Vamos admitir: muitos acadêmicos de humanas estão alienando os estudantes e o público com sua opacidade, trivialidade e irrelevância. Um bom exemplo é o trecho de uma entrevista sobre o Manifesto para as Humanidades, um livro recente do diretor de um instituto para as ciências humanas em uma grande universidade dos EUA:
“Escrevendo este livro, passei a ver o novo sujeito acadêmico como um performativo de singularidade passional, materialidade híbrida e relacionalidade em rede. Este é um sentido em que o erudito de humanas que está surgindo é possivelmente pós-humano e um erudito pós-humanista. O locus do pensamento, para o estudioso prosteticamente extensível unido ao longo das correntes da relacionalidade em rede, é um caso conjunto.”
Não há como negar a importância das ciências humanas, mas esse tipo de escrita e reflexão nos dá uma boa ideia do motivo pelo qual tantos acadêmicos estão alienando aqueles que poderiam se beneficiar mais delas.
É inegável que, durante séculos, as ciências humanas deram importantes contribuições a outros campos de pesquisa, como medicina, direito e engenharia, para citar apenas algumas. Idealmente, administradores de universidades, executivos de empresas, diretores de fundações, formuladores de políticas e muitos outros – tanto no setor privado quanto no governo estadual e federal – podem e devem se beneficiar do conhecimento e da sabedoria incorporados nas ciências humanas. Infelizmente, essas pessoas estão cada vez mais alienadas de estudá-las em nossas faculdades e universidades.
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Eu vi isso quando fui presidente do National Endowment for the Humanities (NEH), uma agência federal dedicada a trazer os benefícios das ciências humanas para todos os americanos. Isso me deu uma visão próxima e pessoal do estado das ciências humanas em nível nacional. Essa experiência fortaleceu minha fé em sua importância, mas também me deixou com sérias dúvidas sobre como seus valores e conhecimentos estão sendo transmitidos.
Deixe-me explicar. O presidente é, por lei, a única pessoa na agência que decide o que é financiado. As recomendações para prêmios são feitas por bancas de revisão compostas principalmente por acadêmicos. Essas recomendações são então enviadas ao National Council on the Humanities, conselho formado por vinte e seis acadêmicos e cidadãos membros. O conselho faz suas próprias recomendações e as envia ao presidente, que toma a decisão final e única sobre o desembolso de fundos.
Como tive que aprovar pessoalmente cada concessão, participei de centenas e centenas de bancas de revisão para ter certeza de que tomaria decisões informadas. Eu também li milhares de candidaturas. Durante os sete anos em que servi como presidente, isso me proporcionou uma visão geral única de todas as disciplinas de humanas, mas, por uma questão de brevidade, vou limitar minhas observações ao conteúdo dos candidatos a bolsas de pesquisa do NEH. Cerca de metade de todas as candidaturas para o NEH são para tais bolsas, a maioria de professores de humanas de faculdades e universidades do país. Em média, apenas cerca de 8% deles são financiados.
Minha experiência com essas candidaturas foi, para dizer o mínimo, decepcionante. As fraquezas e tendências que observei nelas valem a pena examinar porque ilustram problemas maiores na academia hoje.
Obscuridade não é uma virtude intelectual
Um grande número de pedidos foi escrito, e mal escrito, em jargão requintado e impenetrável. A opacidade da prosa acadêmica, em grande parte expressa em insondável discurso da teoria (como a tagarelice citada acima), tem sido há muito tempo objeto de discussão, e até de escárnio, em grande parte merecido.
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Em algumas áreas da academia, essa escrita obscurantista é vista como um sinal de inteligência, mas isso é algo que nunca entendi. Acho que sou muito antiquado ao acreditar que a escrita clara é o resultado de um pensamento claro e que o uso do jargão às vezes é a maneira preguiçosa de evitar raciocínio difícil. Qualquer que seja a causa, muitos livros e artigos escritos por professores de humanas são desnecessariamente opacos. Além disso, um grande número de candidaturas que li lidavam com fragmentos incrivelmente pequenos das áreas de pesquisa dos candidatos, uma espécie de atomização da investigação científica.
