Que tal se, ao invés de colocar as crianças em escolas públicas, os pobres recebessem recursos para matricular os filhos nas instituições particulares que quisessem? Pode parecer uma ideia inviável, mas essa é a proposta do presidenciável João Amoêdo, do Partido Novo: implantar um sistema de “vouchers” escolares, seguindo modelos como os adotados em algumas regiões dos Estados dos Unidos ou em países como o Chile. Mas isso funcionaria no Brasil? Seria possível? Quais seriam os riscos?
Segundo Amoêdo, o programa começaria com um grupo pequeno de estudantes, que ganharia, por meio de sorteio, a oportunidade de terem seus estudos subsidiados em instituições particulares de sua escolha.
LEIA TAMBÉM: Privatizar as universidades públicas ainda é tabu, mas existem boas alternativas
“Queríamos testar, até aproveitando o conceito do Bolsa Família, dar para as pessoas mais pobres um vale educação para que pudessem colocar seus filhos nas escolas privadas”, disse Amoêdo, antes de uma caminhada do partido no Rio de Janeiro, no início de setembro.
“Sabemos que a qualidade da escola privada hoje é melhor, então não achamos justo impedir que pessoas mais pobres coloquem seus filhos no ensino privado”, afirmou.
Experiências no Brasil
A sugestão não é novidade no Brasil. Com a obrigatoriedade, desde 2016, de matricular crianças de 4 e 5 anos, diversas regiões passaram a suprir a escassez de vagas no ensino público comprando vagas em instituições privadas ou oferecendo dinheiro para as famílias pagarem as mensalidades.
No Brasil, a iniciativa ganhou força em 2016, em prefeituras como as de Porto Alegre (RS) e Piracicaba (SP). No Distrito Federal, os vouchers anunciados pelo governador Rodrigo Rollemberg (PSB) tiveram o valor de R$ 456 mensais para famílias com crianças de 4 e 5 anos que não conseguiram vagas na rede pública naquele ano letivo. Já em Salvador, o prefeito ACM Neto (DEM) ofereceu R$ 50 mensais para as famílias inscritas no Bolsa Família com crianças de até 5 anos.
As medidas adotadas no ano letivo de 2016 tiveram caráter emergencial: a ideia seria aumentar gradativamente o número de vagas na rede pública e diminuir o número de vouchers.
Opção mais barata
De acordo o líder da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação, Alessio Lima, em entrevista à Gazeta do Povo em 2017, os municípios adotaram a medida por uma motivação contábil: as despesas atreladas ao aumento de turmas na rede pública, como contratação de mais professores, são transferidas para a iniciativa privada. Isso contém os gastos dos cofres públicos, sem tirar a possibilidade de vagas para matrícula.
Além da otimização dos gastos, se há uma fiscalização do estado em relação à qualidade, qual seria o problema de gastar os recursos dessa forma, terceirizando para uma instituição que, reconhecidamente, pode dar uma melhor educação às crianças? A iniciativa privada tem também outras facilidades: pode demitir professores ruins (o que não é permitido na rede pública de ensino, com a anuência de sindicatos), contar com uma gestão transparente e de melhor qualidade, etc.
LEIA TAMBÉM: Mensalidade: remédio amargo para as universidades públicas
“O Estado paga apenas pelas vagas utilizadas. Sabemos que, com a estrutura dos gastos públicos, ele não tem fôlego para fazer investimentos pesados, e quando está com algum problema, novos investimentos são cortados”, avalia a economista Leide Albergoni, mestre em Política Científica e Tecnológica e professora da Universidade Positivo.
“Com um sistema de vouchers, isso se tornaria um gasto corrente, variável e não fixo. Quando você cria uma nova escola, você tem esse primeiro grande investimento e, logo em seguida, todo o gasto fixo com manutenção, corpo docente, infraestrutura e, às vezes, a escola acaba ficando ociosa, não operando em toda sua capacidade, mas mesmo assim precisa manter aquela estrutura. O modelo transforma esse custo fixo em custo variável – e uma referência muito boa para ser utilizada na criação de um modelo próprio é o ProUni (Programa Universidade para Todos)”, completa Leide.
