aparecido Soares da Silva assumiu o cargo de reitor em 2 de março de 2020, sem nenhum trâmite formal. Ele voltou atrás da decisão e, por enquanto, nada foi feito ainda para preencher a sede vacante – que é dominada pelo mesmo grupo da há 20 anos.
A medida de Bolsonaro
Diante desse cenário, o Planalto e o MEC acharam que o momento não era adequado para dar rédeas soltas para os conselhos universitários. “Das 69 universidades do país 58 interromperam atividades alegando falta de estrutura, tanto dos professores como dos alunos, para migrar para o ensino remoto. Como agora elas querem convencer que professores e alunos podem votar em eleições online durante a pandemia? Também não há previsão legal para isso”, diz uma fonte no MEC. “Como a consulta não é obrigatória, poucos professores e alunos vão votar. A decisão depois vai ser tomada pelo Conselho Eleitoral, ligado aos reitores, que apoiam uma chapa específica. Tudo isso coloca em dúvida a lisura da escolha de reitores agora, em tempo de pandemia. A MP 979 quer proteger as eleições para que, quando passar a pandemia, elas possam ocorrer de forma democrática”.
Em nota publicada em seu site, o MEC afirmou que a MP 979 “é constitucional e não fere a autonomia de universidades e institutos federais”.
“Pelo menos 20 instituições devem ter mandatos encerrados até o final do ano – cada mandato dura 4 anos. Nesses casos, o MEC indicará os reitores e vice-reitores em caráter pro tempore (temporário) até que haja novos processos eleitorais após o período da pandemia”, continua o comunicado.
O MEC repetiu ainda que não há previsão legal de ocorrerem eleições em ambiente virtual. Ou seja, caso sejam feitas dessa forma, poderão ser contestadas juridicamente.
Um medo da oposição ao governo Bolsonaro é que, durante a pandemia, os reitores temporários tomem atitudes que venham a beneficiar as decisões do governo. Ou até facilitem a identificação de irregularidades de gestões passadas.
Seja como for, enquanto o Congresso não tomar alguma decisão sobre a MP 979, os reitores deverão fazer o mesmo que fizeram com a MP das eleições diretas: esperar passar o tempo, até que ela perca a validade ou que seja contestada judicialmente. E aí estará nas mãos da Justiça, provavelmente do Supremo Tribunal Federal, interpretar se a proposta fere ou não o artigo 207 da Constituição, que garante “a autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial” dessas instituições.