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Há alguns anos, um colega professor desabafava sobre sua insatisfação com o ambiente de trabalho. Segundo ele, após uma reunião do conselho de professores, ele pediu a palavra para questionar a influência da escola (captada por alguns funcionários) no apoio de movimentos políticos dentro da instituição, prejudicando até mesmo o andamento das atividades escolares através da interrupção das aulas. Logo após terminar seu raciocínio, esse colega foi interpelado por outros que não receberam sua fala muito bem.

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Resumindo as respostas, para esses profissionais, o verdadeiro objetivo da educação era por uma escola “questionadora”, pautada na “autonomia”, fomentando a “emancipação” “integral” do estudante, concebendo o docente como um “mediador” do aprendizado, avaliando “criticamente” o cenário educacional e “os saberes” dos aprendizes. Afinal, já que a educação não se faz só “entre os muros da escola”, existiria algum motivo para o questionamento do professor? Deixemos a insatisfação desse colega para outro momento. Vamos nos ater aqui ao argumento dos demais professores.

Após passarmos anos em instituições de ensino superior, seja como professor ou aluno, podemos dizer com alguma segurança que alguns terrenos da licenciatura foram povoados por ideias muito bonitas, fáceis de elaborar e de baixíssimo direcionamento prático. Diversas frases de efeito são arremessadas para validar ou desmentir práticas que nos parecem dizer muito pouco sobre as qualidades e as deficiências no ensino nacional.

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Quando, por exemplo, alguém alega que defende “o ensino público de qualidade” pautado na autonomia, é possível também se questionar quantas pessoas ousariam dizer que defendem o ensino público quebrado ou o fracasso educacional baseado na submissão? Ainda que o sujeito defenda a privatização do ensino, pouco contribui para o debate dizer que seu argumento é superior pelo fato de vir acompanhado de um “de qualidade”. Sem negar que eles existam, também não recordamos de nenhum professor que alegasse ser necessário ignorar o aprendizado dos estudantes.

Uma circunstância curiosa é ver teóricos educacionais debatendo para avaliar o quão crítica é certa perspectiva educacional. Expressões como: “Por que a verdadeira concepção crítica…” ou “a concepção crítica libertadora...”, “As concepções críticas curriculares….”, estão dispersas nas teorias educacionais do país, muitos delas reivindicando para si o título de mais legítimas do que as outras.

Como nos casos das expressões anteriores, não temos absolutamente nada contra a ideia do pensamento crítico. O dilema é que boa parte das vezes, esses conceitos são apresentados através de um espectro tão amplo e genérico quanto difícil de estabelecer qualquer tipo de avaliação científica ou minimamente precisa. Abraçada com outras perspectivas teórico-filosóficas, é comum ver a expressão sendo usada tanto para fazer sugestões a um novo estudo, emitir uma nota de repúdio ou solicitar uma paralisação, impedindo que os demais tenham acesso às aulas.

Digamos que fosse possível dizer que o professor Juquinha é 99,8% crítico enquanto Chiquinho, mais fraco, tem apenas 85% do atributo. Ainda sobraria a pergunta: o que isso reflete no aprendizado e desempenho escolar dos seus estudantes? É possível avaliar de forma minimamente razoável o constructo? O psicólogo cognitivo Daniel Willingham, autor do livro “Por que os alunos não gostam da escola?”, apresenta algumas dificuldades na promoção daquilo que é quase um mantra nas nossas faculdades de licenciatura.

Segundo ele, se, por um lado, o maior tempo de escolaridade é capaz de promover um aumento do desempenho em testes que avaliam habilidades de domínio inespecífico (o que poderíamos chamar de pensamento crítico, associado ao desenvolvimento da inteligência), por outro, ainda há um grande debate na identificação de quais tipos de intervenções e adaptações curriculares mais diretivas seriam capazes de promover melhorias duradouras e significativas para desenvolver este tipo de habilidade.

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Observe que, mesmo para fornecer essas informações com algum tipo de restrição, foi necessário estabelecer um recorte conceitual prévio sobre o assunto. O problema é que não raramente, essas discussões são compostas por um fraseado tão sofisticado como incerto, partindo da premissa de que é possível e necessário avaliar o “quão crítica”, “questionadora” ou “cidadã” é determinada teoria para saber se o ensino está sendo executado de forma correta.

Neste cenário, esquece-se que muitas vezes esses conceitos, adaptados à revelia, criaram vida própria e já quase não refletem a experiência, nem as informações que podem ser medidas em determinado local. Em um ato contínuo de reificação, a teoria está lá para garantir que os profissionais se reconheçam e continuem a defender que o problema da educação está no quanto determinado educador se filia a certos conceitos, vistos como pertencentes ou refratários de uma determinada corrente de pensamento.

