Crianças estudam em casa.| Foto: Bigstock
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Quem se aventura a debater sobre ensino domiciliar (homeschooling) no Brasil precisa estar disposto, primeiro, a gastar muito de suas energias revelando a fragilidade de mitos repetidos à exaustão, e quase sempre desprovidos de razoabilidade. A meu ver, um dos que mais atrapalham a aprovação de uma lei que regulamente a modalidade é a falsa crença de que educar os filhos em casa é coisa da “direita religiosa conservadora”. Se isso foi verdade um dia, há décadas deixou de ser e é fácil provar.

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Antes, contudo, convém ser compreensivo com quem acreditou nessa fábula por nunca ter tomado conhecimento do assunto antes da chegada do governo Bolsonaro. O volume de conteúdo disponível para pesquisa sobre o homeschooling no Brasil só cresceu nos últimos anos. Antes, era de uma escassez e superficialidade espantosas. Quando o atual governo – o primeiro de direita desde a redemocratização – incluiu entre suas metas a aprovação do ensino domiciliar, o ato foi o suficiente para uma multidão de leigos no assunto decretarem que isso só podia ser coisa dessa gente que acabou de chegar ao poder.

A história recente do ensino domiciliar no mundo, entretanto, mostra fatos que podem ser chocantes para ativistas de direita e de esquerda. Nem sequer precisamos ir muito longe para achar líderes políticos supostamente inusitados defendendo uma modalidade que, pela lógica desse mito, nunca seria defendida por eles.

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Olhemos primeiro para nosso vizinho latino-americano, o Equador. Lá, o direito ao ensino domiciliar foi garantido pela Constituição promulgada em 2008 e regulamentado por um acordo ministerial emitido em 2013. Nas duas ocasiões, quem governava o país – e apoiou a modalidade – foi o presidente Rafael Correa, um bolivariano que esteve à frente do Equador por dez anos, abertamente adepto do chamado “socialismo do século 21”. Correa foi um dos chefes de Estado mais próximos do ex-presidente Lula, de Hugo Chávez e de Fidel Castro.

Já que falamos em socialismo, vamos à terra onde essa ideologia se tornou forte o bastante para dividir o mundo em dois durante a Guerra Fria. Sim, a Rússia também legalizou o homeschooling. Aconteceu em 2012, como parte de uma ampla reforma educacional, e, desde então, o número de famílias educadoras não para de crescer. Hoje, estima-se que 50 mil famílias russas aderiram à modalidade e a tendência de crescimento já foi tratada como um fenômeno num recente documentário sobre o tema. Em 2018, o país que já foi o coração da União Soviética chegou a sediar o Global Home Education Conference, provavelmente o maior evento mundial sobre ensino domiciliar.

Outro poderoso exemplo de como a opção pelo ensino domiciliar tem atraído perfis cada vez mais diversos vem dos Estados Unidos, o país que abriga o maior número de famílias homeschoolers no mundo: 2,3 milhões.

No final da década de 80, estudos mostravam que educar em casa era a opção de apenas 10 mil famílias norte-americanas, e que 93% delas eram formadas por brancos evangélicos, a maioria vivendo na zona rural. Provavelmente, o retrato daquele momento deu origem ao estereótipo usado pelos críticos do homeschooling até hoje. Entretanto, um levantamento mais recente, feito em 2016, mostra uma realidade completamente diferente.

Nenhum outro grupo étnico cresceu tanto na adesão ao homeschooling nos Estados Unidos quanto o dos afro-americanos. Cerca de 220 mil famílias negras educam seus filhos em casa naquele país, representando 10% do total (para comparação, nas escolas públicas os negros ocupam 16% das vagas). As famílias latinas também ganharam espaço nessa conta e hoje compõem 15% do todo. Outra minoria que tem se destacado entre os optantes pelo homeschooling lá é a dos imigrantes muçulmanos.

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Portanto, nos Estados Unidos, tornou-se matematicamente impossível apontar o homeschooling como uma pauta exclusiva de cristãos, brancos e direitistas. Reivindicar o direito de educar os filhos em casa é uma demanda tão natural, e foi tão facilitada pelas novas tecnologias, que a pauta se universalizou.

Tenho a firme convicção de que no Brasil ocorre o mesmo fenômeno, mas se o Poder Público tem sido tão omisso em legitimar uma modalidade que na prática já existe, não é nada realista esperar por dados precisos que confirmem o perfil das famílias brasileiras que adotam ensino domiciliar.

Essa omissão, aliás, parece que só terá fim quando mais parlamentares, gestores públicos e pesquisadores no campo da educação abandonarem seus preconceitos infundados contra o ensino domiciliar, encarando esse fato social com mais realismo e coragem.

* Jônatas Dias Lima é jornalista e assessor parlamentar na Câmara dos Deputados, onde atua junto à Frente Parlamentar em Defesa do Homeschooling.