É ponto pacífico, entre educadores e economistas, que os investimentos em cuidados no início da vida são os que apresentam as maiores taxas de retorno para os níveis educacionais de uma população. O desafio, porém, é fazer com que os políticos e a sociedade civil empenhem esforços e recursos nessas ações, principalmente em um momento de aperto nas contas públicas.
Com esse objetivo, o Family Talks, uma iniciativa da Associação de Desenvolvimento da Família (Adef), organização sem fins lucrativos que desde 1978 se dedica a apoiar a família no Brasil, lançou no mês passado o primeiro relatório do projeto “Famílias: potencial para o desenvolvimento integral e sustentável”, com foco na importância da família para a educação na primeira infância. O documento foi produzido a partir da discussão entre um grupo de especialistas no tema, ocorrida em novembro do ano passado.
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A Gazeta do Povo conversou com Rodolfo Canônico, diretor executivo do Family Talks, sobre o assunto. Na entrevista que você pode conferir mais abaixo, Canônico explica o projeto e resume desafios e oportunidades para a articulações de ações efetivas na primeira infância. “Medidas assistenciais devem ter como objetivo proteger a família, o que também implica assegurar sua liberdade”, destaca.
No campo da primeira infância, o Brasil ainda está atrasado, de acordo com as metas que impôs a si próprio no Plano Nacional de Educação (PNE), que abrange o período de 2014 a 2024. A primeira meta diz respeito, justamente, à Educação Infantil (EI): “universalizar, até 2016, a Educação Infantil na pré-escola para as crianças de 4 a 5 anos de idade e ampliar a oferta de Educação Infantil em Creches de forma a atender, no mínimo, 50% das crianças de até 3 anos até o final da vigência deste PNE”.
No entanto, de acordo com o Painel de Indicadores do Plano Nacional de Educação, 91% da população de 4 a 5 anos que frequentava a escola ou creche em 2015, uma taxa estável desde 2013, e apenas 30,4% da população de 0 a 3 anos que frequentava escola ou creche no mesmo ano.
O PNE prevê ainda 17 estratégias para alcançar a Meta 1, uma das quais é o Apoio à Família: “Implementar, em caráter complementar, programas de orientação e apoio às famílias, por meio da articulação das áreas da Educação, saúde e assistência social, com foco no desenvolvimento integral das crianças de até 3 anos de idade”.
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Além disso, embora a Lei 13.257/2016, o chamado Marco Legal da Primeira Infância, reconheça a necessidade de “estabelecer políticas, planos, programas e serviços para a primeira infância que atendam às especificidades dessa faixa etária, visando a garantir seu desenvolvimento integral”, as iniciativas nesse sentido ainda são tímidas.
Em outubro de 2016, o governo federal lançou o programa “Criança Feliz”, com o objetivo de atender gestantes e crianças de até 6 anos em famílias beneficiárias do Bolsa-Família. Segundo dados do Ministério do Desenvolvimento Social, em todo o o país, são 311.880 pessoas crianças e gestantes acompanhadas semanalmente por 13.198 visitadores em 2.144 municípios.
Desafios e oportunidades
Para discutir os desafios em torno da implementação da Estratégia 1.12 do PNE, com foco no papel da família, o Family Talks reuniu 13 especialistas, entre educadores, médicos pediatras, economistas e diretores de ONG. A partir da técnica técnica de entrevista Grupo Focal, que permite levantar informações básicas e impressões dos participantes, o relatório identificou dois aspectos centrais para a efetividade da Estratégia 1.12: a orientação e o apoio às famílias e a articulação de políticas públicas nas áreas de saúde, assistência social e educação, com foco na integração das ações de governo e da sociedade civil.
O relatório destaca as seguintes ações, entre outras, como necessárias para a implementação da Estratégia 1.12 do PNE:
- Organizar e direcionar as parcerias do poder público com organizações da sociedade civil;
- Fomentar mais redes verticais, que permitam maior integração entre iniciativas da sociedade civil com a Academia e o poder público;
- Aproveitar estruturas e iniciativas existentes, como o Programa de Educação de Jovens e Adultos (Proeja) e a Pastoral da Criança;
- Fazer das escolas e centros de educação infantil (CEI) pontos de articulação para ações intersetoriais;
- Preparar os diretores e professores para se relacionar com as famílias;
- Organizar as ações de acordo com as diferenças territoriais.
