Com a reforma do ensino médio, o espaço para a filosofia nas salas de aula reduziu mais ainda: sem deixar de ser obrigatória, ela não é mais exigida nos três anos dessa etapa no ensino. Mas os estudantes perdem algo com a redução da carga horária da disciplina?
Muitas pessoas acreditam que não. Isso porque, ao contrário do que ocorre em outros países, alunos chegam ao ensino médio com deficiências graves em outras disciplinas e investir tempo em filosofia não seria a melhor escolha.
Mesmo assim, se trabalhada adequadamente, ela poderia ser um mecanismo para melhorar o péssimo desempenho de estudantes no Brasil nessa fase, como faz em outras etapas da educação, como o ensino infantil.
Em países desenvolvidos, estudo recente, promovido pela organização Education Endowment Foundation (FEE), mostrou que crianças do ensino fundamental de escolas da Inglaterra tiveram melhor desempenho em matemática e leitura após a implementação de um programa – o Philosophy for Children (P4C) (Filosofia para Crianças, em tradução livre) – com a finalidade de ensinar filosofia básica aos alunos. O que poderia ser uma boa ferramenta para os alunos do 3º ano do Ensino Fundamental brasileiros da rede pública, hoje com níveis de leitura e matemática considerados insuficientes, como mostra a última avaliação nacional de alfabetização (ANA).
O programa da FEE foi lançado pelo professor Matthew Lipman nos anos 70, nos Estados Unidos, e já foi usado em mais de 60 países. Inclusive, em alguns, houve a aposta no ensino da matéria já nos primeiros anos – na França, por exemplo, crianças têm o primeiro contato com a filosofia já na pré-escola.
“O ser humano precisa desenvolver-se integralmente e precisa do pensamento criterioso. Estudos científicos apontam que a formação filosófica desde o Ensino Fundamental potencializa a aprendizagem de matemática e linguagens, assim se o governo federal quer que crianças e jovens sejam hábeis nessas matérias devem promover o estudo filosófico desde a infância”, afirma a doutora em Filosofia e professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Karen Franklin da Silva.
Histórico
A BNCC (Base Nacional Comum Curricular), entregue pelo ministro da Educação, Mendonça Filho ao Conselho Nacional de Educação (CNE), reforça os elementos contidos na reforma dessa etapa da educação básica, sancionada em fevereiro de 2017 pelo presidente Michel Temer, prevendo a retirada da filosofia como disciplina obrigatória nos três anos.
Agora, ela aparece diluída nas áreas Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, ainda que seja exigida na carga horária. Esse documento norteará os currículos escolares e também servirá como referência para a formação dos professores, livros didáticos e, futuramente, as avaliações.
Foi em 2008, com a Lei 11.684, que modificava o artigo 36 da LDB de 1996, que a Filosofia, assim como a sociologia, tornou-se disciplina obrigatória no ensino médio. Antes disso, o ensino era opcional e, pela LDB de 1996, ao final de sua formação, o aluno deveria ter o “domínio dos conhecimentos de filosofia e de sociologia necessários ao exercício da cidadania”.
Controvérsia
Considerada uma das mais duras críticas do modelo adotado pelo sistema educacional, a antropóloga Eunice Durham, pesquisadora do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo (USP) argumenta que a filosofia, assim como a sociologia, não deveriam sequer ser disciplinas.
Para a educadora, só quem de fato se interessa pelo assunto deveria estudá-lo com mais profundidade. “Mesmo quando se faz um projeto diferente, é sempre para toda a escola. Por isso o aluno reclama que a escola é chata, e o professor diz que os alunos são desinteressados. Onde houver dinheiro, sociologia e filosofia deveriam ser disciplinas optativas”, opinou em entrevista à Revista Educação.
“Duvidosa”, porém, é a palavra que o doutor em Filosofia e professor da USP (Universidade de São Paulo) Oliver Tolle utiliza para referir-se à promessa da BNCC de proporcionar liberdade de escolha de estudos de disciplinas. Para ele, o aluno de Ensino Médio ainda não tem elementos suficientes para escolher uma área de interesse.
“Como ele pode optar por uma área, se ele ainda não conhece seus conteúdos e possibilidades? O Ensino Médio deveria ser a última etapa da obtenção de conhecimento geral”, questiona.
