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O que as universidades no Brasil podem aprender com o Qatar e a Arábia Saudita

Doha, em Qatar. Imagem: Pixabay. (Foto: )

Não é raro observar uma queda proporcional do impacto científico dos países quando aceleram rapidamente a produção anual de trabalhos acadêmicos. Essa situação é observada em diversos países, sendo Brasil e Índia os exemplos mais notórios. Dentre as possíveis aferições de um impacto científico, destaca-se o CPP (citações por publicação).

Em outros artigos, já destacamos que o Brasil ainda se encontra numa posição extremamente desfavorável no impacto mundial ainda que publique em grande quantidade (72 mil publicações em 2016, 14º lugar do mundo). Considerando-se o ranking CPP de nações, está em 60º lugar entre 74 países que publicaram pelo menos 2 mil trabalhos. A Índia está em 5º lugar em quantidade, mas sustenta o 70º em CPP. Curiosamente, não identificamos essa tendência no Qatar e na Arábia Saudita, pois aceleraram significativamente a quantidade de publicações em paralelo com o aumento constante do impacto científico.

Mesmo sendo monarquias islâmicas vizinhas, Arábia Saudita e Qatar apresentam consideráveis diferenças históricas e geográficas, o que sugere um afastamento de eventuais clichês. De fato, países do Oriente Médio com pouco ou nenhum petróleo, como Jordânia e Síria, dispõem de uma renda análoga à de países da América Latina, mas veremos que o petróleo não explica o exponencial desenvolvimento do Qatar. É evidente que a realidade desses países difere dos regimes democráticos liberais do Ocidente, mas seria um grande erro não reconhecer os avanços.

O impacto da ciência do Qatar e da Arábia Saudita

Uma das formas de compreender o investimento de um país em produção tecnológica e científica é mediante o percentual do PIB em P&D (Pesquisa e Desenvolvimento). O valor destinado à educação não está incluso nesse cálculo, mas é evidente que o investimento em P&D potencializa o avanço científico se as universidades apresentarem excelência, considerando-se que a maior parte dos trabalhos científicos do Brasil provém das universidades. Ainda que seja utilizado o P&D como parâmetro deste estudo, lembramos que o dispêndio em educação é computado em outra rubrica, correspondendo a aproximadamente 6% do PIB no Brasil, de acordo com a Unesco. O percentual do PIB em P&D do Brasil é de 1,27% (dados da Unesco de 2016), enquanto o da Arábia Saudita é de 0,82% (em 2013) e o do Qatar de apenas 0,51% (em 2015). Como o nosso país está entre as 10 maiores economias do mundo, é natural imaginarmos que o Brasil apresentasse condições mais favoráveis do que a Arábia Saudita e o Qatar no impacto científico, mas é rigorosamente o contrário.

O Qatar publicou apenas 163 artigos em 2003, aumentando lentamente até 2011 e alcançando 968 artigos. Acelera posteriormente até alcançar 3.680 artigos em 2016. Foi um incremento de 22,5 vezes na quantidade anual de publicações entre 2003 e 2016. O que chama atenção é que o impacto de suas publicações aumentou constantemente. Em 2003, apresentava aproximadamente 36% do CPP da Suíça (país de referência), passando para 91% em 2015 e 2016 (CPP2006-Suíça = 4,68, CPP2006-Qatar = 4,36). Em 2015, o Qatar ficou no 6º lugar mundial de CPP entre países com pelo menos 2 mil publicações (o 1º lugar ficou com a Estônia), repetindo essa posição em 2016. Há uma tendência similar na Arábia Saudita, tendo em vista o rápido crescimento da quantidade de artigos a partir de 2010. O impacto da ciência saudita também aumentou entre 2003 e 2017, passando de 36% do CPP da Suíça para 92%.

História econômica do Qatar e da Arábia Saudita

Desde que o Qatar passou a desenvolver-se economicamente, houve uma maior ênfase em sua inserção internacional, sendo a Rodada de Doha da OMC e a Copa do Mundo de 2022 os exemplos mais emblemáticos. É evidente que o sucesso e a autonomia geram animosidade entre os vizinhos, embora a Arábia Saudita e o Qatar tenham rompido relações diplomáticas em 2017 por motivações religiosas.

O Qatar é considerado um dos países mais liberais dentre os vizinhos islâmicos, até mesmo no tratamento dispensado às mulheres, além de dispor do meio de comunicação mais importante no mundo árabe: a Al-Jazeera. Com um PIB per capita de 63 mil dólares (ou 128 mil dólares em paridade do poder de compra), o Qatar destacou-se como um dos países mais ricos do mundo nos últimos anos. Diante de tamanha riqueza, tendemos a imaginar que a vida nunca foi dura nesse lugar. Entretanto, o pequeno país foi um dos protetorados britânicos mais pobres, localizando-se numa região extremamente inóspita em razão das altas temperaturas. Afinal, o que teria levado ao incrível desenvolvimento do Qatar em poucas décadas?

