O currículo escolar da Coreia do Norte prevê que, ao longo de cinco anos do ensino fundamental, os alunos estudem linguagem ao longo de 1.197 horas, o equivalente a quase 50 dias inteiros. Para matemática, são 821 horas, ou 43 dias. A terceira disciplina mais importante ocupa 684 horas, o mesmo que 28 dias. Como qualquer assunto que se estuda numa escola, essa disciplina conta com livros didáticos de apoio, aulas expositivas e a realização de provas. O assunto é: a vida e a obra do líder supremo Kim Il-sung, ditador que liderou o país de 1948 a 1994.
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E esta não é a única matéria dedicada a doutrinar os alunos a respeito da biografia de seus governantes. Existem disciplinas sobre o sucessor, Kim Jong-il, que morreu em 2011, e seu filho e terceiro e atual líder, Kim Jong-un. A vida de Kim Jong-sook, a esposa de Kim Il-sung, também é tema de uma disciplina à parte – neste caso, o conteúdo se limita a louvar o quando ela deu suporte ao marido.
Mas, nessas aulas, os alunos não aprendem detalhes concretos sobre a vida dos líderes (a data de nascimento de Kim Jong-un, por exemplo não é conhecida). O que os livros reproduzem são mitos. Dizem, por exemplo, que Kim Il-sung podia fazer chover se quisesse, escreveu 1.500 livros enquanto estava na universidade e se valeu de sua capacidade superior como general para vencer, praticamente sozinho, a Guerra da Coreia (que lá é chamada de “Guerra de Liberação da Terra-Pai”). As obras também afirmam que Kim Jong-Um aprendeu a dirigir com três anos e, aos nove, venceu uma corrida contra um piloto profissional.
Diante desse tipo de informação, não é difícil entender por que, quando os dois primeiros líderes do país morreram, a imprensa local registrou casos de suicídio e de centenas de pessoas saindo às ruas para chorar copiosamente. Afinal, na Coreia do Norte, a educação é obrigatória por 11 anos, por determinação da Constituição do país, e boa parte do currículo se dedica a ensinar os alunos a admirar seus governantes sem questioná-los.
“Guerreiros comunistas”
Como é que esses detalhes sobre o currículo escolar escaparam do país mais fechado do mundo? Em primeiro lugar, a imprensa sul-coreana mantém suas fontes dentro do vizinho ao norte. Com regularidade, membros desgostosos do governo da Coreia do Norte concedem entrevistas, sem revelar seus nomes, mas informando detalhes sobre a rotina no país. Além disso, é comum que essas mesmas pessoas, que vivem no país, desviem livros e materiais didáticos, que costumam chegar ao Japão ou à Coreia do Sul, onde são analisados.
Existem também os dissidentes, que conseguiram fugir da ditadura e contam tudo o que viram e vivenciaram. Como todos eles foram alunos em algum momento da vida, as informações sobre a rotina nas salas de aula vêm à tona com base em seus relatos. Num estudo baseado nas declarações desses exilados, os pesquisadores sul-coreanos Kim Eun-Jung, Shin Ju-Cheol e Kim Yong-Deog coletaram informações sobre o Ensino Médio da Coreia do Norte.
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“O objetivo final do sistema educacional do regime é transformar todos os estudantes em guerreiros revolucionários comunistas, leais à família de Kim Il-sung”, afirma o levantamento, que informa: as aulas no ensino médio começam às 8h. Mas os estudantes devem chegar às 7h, para trabalhar na faxina das salas de aula, dos corredores e das áreas externas.
“Antes que as aulas comecem, por 10 minutos, os professores explicam aos estudantes o que o presidente Kim Il-sung realizou, naquele dia, naquele mês”, descreve o levantamento – aliás, o mesmo professor acompanha a turma ao longo de todo o período de formação no ensino médio, que dura seis anos. Depois da faxina e das efemérides, os alunos têm aulas de 45 minutos cada, separadas por intervalos de 10 minutos. O almoço é realizado das 12h30 às 13h30. Na sequência, uma última aula encerra as atividades formais do dia.
A tarde não é livre. Cada sala de aula, que tem 30 alunos, se divide em cinco turmas com seis estudantes, que seguem para a casa de um colega para realizar trabalhos em grupo. Mas, dependendo da época do ano, os alunos do ensino médio são deslocados para trabalhar para o Estado, seja ajudando a carregar materiais em obras, seja realizando pequenos serviços como office-boys. O dia termina por volta das 18h. Nas férias, por 40 dias, os jovens são transferidos para o campo, onde atuam nas fazendas coletivas, ajudando na colheita.
Comida de casa
Como acontece com frequência em países totalitários, a educação é obrigatória até o Ensino Médio. No caso da Coreia do Norte, é também gratuita, incluindo o ensino superior – que aceita estudantes de acordo com suas notas e com a recomendação dos comitês locais, que avaliam a participação política dos candidatos. Soldados que cumpriram o serviço militar obrigatório de três anos e trabalhadores com pelo menos cinco anos de experiência nas empresas coletivas têm prioridade.
As refeições são servidas apenas no jardim de infância, que é oferecido por um ano. Ao longo do restante do ensino, os pais enviam a comida dos próprios filhos, o que pode representar um problema nos períodos de crise de abastecimento, como a que aconteceu entre 1994 e 2002. As aulas também reforçam a importância de todas as crianças atuarem como delatoras: elas são orientadas a informas as escolas caso seus pais reclamem do governo.
As provas, escritas e orais, consistem, por exemplo, na citação das principais medidas administrativas decretadas pelo governo em determinado ano. Quem vai mal é conduzido para classes de reforço. Mas o conteúdo não se limita a apenas construir a idolatria em torno dos governantes, ou a ensinar conteúdos sobre a moral comunista e a ideologia Juche (como é conhecido o conjunto de teorias que forma a ideologia socialista norte-coreana).
O Estado também estimula a educação continuada para adultos, principalmente com cursos sobre moral comunista e ideologia Juche. Aliás, para os norte-coreanos, este não é o ano 2019: eles estão no ano 108 da Era Junche, contabilizada a partir da data de nascimento de Kim Il-sung.
Panfletos contra lobos
As atividades, mesmo nas aulas de matemática e idioma coreano, estimulam o ódio aos japoneses e aos americanos, tratados como invasores ameaçadores – aliás, sempre que o país entra em crise econômica mais séria, ou algum teste militar fracassa, a imprensa local culpa o imperialismo estrangeiro. Como também acontece em Cuba, os exercícios de matemática inserem conceitos ideológicos. Muitos deles como aponta Andrei Lankov em seu livro The Real North Korea, argumentam que a Coreia do Sul gostaria de se libertar do jugo norte-americano, mas permanece oprimida.
“Mais ou menos 20% das questões de matemática trazem ensinamentos ideológicos”, escreve Lankov, que nasceu na União Soviética e foi estudante de intercâmbio na Coreia do Norte nos anos 1980. “Por exemplo, na página 138 de um livro de matemática lançado em 2003, a que o autor teve acesso, existe o seguinte exercício: ‘Os garotos da Coreia do Sul, que lutavam contra os lobos americanos imperialistas e seus capangas, distribuíram 45 pacotes de panfletos, com 150 panfletos em cada pacote. Eles também conseguiram repassar outros 50 pacotes, com 50 panfletos cada. Quantos panfletos foram distribuídos?’”.
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