No que depender dos livros didáticos brasileiros, dificilmente um estudante de ensino básico vai ter contato com a expressão Holodomor. Vai conhecer apenas por alto as causas da grande fome na China e, em boa parte dos casos, não será informado de que Cuba é uma ditadura.
Leia também: O que foi o Holodomor, a grande fome na Ucrânia?
A reportagem analisou seis livros de história que fazem parte da lista de obras aprovadas pelo Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) e estão entre os mais vendidos para escolas do Brasil, para estudantes dos anos finais do ensino fundamental e do ensino médio. Acompanhe agora a maneira como seis dos acontecimentos mais marcantes do século XX – em especial as grandes tragédias provocadas pelo comunismo – são apresentados por estas obras.
1. Revolução russa
O século XX costuma ser abordado pelos livros didáticos do oitavo e do nono ano do ensino fundamental e do terceiro ano do ensino médio. A revolução que derrubou os czares em 1917, desencadeou uma guerra civil até 1921 e consolidou uma ditadura comunista que durou até 1991 é descrita com detalhes, normalmente logo após os textos a respeito da Primeira Guerra Mundial.
O volume 9 do Projeto Araribá – História afirma: “Ao mesmo tempo que se desenrolava a Primeira Guerra, a Rússia passava por um processo revolucionário que também teria consequências mundiais. Pela primeira vez, o sistema capitalista era suplantado por outro, o socialista, um modelo de organização social que se apresentava como mais justo para a maioria da população.”
Para explicar a revolução russa, os livros retomam aos acontecimentos do início do século XX, em especial as manifestações populares, duramente reprimidas, de 1905. Também explicam o marxismo e o socialismo. O livro didático mais vendido do Brasil para o ensino fundamental, História, Sociedade e Cidadania, apresenta assim esse conteúdo: “O socialismo é uma doutrina política e social que propõe a transformação da sociedade visando à repartição da riqueza e à igualdade social. Opõe-se ao liberalismo, critica a injustiça social e propõe o advento de uma sociedade sem classes.”
A obra aborda o marxismo da seguinte forma: “Uma ideia central do marxismo é que ‘a história das sociedades humanas é a história da luta de classes’. (...) Para Marx e Engels, somente o proletariado é uma classe verdadeiramente revolucionária. E, por isso, deveria fazer uma revolução, tomar o poder das mãos da burguesia e implantar a ditadura do proletariado, a qual deveria vigorar só até as desigualdades sociais serem eliminadas.”
Todos os livros consultados lembram que os objetivos teóricos foram deturpados e o país se tornou uma ditadura, em especial depois que Josef Stalin chegou ao poder, em 1927. Alguns defendem a gestão anterior, conduzida pelo antecessor, Vladimir Lênin. “Mesmo durante a guerra civil, o governo bolchevique tomou medidas para melhorar a vida da população”, afirma o Projeto Araribá – História, “como, por exemplo, o estabelecimento de uma política para combater o analfabetismo no país. (...) Para Lênin, a política e a construção do socialismo não se separavam da educação, da instrução pública, do trabalho e do desenvolvimento da ciência”.
2. Holodomor e gulags
Ao entrar na história da União Soviética dos anos 1930, os livros afirmam que Stalin transformou o país em uma potência econômica. “O resultado dessa política econômica e educacional foi um crescimento significativo da URSS, que, em aproximadamente duas décadas, elevou-se à condição de superpotência”, explica, por exemplo, a obra História, Sociedade e Cidadania, que também lembra que o governante não era afeito à democracia: “Como chefe todo-poderoso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), de 1924 a 1953 (data da sua morte), Stalin implantou na Rússia uma ditadura sangrenta, conhecida como stalinismo”.
As obras lembram que esse feito teve um custo humano alto. Mas nenhum dos livros consultados dedica mais do que uma página à reorganização forçada da agricultura, nem menciona a tragédia do Holodomor, o período de fome na Ucrânia que matou até 12 milhões de pessoas na região – o dobro das vítimas fatais dos campos de extermínio nazistas.
O mesmo acontece com os gulags: eles são mencionados, por alto, sem mais informações a respeito dos campos de prisioneiros soviéticos, para onde eram enviadas quaisquer pessoas que discordassem do regime, ou simplesmente fossem vítimas dos programas stalinistas de realocação de etnias inteiras. Passaram pelos gulags mais de 14 milhões de pessoas, um número que tampouco aparece nos livros.
3. Revolução chinesa
Os acontecimentos que levaram à chegada de Mao Tsé-Tung ao poder na China, em 1949, costumam receber várias páginas de contextualização e explicação. As primeiras medidas adotadas por Mao são assim apresentadas pela obra História, Sociedade e Cidadania: “Atendendo às promessas feitas aos chineses, que na época somavam 600 milhões de habitantes, o governo de Mao Tsé-tung implementou uma reforma agrária (...). Além disso, ofereceu aos operários melhores condições de trabalho, participação na gestão das empresas, seguro-desemprego, entre outras vantagens.”
O terceiro volume do livro #Contato História, voltado aos alunos do ensino médio, assim explica a chegada do ditador ao poder: “Mao Tse-tung, que durante o episódio da Longa Marcha havia tido uma destacada atuação como estrategista militar, além de demonstrar seus conhecimentos sobre a realidade da população rural chinesa, proclamou então a República Popular da China, assumiu o governo e implantou um regime socialista no país”.
4. Grande fome na China
O período de grande fome provocado pela reorganização da produção é mencionado em um ou dois parágrafos, que, em geral, não dimensionam o impacto humano dessa medida administrativa desastrosa: mais de 45 milhões de pessoas morreram de fome.