Modelo global
No Chile, os vouchers são utilizados desde a década de 1980. O sistema de subsídios para alunos foi adotado como parte de um pacote de reformas educacionais e hoje predomina no país, tanto na educação básica quanto no ensino superior.
Lá, o programa fez dobrar o número de matrículas nas instituições privadas participantes em seis anos, com mais de 30% dos estudantes chilenos matriculados em todos os níveis de ensino por meio do sistema de vouchers.
O modelo também tem ganhado força nos EUA, com o apoio do presidente Donald Trump e da Secretária de Educação, Betsy DeVos. Hoje, Indiana é o estado que mais investe em vouchers, com US$ 22 milhões anuais distribuídos para famílias com crianças em idade escolar.
O programa foi lançado no estado em 2011 pelo então governador Mitch Daniels como parte de um pacote de mudanças no sistema de educação estadual. Os vouchers contemplaram inicialmente 7,5 mil crianças de famílias de baixa renda – hoje atende 35 mil alunos.
“A capacidade de escolher uma escola que os pais acreditam ser a melhor para o futuro dos seus filhos não se limita mais aos ricos”, anunciou Daniels na ocasião.
O resultado foi uma redução dos gastos públicos com educação, que permitiu ao estado se recuperar mais rapidamente da crise que atingiu o país em 2008. De acordo com o Centro para Políticas de Avaliação e Educação da Universidade de Indiana, o estado gastou US$ 146 milhões com vouchers entre 2009 e 2017, contra os US$ 6,8 bilhões que se estima que seriam gastos em escolas públicas para atender o mesmo número de alunos.
Corey de Angelis, analista de política educacional do Cato Institute’s Center for Educational Freedom, diz que o resultado do quase monopólio das escolas públicas sobre os recursos financeiros mostra a disparidade:
[Nos EUA] A estimativa de perda é de pelo menos US$1,3 trilhão ao longo do tempo em que os alunos passam em escolas públicas, se comparada com o que seria gasto caso estivessem em escolas privadas mantidas por meio de vouchers.
Impacto financeiro
O impacto do modelo não se limita ao campo financeiro. De acordo com um estudo da American Federation for Children, organização voltada para a criação de políticas educacionais no EUA, 91% dos alunos que recebem vouchers se formam no ensino médio, contra 70% dos alunos que não participam do programa.
A diferença se reflete na satisfação dos pais: quase 50% dos pais de alunos que recebem vouchers estão satisfeitos com as escolas que seus filhos frequentam, contra 30% dos pais de alunos sem vouchers, de acordo com uma pesquisa feita pela Universidade de Harvard.
Paradoxo
No Brasil, a implantação do voucher escolar como política pública para o ensino básico gera controvérsia.
Especialistas apontam que com o aumento do número de alunos de baixa renda na rede privada, surge um novo nicho de mercado que pode não apresentar a mesma qualidade de ensino e infraestrutura correspondentes a mensalidades mais caras.
A Suécia também enfrentou dificuldades ao implementar um sistema de vouchers: a partir do começo dos anos 2000, o país fragmentou o sistema educacional e as consequências apareceram nos rankings internacionais; em 2012, a OCDE recomendou uma “reforma educacional compreensiva” para reduzir as alternativas educacionais e restaurar o antigo sistema sueco.
Por outro lado, estudo realizado nos EUA sugere que a escola pública não pode ser considerada um bem comum. De acordo com a pesquisa, a escola pública fracassa nos princípios de não concorrência e não exclusividade que regem os serviços de bem público. Por isso, “não há um argumento forte para a operação governamental das escolas”.
A pesquisa sugere também que escolas estatais financiadas pelo governo, quando comparadas às escolas particulares que recebem vouchers, têm efeitos negativos substanciais na sociedade dos EUA associados a uma população com menos escolaridade, menos coesão social e maiores encargos aos contribuintes.