O Qatar tornou-se independente em 1971, mas continuou com problemas até o fim da década de 1990. Suas jazidas de petróleo foram descobertas na década de 1940, mas as suas consideráveis reservas de gás natural só foram descobertas nos idos de 1970. Ocorre que nem mesmo a Shell teve real interesse nas descobertas de gás à época, pois as condições geográficas do Qatar inviabilizavam o transporte por meio de gasodutos, de modo que os desafios na exploração das enormes reservas de gás atestam a dificuldade de seu desenvolvimento.

As reais transformações do Qatar ocorreram no fim da década de 1990 com a atuação do emir Hamab bin Khalifa al-Thani, que acreditava que o futuro do país estava na exploração do gás. As dificuldades impulsionaram o país a estudar meios de transportar o gás em forma liquefeita, pois as tecnologias eram dominadas por poucos países, a exemplo dos EUA. Para que o gás possa ser passado da forma gasosa para a líquida, é necessária uma tecnologia capaz de resfriá-lo a -162ºC, reduzindo seu volume e viabilizando o transporte do gás natural liquefeito para outros países por meio de navios.

A alta capacidade do Qatar no processamento de milhões de toneladas de gás por ano possibilitou a manutenção de custos baixos, cuja produção superou o consumo interno exponencialmente. Com a redução de custos e o aumento da produtividade, o Qatar tornou-se mais eficiente do que os americanos nessa produção. A associação entre eficiência e produtividade resultou num ganho tecnológico, possibilitando o surgimento de novos materiais. Nesse sentido, a produção de gás natural substituiu a de petróleo, a ponto de o Qatar anunciar a saída da OPEP em dezembro de 2018.

À medida que a produção de petróleo e gás aumentava, o Qatar diversificava sua economia, cujo contexto dinâmico estimulou o país a tornar-se grande acionista de multinacionais e a criar a Autoridade de Investimento do Qatar. Nesse sentido, o Qatar destaca-se em 28º lugar no índice de liberdade econômica, enquanto a Arábia Saudita e o Brasil ocupam o 91º e 150º lugares, respectivamente (dados da Heritage Foundation). Os líderes do Qatar sabiam do risco de uma economia que dependa exclusivamente de sua reserva natural, justamente o oposto do que ocorreu na Venezuela nos últimos 20 anos, dada a alta dependência econômica do país latino com relação ao petróleo.

Incentivos, inovação e avanço econômico

As dimensões geográficas e as riquezas naturais não garantem o sucesso de um país, pois há inúmeras nações pequenas ou detentoras de reservas naturais que seguem com severos problemas estruturais. Em matéria anterior na Gazeta, já destacamos o surpreendente sucesso da Estônia, um pequeno país báltico que não dispõe de recursos naturais. Argumentamos que a Estônia promoveu uma sociedade baseada em incentivos a partir das reformas realizadas ainda na década de 1990, o que propiciou uma sociedade altamente empreendedora e com poucas barreiras aos diversos setores da economia. Essas mudanças foram fundamentais para que o pequeno país passasse da linha da pobreza para o mundo digital em um curto interregno de aproximadamente 20 anos, contrariando determinismos e promovendo uma ciência de alto impacto (passou de 52% do CPP da Suíça, em 2002, para 97,5% em 2015-2016). Afinal, como esses incentivos podem transformar uma nação?

Uma das formas de compreender os incentivos é por meio da estreita relação entre economia e tecnologia, não se limitando ao orçamento de um governo em P&D. Caso um país disponha de mais recursos sem que haja um aumento de demanda, os incentivos tendem à estabilização. Basta haver um rápido aumento populacional para que a riqueza per capita diminua sistematicamente numa sociedade sem incentivos, pois nem mesmo as riquezas naturais garantem um crescimento sustentado. Essa foi justamente a tendência da Arábia Saudita, cuja população triplicou entre 1975 a 2009.

O aumento expressivo das divisas da Arábia Saudita, em decorrência da crise do petróleo, contribuiu para o aumento do PIB per capita durante a década de 1970. No entanto, com a dependência do petróleo numa economia pouco dinâmica, o PIB per capita foi reduzido sistematicamente nas décadas de 1980 e 1990. Já o Qatar apresentou uma tendência diferente no fim da década de 1990, pois sua população quintuplicou entre 1998 a 2017, enquanto seu PIB per capita se tornava um dos maiores do mundo.