Veja bem, não sou contra mergulhos profundos em assuntos aparentemente arcanos. Não houve maior defensor e mais fervoroso do que eu para os fundos para o Léxico Aramaico Compreensivo ou O Dicionário Sumério porque essas obras de referência aparentemente obscuras avançam e enriquecem nosso conhecimento de seus assuntos importantes. O problema foi, no entanto, que muitas das propostas de bolsa pediram apoio para projetos que não fizeram o mesmo. Eles eram simplesmente frívolos e não acrescentavam nenhum valor discernível a seus campos de estudo. Nem todo conhecimento é igualmente útil; as candidaturas bem-sucedidas ofereciam projetos que eram compreensíveis e provavelmente causariam um importante impacto e contribuição para os estudos de ciências humanas.
Igualmente decepcionante foi o fato de que um grande número de candidaturas seguiu os caminhos profundamente trilhados pelas primeiras ciências humanas pós-modernas dos anos sessenta e setenta.
Havia uniformidade e conservadorismo, entre eles, que indicavam falta de um novo pensamento. Em vez de avançar novas ideias, essas propostas me deixaram com a sensação de que seus prazos de validade haviam expirado anos antes. Quaisquer que fossem seus temas, os candidatos muitas vezes viam suas pesquisas exclusivamente através das mesmas lentes previsíveis de raça, classe, gênero, teoria ou alguns aspectos triviais da cultura popular. Abordagens novas e originais para as várias áreas das ciências humanas eram muito raras.
Muitas das candidaturas também foram fortemente ponderadas para a defesa de uma causa. A carta da NEH proíbe o financiamento de tais pedidos, mas seria um erro não vê-los como um reflexo do armamento dos acadêmicos de humanas para a promoção de agendas sociais ou políticas, algo que todos nós desaprovamos.
Além da torre de marfim
A principal inovação que presenciei foi o começo do uso sério e promissor da internet e da tecnologia digital para a pesquisa e difusão de temas de humanas. Considero este um dos mais promissores, mas ainda subutilizados, novos desenvolvimentos para a melhoria dos estudos em ciências humanas. Isso foi particularmente encorajador para mim, porque, como presidente do NEH, levei a sério a missão da agência de promover a ampla divulgação das ciências humanas a todos os nossos cidadãos. Não há bolsas de estudo de humanas suficientes para ir além da academia e influenciar os que agitam e informam as políticas públicas.
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Veja bem, nem todos os estudiosos podem ou devem escrever para o público em geral, mas mais deles deveriam tentar. Considere a História, por exemplo. Pouco tempo atrás, pesquisadores acadêmicos estavam escrevendo livros que foram bem recebidos e amplamente lidos pelo público em geral. Hoje, com raras exceções, são os jornalistas que escrevem os livros lidos por milhares de leitores comuns. É certamente verdade que uma pequena parte do trabalho deles é baseado em pesquisa acadêmica, mas a razão pela qual seus livros se saem bem é porque eles são treinados para escrever narrativas convincentes. Eles escrevem livros que as pessoas realmente querem ler.
O trabalho de muitos humanistas acadêmicos permanece dentro da Torre de Marfim precisamente porque eles escrevem apenas para outros estudiosos dentro de suas próprias subespecialidades. Essa tendência é exacerbada pelo processo de revisão, que geralmente premia estudos revisados por bancas em espaços acadêmicos, mas olha com desconfiança para livros e artigos com um apelo mais popular.
Má docência ameaça o futuro das humanidades
Como ex-membro de um comitê por mandato, e como membro do conselho de administração de uma grande universidade pública, vi que esses comitês davam muita atenção à pesquisa e muito pouco à excelência no ensino. Ensinar é, afinal, um dos veículos mais importantes para transmitir as ciências humanas para os futuros líderes do mundo.