Formação humana
Segundo o doutor em Filosofia da Educação e coordenador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia Política e Jurídica da Universidade Estadual de Londrina, Bianco Zalmora Garcia, a filosofia se distingue por suas virtudes educacionais peculiares na formação do estudantes.
“Ela proporciona, no modo como enfrentam a realidade na qual estão inseridos, uma linguagem de segurança e uma autonomia do pensar racional, de natureza reconstrutivo-conceitual, crítico-reflexiva e argumentativa.”
Já Marcos Sidnei Pagotto-Euzebio, doutor em Filosofia da Educação e professor do Departamento de Filosofia da Educação e Ciências da Educação da Faculdade de Educação da USP (Universidade de São Paulo), critica a falta de reconhecimento público da disciplina.
“É curioso que filosofia e sociologia tenham sido as únicas disciplinas que, de 2008 até a recente mudança na LDB, tinham sua obrigatoriedade garantida por lei. Isso é prova de sua força? Ao contrário, prova sua fraqueza. Não há necessidade de lei que obrigue o ensino de matemática ou de língua portuguesa porque não passa pela cabeça de ninguém deixar de ministrá-las”, analisa.
Instabilidade prejudica avaliação
Pagotto-Euzebio afirma que a decisão não é pedagógica, mas sim política. “Não há realmente nenhuma teoria da educação por trás dessas mudanças. O caso é político: a filosofia é julgada em termos mais ou menos favoráveis de acordo com quem ocupa o governo. Isso é mais um exemplo da recorrente e perniciosa prática em educação de quase nunca permitir que uma ideia ou uma política se desenvolva o suficiente para ser avaliada”, critica o professor.
Já Bianco Zalmora Garcia aponta dois graves riscos para a filosofia: o enfraquecimento de sua representatividade na área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas e o de não ser ofertada para os estudantes que não optarem por essa área do conhecimento:
“De um lado, há o esvaziamento e o empobrecimento do ensino filosófico; de outro, sob pretexto de escolha de outras áreas, a exclusão dos estudantes das virtudes formativas da filosofia reconhecidas desde sua reinserção universal no currículo escolar do Ensino Médio.”
Os ganhos após uma década
Em razão da obrigatoriedade da disciplina nos últimos dez anos, novos cursos de filosofia foram criados em universidades públicas e privadas, além da expansão do número de vagas já existentes, aponta Oliver Tolle.
“Interrompe-se abruptamente esse projeto. Assim, coloca-se os alunos universitários e os formados em uma situação de insegurança em relação ao seu futuro profissional, além de inibir o ingresso de novos alunos no curso de licenciatura em filosofia”, avalia.
Para Tolle, a BNCC despreza os atuais mecanismos de ingresso no ensino superior, que exigem uma formação plural, fornecida justamente no ensino médio.
“Ela provavelmente será aplicada com maior facilidade na rede pública de ensino, mas dificilmente será absorvida integralmente pelo ensino privado, que é avaliado justamente pela sua capacidade de fornecer aos seus alunos acesso às universidades”, prevê o professor, que aponta que a disciplina não pode ser vista como disputa ideológica em sala de aula.
“Sua função é justamente questionar as ideologias e apontar para os seus limites. Em um país de grandes desigualdades sociais, a filosofia é uma contribuição importante para a formação do aluno, porque ela o ajuda a lidar com as complexidades de sua vida pessoal, social e profissional e, principalmente, a adotar uma postura investigativa e questionadora”, diz.
Filosofia: a quem interessa?
A professora Karen Franklin questiona como um adolescente que nunca estudou filosofia de fato poderá optar por estudá-la. “E, quando falam em estudar com mais profundidade, a meu ver, significa que já deveria haver algum estudo. Onde exatamente se situa tal estudo na proposta? Filosofia sempre deve ser estudada com profundidade na escola”, critica.
“A filosofia é um convite a participar de uma grande e antiga conversa, em que muitos falam. Quero fomentar esse diálogo? Quero habitar essas mentes, esses diferentes pontos de vista? A resposta que eu der a essas perguntas é a resposta sobre a importância da Filosofia para a formação do ser humano”, conclui Pagotto-Euzebio.