Há muitas tentativas de exprimir o que distingue realmente seres humanos de todos os outros seres vivos. Algumas destacam a linguagem. Isso coloca em evidência nosso impulso de comunicação.
Mas não temos somente o ímpeto da oralidade. Temos também a inclinação para a locomoção. Fernando Pessoa disse querer para si o ideal contido na frase de Pompeu que Petrarca consagrou: "navegar é preciso, viver não é preciso". Hoje, não nos deslocamos assim tão mais rápido do que o fazíamos ontem. Mas quando comparamos o ontem ao anteontem...
É visível. Meios de transporte motorizados favoreceram, crescentemente, nosso ímpeto de ir por aí. Primeiro, com locomotivas ferroviárias, mas logo, também, com automóveis. Súbito, estávamos fazendo viagens seguras no mar. E aventuras aladas.
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Uma característica aos que se deslocam é a saúde. Não vemos doentes saracoteando por aí. A tendência a se deslocar cresce com a saúde. Quanto maior a capacidade de se conservar são, maior a probabilidade de se deslocar. Assim é que, antes de tudo, vem a capacidade de sobreviver e de se conservar são.
No século XX, vimos a população humana aumentar como nunca desde que começamos a habitar a Terra. Mas não porque tenhamos passado a nos reproduzir como coelhos, e sim, porque deixamos de morrer como moscas, anotou certa vez Nicholas Eberstadt, economista e demógrafo. A medicina nos brindou, a partir da metade do século XX, com vacinas e antibióticos.
Não deixa de ser curioso. Parece que não nos foi permitido multiplicar exponencialmente nossa capacidade de ir por aí antes que descobríssemos como evitar que isso levasse à potencialização da propagação das doenças. O carro não foi posto adiante dos bois.
Assim, transformando adversidades e fracassos em conquistas e sucessos, fomos, e vamos, aprendendo a melhorar a vida. Logramos êxitos frente a muitos desafios. Inclusive aqueles que nascem, contraditoriamente, de nossos sucessos e conquistas. Isso tudo multiplica conhecimento. E conhecimento é entregue em herança a novas gerações. Pois nisso somos singulares: indivíduos de uma geração tendem a se desincumbir da tarefa de permanecer vivos em melhores condições que indivíduos das gerações que o antecederam. Porque os modos mais bem-sucedidos de ação, tanto no mundo natural quanto no mundo social, são fixados, codificados em ciência, arte, moral, leis etc. e transmitidos às gerações seguintes.
Enquanto isso, a educação "patina"
No século XIX, o mundo passou a entender de outro modo a necessidade de educação. Se todos nasciam livres, se todos eram dotados de razão, se todos eram iguais perante a lei, se o exercício público da liberdade se potencializava com o conhecimento era preciso dar escala ao cultivo sistematizado do intelecto e à apropriação dos bens culturais. Ganhou força a ideia de formação de sistemas nacionais públicos de instrução escolar. Durante o século XX, viu-se a consolidação dessa ideia por toda parte.
Parece, entretanto, que, em vários lugares, a educação escolar tarda, ou claudica, na concretização de algumas esperanças despertadas. Em várias regiões do mundo ainda há preocupação com a garantia do direito àquilo que é mais basilar na educação escolar: habilitar a leitura e o seu uso a todos. Para os mais diversos fins.
Se olhamos a dimensão quantitativa da educação, vemos que no Brasil já não há praticamente crianças fora da escola. 32% das que estão com menos de três anos a frequentam; 91% das que contam quatro ou cinco anos, idem. Na faixa de seis a quatorze anos, o acesso à instrução escolar está universalizado: 99% estão matriculados. Em país de tão largas dimensões e com a magnitude da população que temos, não é pouca coisa.
Péssimos índices
Mas, se contemplamos o aspecto qualitativo, deparamo-nos com algo intrigante: as informações fornecidas pelos sistemas de avaliação do desempenho escolar em leitura. Ao final do 3º ano, ao final do 5º ano, e ao final do 9º ano do ensino fundamental, respectivamente, 55%, 40% e 60% dos concluintes de cada uma dessas fases de escolarização apresentam desempenho abaixo do esperado em leitura. Por fim, vemos, o MEC informou: apenas 1,6% dos concluintes do Ensino Médio apresentaram desempenho adequado em Leitura em 2017.
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Não deve ser por outro motivo que a nossa população escolar com idades entre 15 e 16 anos, que passou ao menos sete anos na escola, faz má figura internacional em leitura, se dermos crédito aos números do PISA, exame de iniciativa da Diretoria de Educação da OECD, do qual o Brasil participa desde 2000. O PISA compara, entre outros, desempenho leitor médio das populações adolescentes em 70 países. O desempenho dos adolescentes brasileiros deixou o país entre 57º e 62º na edição 2015 da avaliação, última com resultados publicados.
No que diz respeito ao nosso ímpeto de deslocamento, a aviação nos deu meio de transporte que desafia a gravidade. Mas todos vamos confiantes aos aeroportos. No que diz respeito a vencer a primeira etapa da luta para sobreviver, a medicina nos deu potentes ferramentas. Nas maternidades, o parto, acompanhado por obstetra e pediatra, já não deixa futuros pais tão apreensivos como outrora, quando era feito em casa, longe dos médicos. Entretanto, quantos aeroportos e maternidades seriam mantidos abertos por mais de uma semana se o índice de sucesso na chegada ao destino de uma viagem aérea e na realização de partos fosse comparável ao que nossas escolas obtêm no ensino de leitura ao final do percurso de uma educação básica?
Por que as escolas brasileiras funcionam, 200 dias por ano, com esse nível de insucesso sem que pais, sociedade e governos tomem uma grave e séria providência, ou sequer se incomodem com esse nível de fracasso?
Ou se incomodam?
* Luiz Carlos Faria da Silva é doutor em Educação pela Universidade de Campinas (Unicamp) e professor no Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Estadual de Maringá (UEM).
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