A Gazeta do Povo fez quatro perguntas sobre o tema para Rodolfo Canônico, diretor-executivo do Family Talks:
Gazeta: O que é primeira infância e por que esse período é importante?
Rodolfo Canônico: Ainda que haja algumas diferenças quanto à definição (0 a 6 anos, 0 a 3 anos, etc.), a primeira infância é o período composto pelos primeiros anos de vida da pessoa. Os avanços da neurociência evidenciam cada vez mais a singularidade dessa fase, com repercussões profundas para toda a vida da pessoa. Os estímulos que a criança recebe, especialmente dos 0 aos 3 anos, impactam o desenvolvimento da arquitetura cerebral. As conexões cerebrais que se formam nos primeiros anos podem ser um fundamento forte ou fraco para as conexões formadas posteriormente. Além disso, a saúde física e mental, as habilidades sociais e as capacidades cognitivas e linguísticas que se desenvolvem nos primeiros anos de vida são importantes para a vida escolar e profissional, além da vida comunitária em si.
O que é o projeto “Famílias: potencial para o desenvolvimento integral e sustentável”? Quais são os próximos passos depois do lançamento do relatório?
O projeto tem por objetivo trazer ao Brasil a discussão sobre a importância de políticas para a família no contexto dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, por meio da realização de encontros de especialistas e publicação de documentos de referência até 2019. Assim, pretende-se contribuir com diretrizes para ações e/ou políticas públicas voltadas às famílias e que sejam, ao mesmo tempo, relevantes para alcançar os ODS. Uma referência importante é o recente estudo publicado pelo Unicef, intitulado “Sustainable Development Goals & Families (SDGs & Families)”.
Neste semestre serão realizados mais três encontros, com os seguintes temas: "Ações centradas na família para prevenção da violência" (ODS 16: Paz, Justiça e instituições eficazes); "Família e alimentação adequada" (ODS 2: Fome Zero); "Trabalho, Primeira Infância e conciliação trabalho-família" (ODS 4: Educação de Qualidade; ODS 5: Igualdade de gênero). Para cada encontro será produzido um relatório com as conclusões dos especialistas envolvidos.
Em 2019, além de mais dois ou três encontros, os relatórios serão compilados em uma única publicação e será feito um lançamento, para disseminação dos resultados. Também organizaremos um evento de lançamento do relatório "SDGs & Families" no Brasil, em parceria com o Unicef, dentro do escopo de ações do nosso projeto.
Como se pode orientar e apoiar as famílias, com foco nos cuidados na primeira infância?
Relações responsivas com as crianças – tanto esperadas quanto essenciais para seu desenvolvimento – são a maneira mais efetiva para lhes proporcionar estímulos positivos, que contribuem no desenvolvimento de sua arquitetura cerebral. Por isso, é fundamental formar os cuidadores de crianças, de modo a que desenvolvam as capacidades que lhes permitam criar um ambiente de relações responsivo às necessidades do desenvolvimento infantil. Intervenções com as famílias são um dos melhores caminhos para se conseguir isso. Além das visitas domiciliares, indispensáveis, propomos a realização de atividades de apoio e formação às famílias com crianças de 0 a 3 anos nos equipamentos de educação (escolas e creches) e o aproveitamento de estruturas já existentes e com grande capilaridade no território nacional, como o Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja) e a Pastoral da Criança, para alcançar o maior número possível de famílias, no esteio da Estratégia 1.12 do Plano Nacional de Educação.
Como evitar uma intromissão excessiva do Estado nas questões familiares, na formulação e execução de políticas públicas para a primeira infância?
Medidas assistenciais devem ter como objetivo proteger a família, o que também implica assegurar sua liberdade. Por exemplo., o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seu artigo 19, garante o direito da criança ser educada no seio de sua família, assegurando a convivência familiar. Além disso o parágrafo 3º determina que a reintegração à família é sempre medida prioritária. Em resumo, apoiar as famílias, sempre respeitando suas opções. Um caminho para harmonizar a situação é a observância do princípio da subsidiariedade, o qual determina que uma questão social ou política deve ser resolvida no nível mais imediato, sempre que possível. Assim, apenas extraordinariamente alguma intervenção explícita na família é cabível, em geral nos casos de violação de direitos (p. ex., violência contra crianças). Habitualmente, a ação do Estado deve ser o apoio às famílias, especialmente aquelas em situações de maior vulnerabilidade.