É o caso do Projeto Araribá – História, em seu volume 9, que menciona as mortes de forma rápida: “O novo governo estatizou a atividade industrial, confiscou as grandes propriedades e parte dos bens dos camponeses médios e formou fazendas coletivas, nas quais os camponeses mantinham apenas a propriedade sobre animais, objetos pessoais e familiares. Porém, o programa de comunicação da agricultura desorganizou a produção e resultou na morte de milhões de camponeses, vítimas da escassez de alimentos que atingiu o país entre 1958 e 1960”.
5. Revolução Cubana
Os livros didáticos consultados costumam explicar a revolução como resultado da revolta contra o governo cubano, que desde o século XIX era alinhado aos interesses dos Estados Unidos. “Na guerra de independência de Cuba, que ocorreu entre 1895 e 1989, os cubanos, liderados por José Marti e com a ajuda dos Estados Unidos, derrotaram as tropas espanholas. Porém, essa ajuda teve um custo alto para Cuba. Após a morte de Marti, os estadunidenses submeteram a ilha a uma vergonhosa tutela”, afirma o Projeto Araribá – História, em seu volume 8.
Na interpretação da maior parte das obras, foi a recusa dos americanos em aceitar as medidas adotadas por Fidel Castro que lançou Cuba para a área de influência soviética. “No poder, Fidel Castro tomou algumas medidas populares”, afirma História, Sociedade e Cidadania, “como reforma agrária, redução de 50% nos alugueis residenciais, nas tarifas telefônicas e de eletricidade e no preço dos alimentos; reforma do ensino visando acabar com o analfabetismo; combate à corrupção e ao jogo; nacionalização dos bancos e das principais empresas estadunidenses estabelecidas em Cuba (...). Diante dessas medidas, as relações entre Cuba e os Estados Unidos foram se tornando cada vez mais tensas. (...) Conforme a pressão estadunidense sobre Cuba aumentava, o governo de Fidel estreitava laços com a União Soviética (...).”
É essa a argumentação, também, do volume 9 da obra Estudar História: das Origens do Homem à Era Digital: “As reformas promovidas pelo novo governo cubano feriam os interesses das elites, principalmente dos latifundiários e das empresas estrangeiras. (...) As pressões estadunidenses sobre o programa de reformas em Cuba e o interesse do governo de Fidel Castro em garantir um mercado para o açúcar cubano e um fornecedor de petróleo para a ilha levaram à progressiva aproximação de Cuba com a União Soviética”.
Duas obras propõem que os líderes cubanos adotaram o socialismo sem serem induzidos pela reação agressiva de Washington. Uma delas é o volume 9 do Projeto Araribá – História: “Os líderes cubanos implantaram um novo governo, que confiscou e estatizou propriedades estadunidenses e realizou a reforma agrária. Dois anos depois, em 1961, Cuba se proclamou um país socialista”. A outra é História em Movimento, volume 3, dedicado ao ensino médio e que descreve: “Liderado por Fidel Castro, o governo revolucionário desapropriou os grandes latifúndios, distribuiu terras entre os camponeses e nacionalizou as grandes empresas, muitas delas de origem norte-americana. Em 1961, Fidel Castro reconheceu publicamente o caráter socialista da Revolução Cubana. Muitos de seus opositores foram mortos ou fugiram para os Estados Unidos”.
6. Ditadura militar no Brasil
A fim de explicar os acontecimentos de 31 de março e 1º de abril de 1964, os livros explicam as reformas de base propostas pelo presidente João Goulart como o grande motivo para a reação das classes conservadoras da sociedade. “As Reformas de Base provocaram a reação das elites, principalmente do setor agrário e industrial. Essas elites, aliadas à classe média, organizaram várias manifestações contra o governo”, afirma a obra #Contato História. “Assim, a manifestação civil deu respaldo aos militares, que organizaram um golpe de estado.”
Mas os livros afirmam, sem base histórica, que Jango não resistiu para evitar uma guerra civil. “Na madrugada do dia 2 de abril, o Congresso declarou vaga a Presidência da República. O presidente da Câmara, Rainieri Mazzilli, foi então empossado na presidência”, afirma Estudar História: Das Origens do Homem à Era Digital. “Para evitar uma guerra civil no país, Jango decidiu não reagir ao golpe e partiu para o exílio no Uruguai.” Na verdade, o presidente permaneceu no Rio Grande do Sul, buscando organizar uma contrarrevolução, mas desistiu e seguiu para o exílio no Uruguai.
Sobre a luta armada, ela é apresentada como uma reação à ditadura. “Para muitos, o AI-5 representava um golpe dentro do golpe. Com o endurecimento da ditadura, milhares de pessoas foram presas e torturadas e muitas outra seguiram para o exílio no exterior”, afirma História em Movimento. “Nesse clima repressivo, um grande número de jovens, muitos dos quais sob a liderança de dissidentes do Partido Comunista Brasileiro (PC), decidiram deixar de lado os protestos pacíficos e partir para a luta armada. Surgiu, assim, cerca de uma dúvida de grupos guerrilheiros, abrigando aproximadamente quinhentos combatentes, entre homens e mulheres, que tentavam derrubar o governo por meio das armas”.
Em #Contato História, os guerrilheiros são apresentados da seguinte forma: “Focos de resistência popular armada começaram a se formar nas cidades e também no campo. Estudantes, operários e camponeses ligados a ideologias de esquerda se engajaram em organizações guerrilheiras”.
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