As grandes invenções da humanidade foram motivadas mais pela curiosidade, independente da demanda inicial de um produto, conforme destaca Jared Diamond no clássico Armas, Germes e Aço. Entretanto, num mundo extremamente conectado, as invenções tecnológicas têm sido impulsionadas pelo aumento da demanda. Numa sociedade que responda por incentivos, o prêmio para descobertas aumenta diante da falta de recursos no curto prazo, estimulando a geração de tecnologias mais eficientes. No Qatar, o gás natural substituiu o petróleo devido à necessidade e aos incentivos econômicos, resultando em inovações tecnológicas.

A atuação em P&D de ponta no Qatar coincide com o período em que o país se mostrou mais dinâmico e empreendedor, mesmo diante de seu boom demográfico. A Arábia Saudita, no entanto, apresentou maiores dificuldades socioeconômicas durante o seu boom demográfico, pois a dependência econômica com relação ao petróleo foi insuficiente para atender à sua demanda. Somente a partir de 2004, o PIB per capita da Arábia Saudita voltou a crescer de forma sustentada, cujo período coincide com o incremento do seu impacto científico.

O novo contexto saudita apresenta-se mais dinâmico, levando o país a ser classificado pela Citigroup como o melhor país emergente para negócios em 2016. Suas transformações socioeconômicas estão consolidadas no Saudi Vision 2030, cujo plano prevê, dentre outros temas, a redução da dependência com relação ao petróleo, pois seus líderes sabem dos desafios impostos por uma população crescente. Embora ainda persistam problemas comuns a nações emergentes, a Arábia Saudita sustenta um alto IDH e um PIB per capita de 20,8 mil dólares, mais do que o dobro do Brasil (dados de 2017 do Banco Mundial). Como reflexo das melhorias, a King Abdullah University destaca-se em 4º lugar entre as universidades asiáticas em impacto científico (e 51º lugar do mundo) de acordo com o Leiden ranking de 2018, focando mais de 60% das pesquisas em engenharia e ciências físicas.

Eficiência ou ineficiência, qual o caminho a seguir?

Muitos colegas acadêmicos passaram a compreender a dimensão dos problemas que estamos tratando, mas evitam expô-los com receio de que haja corte orçamentário. “Melhor não criticar demais, senão os políticos de Brasília cortarão as verbas da ciência”, dizem. No entanto, governos da América Latina tendem a aumentar ou a reduzir o orçamento por razões que não se coadunam com um planejamento pautado em eficiência, cujo conceito deve ser entendido mediante a relação entre produtos gerados e insumos empregados, o que não implica a defesa de um modelo capaz de aproveitar as atividades humanas em sua totalidade.

Para superar a crise de eficiência e vislumbrar uma sociedade que responda a incentivos, é necessário passar por um intenso processo de desburocratização. Não é apenas a injeção de mais dinheiro para a P&D que trará o desenvolvimento científico desejado, mas tampouco adianta almejar eficiência se as burocracias indesejáveis persistirem. Dentre outros absurdos no Brasil, é inconcebível que um líder de Grupo de Pesquisa seja obrigado a investir tanto tempo em burocracias, em vez de trabalhar de forma adequada em projetos de P&D. Além disso, a burocracia brasileira intensifica o ambiente hostil ao empreendedorismo pela morosidade na abertura de empresas e pelas legislações excessivamente complexas.

Na vã tentativa de justificar a nossa crise, vemos com frequência comparações equivocadas do Brasil com nações fracassadas por meio de antigos clichês da colonização e do suposto imperialismo de nações avançadas. É contraproducente buscar semelhança em fracassos se os pontos em comum estão justamente no sucesso alheio, o que nos permite eliminar falhas. Em várias áreas do conhecimento, o sucesso dos eventos pode ser explicado pelo princípio Anna Karenina, pois é sedutora e intrigante a ideia de que as famílias felizes se parecem entre si, mas as infelizes são infelizes à sua maneira.

Se a prosperidade for entendida como algo a ser alcançado por uma sociedade, por que não nos inspirar em nações que utilizam ferramentas adequadas para alcançar seus objetivos, superando constantemente a pobreza e produzindo um conhecimento sólido? Pois bem, Estônia e Qatar certamente servem de inspiração, pois suplantaram determinismos e superaram a pobreza em pouquíssimo tempo. Até mesmo a Arábia Saudita parece ter entendido o recado, mas como fica o Brasil?

PS: “Descobrimos” o Qatar (e Arábia Saudita) depois que um leitor de nosso último artigo nos zombou, alegando que a Arábia Saudita ultrapassou a Estônia em CPP em 2017. Ele perguntou se deveríamos também “copiar” o exemplo de uma monarquia islâmica que impõe restrições às mulheres!

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