Através de princípios educacionais muito difundidos na licenciatura, e até em normas que regulamentam o ensino nacional, é possível identificar jargões que atuam através de uma linguagem vaga que pouco auxilia os professores a enfrentar o complicado cenário educacional brasileiro. Essa linguagem por vezes atua como uma palavra mágica para dizer a filiação do professor. Se o professor é visto como tradicional, quer dizer que ele é mau. Agora, caso ele seja visto como “crítico”, devemos enxergá-lo no caminho correto, caberia agora avaliar se ele é um representante legítimo de tal criticidade.

Essa discussão, que sai do nada e migra para lugar algum, contribui muito pouco para a formação dos professores e criam uma distração para um dos problemas mais graves da nossa educação caracterizada pelo baixo desempenho escolar.

Enquanto isso, em livros considerados clássicos da educação nacional, a ideia de memorizar, automatizar e transferir conhecimentos são vistas como problemas que devem ser evitados pelo professor. Há mesmo os que negam bases biológicas para o aprendizado, tomando o referencial da área como uma invasão que tem como principal objetivo colocar a culpa (culpabilização) do fracasso escolar no aluno.

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Ano passado, em uma disciplina realizada na pós-graduação, apresentamos que havia até mesmo artigos questionando a “biologização” da vida (?). De certa forma, o ser Prudente de Oscar Wilde personifica nossos jargões educacionais, adora-se os nomes, mas se esquece do conteúdo, que, no nosso caso, pode ser medido por testes internacionais de desempenho acadêmico da educação básica.

Cerca de dois terços dos estudantes brasileiros têm o desempenho na matemática proporcional aos 5-10% dos estudantes de países desenvolvidos com problemas graves e persistentes na disciplina. Um dado interessante é que, em 2002, a UNESCO realizou uma pesquisa sobre o que os professores brasileiros consideravam mais importante para os propósitos educacionais. Enquanto “desenvolver a criticidade e o espírito crítico” e “formar cidadãos conscientes” eram vistos como os requisitos mais importantes para a grande maioria dos professores, transmitir conhecimentos atualizados e relevantes, além de proporcionar conhecimentos básicos não obtiveram a importância nem da quinta nem décima parte (respectivamente) dos mesmos professores.

Segundo um dos livros que divulgou a pesquisa, a explicação pelo desinteresse nesses últimos pode residir na possível recusa a um modelo de ensino “conteudista” (UNESCO, 2004). Para os autores deste texto, parece um grande desafio pensar em como poderíamos desenvolver essa cidadania e criticidade sem informações básicas, atualizadas com uma forte preocupação com o conteúdo.

Doze anos depois dessa pesquisa, segundo dados do próprio IPEA, mais de mais de 70% da população brasileira possuía ao menos 1 ano de atraso escolar, enquanto uma parcela ainda expressiva de pessoas não sabe ler nem escrever um bilhete simples (cerca 8,2% da população acima de 15 anos).

Um outro dado extremamente chamativo para o cenário trágico do nosso ensino está na quantidade de casos de analfabetismo funcional, mesmo em estudantes que cursam há muito tempo o ensino regular. Segundo dados do Instituto Paulo Monte Negro, 33% dos alunos que cursam os anos finais do ensino fundamental se enquadram no desempenho proporcional ao de analfabetismo funcional, esse número chega a 13% com os estudantes do ensino médio.

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Neste último cenário, seria o mesmo que dizer que, a cada 100 alunos que cursam mais de 10 anos do nosso ensino, 13 saem de lá mal conseguindo escrever o seu nome ou interpretar informações básicas de um texto de baixa complexidade. Este número é superior ao de alunos que conseguem chegar à proficiência na mesma modalidade de ensino (12%). Dito de outro modo, isso significa que numa escala de 0 a 10, mais alunos ficariam abaixo dos 4 pontos do que acima de 7,5.

Através de alguns dados preliminares, é possível avaliar com certa cautela a forte propaganda em cima desta criticidade tão mal definida, em um país que ainda reluta para alfabetizar e fornecer conhecimentos básicos matemáticos para parte significativa da população. Entendendo estas habilidades e conhecimentos como complementares, talvez seja justo se perguntar por que houve uma desatenção tão grande do nosso sistema educacional para estes tipos de conhecimentos fundamentais?

Se você acha que essa discussão tem algum sentido, você provavelmente vai gostar do nosso livro publicado pela editora Ampla chamado “Pedagogia do Fracasso: o que as ciências cognitivas têm a dizer sobre a aprendizagem?”. Na pior das hipóteses, o leitor vai se deparar com um livro que busca apresentar uma proposta “crítica” sobre a educação.