Há um aforismo que diz algo como: “A pesquisa está para o ensino como o pecado está para a confissão: sem um, você não pode ter o outro”. Mas grande parte da pesquisa detalhada em tantas candidaturas para o NEH tinha um vínculo tão tênue com as responsabilidades de docência dos candidatos que era impossível discernir a conexão entre os dois. É por isso que instituí uma nova competição de subsídios do NEH para apoiar pesquisas diretamente ligadas à docência dos candidatos.
Não é segredo que os departamentos de humanas em todo o país testemunharam um declínio nas matrículas. Um estudo apontou que, de 1970 a 2004, as matrículas em departamentos de linguagem caíram de 7,6% dos cursos de graduação para 3,9%, e que História declinou de 18,5% para 10,7%. Houve também um desvio significativo em outros departamentos de humanas. Em uma geração, de acordo com o mesmo estudo, o número de “pessoas com especialização em ciências humanas caiu de um total de 30% para um total de menos de 16%”. Isso é lamentável. Futuros advogados, cientistas, médicos e engenheiros devem fazer esses cursos e usar o que aprenderam para ajudá-los a aplicar os benefícios do conhecimento das ciências humanas em seus esforços criativos.
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Acredito que uma quantidade significativa desse declínio ocorreu porque os estudantes estão alienados pela falta de importância e relevância de partes do currículo de humanas. Em outras palavras, eles estão detectando e rejeitando os mesmos atributos que eu observei ao ler as inscrições do NEH.
Não se trata apenas de dinheiro
Muitas pessoas no círculo de humanas discordariam desse diagnóstico. Em vez disso, colocam a culpa pelo declínio das ciências humanas na ascensão dos cursos de negócios, uma ênfase crescente em campos STEM e pais que querem pagar apenas por um curso que eles acham que vai dar a seus filhos um emprego lucrativo. Obviamente, há alguma verdade nessas observações. Ainda assim, parece claro que o mercado de trabalho de humanas não é um argumento forte o suficiente para sua própria importância e, em última análise, para a prosperidade de departamentos de humanas em faculdades e universidades. Isto é uma vergonha. Há muitos estudiosos excelentes, sensatos e criativos que precisam argumentar melhor para uma profissão que geralmente é sua paixão e sua carreira.
Periodicamente, há estudos acadêmicos lamentando essa “Crise das Ciências Humanas”. Na minha opinião, tais relatos ignoram ou encobrem os problemas atuais de pesquisa e ensino em humanas. Eles ignoram intencionalmente a raiz do problema, que é o estado declinante das ciências humanas em suas próprias instituições, pelo qual devem assumir grande parte da culpa.
Receio que o NEH seja responsável por parte disso. Falhou, especialmente nos últimos anos, em cumprir sua principal responsabilidade: promover as ciências humanas para todos os cidadãos americanos. Sua estrutura de concessão é esclerótica. Mudou pouco desde o começo do NEH há meio século, enquanto as últimas cinco décadas testemunharam uma grande mudança nas ciências humanas. É uma agência envelhecida e antiquada que precisa de grande reforma ou, se isso for impossível, privatização ou até mesmo extinção.
De fato, ao longo dos últimos anos, o financiamento do NEH e sua própria existência foram atacados por alguns membros do Congresso que afirmam, nem sempre sem razão, que é uma agência financiada pelo contribuinte federal que atende principalmente às elites culturais. Não é a primeira vez que isso acontece, mas o que é novo é que, além de lobistas e vários presidentes de universidades, o NEH tem agora poucos defensores.
Isto diz muito não só sobre o NEH, mas também sobre o apoio às ciências humanas em geral. A situação não melhorará até que aqueles que estão preocupados com o que aconteceu com o seu campo de ação comecem a defender, além de seus próprios interesses profissionais, essa parte essencial de nossa cultura e sociedade.
* Bruce Cole é membro sênior do Centro de Ética e Políticas Públicas em Washington, DC. Entre 2001 e 2009, foi presidente do ‘National Endowment for the Humanities’. É ex-professor emérito da Universidade de Indiana e autor de catorze livros.
©2016 Public Discourse. Publicado com permissão. Original em inglês.
Tradução: Andressa Muniz