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Os desafios para inserir refugiados nas escolas brasileiras

Regime legal específico que protege os direitos dos refugiados é conhecido como “proteção internacional dos refugiados”, firmado pela Convenção de 1951 da ONU. | Divulgação/ONU.
Regime legal específico que protege os direitos dos refugiados é conhecido como “proteção internacional dos refugiados”, firmado pela Convenção de 1951 da ONU. (Foto: Divulgação/ONU.)

Mais de 3,5 milhões de crianças refugiadas não tiveram acesso à educação em 2016, segundo levantamento realizado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). No Brasil, não há um levantamento preciso, mas uma série de obstáculos - desde a burocracia dos papéis até as dificuldades de acolhimento - ainda prejudicam a universalização do ensino nesta população. Mesmo assim, algumas iniciativas têm conseguido bons resultados.

No mundo, a porcentagem de jovens refugiados em idade escolar matriculados no ensino médio é de apenas 23%, comparado com os 84% globais. Em países subdesenvolvidos, apenas 9% dos refugiados têm a oportunidade de frequentar a escola nessa etapa da educação básica. 

O regime legal específico que protege os direitos dos refugiados é conhecido como “proteção internacional dos refugiados”, firmado pela Convenção de 1951 da ONU. O tratado garante que, uma vez que refugiados entrem no país, tenham direito a carteira de trabalho, moradia, educação, saúde, prática livre de sua religião e a não discriminação. 

Na prática, porém, a situação é um pouco mais complicada: além das dificuldades que já encontram naturalmente (como a barreira da língua, fuso horário, diferença de hábitos e discriminação), também é preciso lidar com as deficiências dos países que foram acolhidos; atualmente, um em cada três refugiados vive em nações subdesenvolvidas, o que diminui ainda mais a probabilidade de irem à escola – segundo a ACNUR, isso representa seis vezes menos chances do que outras crianças do mundo. 

Até a metade de 2016, a Turquia foi o país que acolheu o maior número de refugiados, totalizando 2,8 milhões. Em seguida estão Paquistão (1,6 milhão), Líbano (1 milhão), Irã (978 mil) e Etiópia (742 mil). 

“Os países que os acolhem, e que muitas vezes já lutam para encontrar formas de oferecer educação para suas próprias crianças, enfrentam a tarefa adicional de encontrar vagas em escolas, professores treinados e qualificados, e materiais educacionais adequados disponíveis para dezenas ou mesmo centenas de milhares de recém-chegados que, muitas vezes, não falam o idioma em que as aulas são ministradas ou que frequentemente perderam anos de ensino”, explica o levantamento da ACNUR. 

A burocracia também acaba sendo um entrave na inserção de jovens refugiados em uma nova cultura.

“A legislação é simples: entrou no país, foi reconhecido como refugiado, ele tem acesso a estes direitos. Mas na hora de matricular o filho na escola ou usar algum serviço do sistema de saúde é muito comum encontrar os ‘funcionários da burocracia’, que pedem documentos muito específicos retardando o acesso. Isso é muito comum em países que têm forte vínculo com o estado”, critica Elaini Cristina Gonzaga Silva, professora doutora da PUC e pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).

Sozinhas pelo mundo

Outro cenário corriqueiro é a chegada de crianças sozinhas. “Os refugiados, ao contrário dos migrantes, cruzam fronteiras porque estão correndo risco de vida ou sofreram violação dos direitos humanos. Então, é muito comum na Europa e nos Estados Unidos crianças chegarem desacompanhadas porque se perderam da família ou perderam familiares em combates ou conflitos”, explica Elaini. 

De acordo com dados da ACNUR, em 2015, 98.400 solicitações de refúgio foram feitas por crianças desacompanhadas em 78 países, a maioria proveniente do Afeganistão (50.300), Síria (14.800), Eritreia (7.300), Iraque (5.500) e Somália (4.100). É o maior índice registrado pela agência desde o início da coleta sistemática de dados em 2006 – e representa cerca de 5% do total de solicitações de refúgio. Já o número de solicitações de refúgio feitas por crianças desacompanhadas ou separadas quase triplicou de 2014 para 2015 (em 2014, as solicitações totalizaram 34.300, e em 2013 o número era 25.300). 

Este foi o caso dos congoleses Marie*, de 15 anos, e Pierre*, de 9 anos, que vivem na Alemanha. Os irmãos perderam os pais e dois irmãos em um conflito e se viram à deriva em um país novo, com uma língua estranha.

“No começo foi estranho, mas tive uma professora muito legal. Não sentia que estava estudando parecia que era uma conversa natural”, conta Marie. Os irmãos atualmente moram em uma pensão com outras crianças refugiadas. 

A adaptação, embora rápida, não é fácil. A Alemanha, por exemplo, conta com o auxílio dos Centros Municipais de Integração. A recomendação é que tratem “cada caso individualmente” e que as escolas municipais tenham salas destinadas para crianças refugiadas antes de integrá-las.

“Temos muitos alunos que vêm da Síria, do Afeganistão e do leste europeu. Os menores, com até 14 anos, passam por uma sala até sabermos para qual ano letivo podemos encaminhá-los. Já os maiores estudam em uma sala com alunos de 15 a 18 anos”, explica o porta-voz do projeto em Berlim, Max Schubert.  

Mesmo as crianças que migraram com os pais passam por dificuldades. O refugiado sírio Aref Al-Raj conta que demorou alguns meses para matricular os filhos Sally, 8 anos, e Konan, de 9 anos, em uma escola na Bélgica. 

“Passou um bom tempo até conseguirmos os documentos e duas vagas na escola. Felizmente conseguimos e agora eles já estão bastante adaptados”, diz Aref.

Realidade nacional 

No Brasil, o mecanismo do refúgio é regido pela Lei 9.474 de 1997, que estabelece o procedimento para a determinação, cessação e perda da condição de refugiado, os direitos e deveres dos solicitantes de refúgio e refugiados e as soluções duradouras para aquela população. Entre os direitos está o acesso a todos os serviços do governo, assim como qualquer outro brasileiro. 

O pedido de refúgio, porém, precisa ser feito em território nacional ou na fronteira. O refugiado deve preencher um termo de solicitação em qualquer posto da Polícia Federal e informar um endereço, número de telefone e email onde pode ser encontrado. Todas as solicitações são decididas pelo Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), órgão vinculado ao Ministério da Justiça. A PF irá gerar um protocolo provisório válido por um ano (ou até a aprovação do Conare). Este documento serve como prova da situação migratória e impede a devolução do refugiado ao seu país de origem.

“Muitas escolas não sabem que o documento emitido pela Polícia Federal é  válido e o rejeitam. Alegam que não tem histórico escolar, por exemplo, e isso vira um obstáculo. Por isso são necessárias as intervenções”, diz Vivianne Reis, diretora da ONG IKMR. 

O trabalho da instituição é conscientizar crianças e familiares sobre os direitos dos pequenos no país; atualmente participam do programa 450 crianças de 0 a 11 anos provenientes de 13 países na sede de São Paulo. 

Um dos principais trabalhos da ONG é a ressignificação de lembranças. “Elas são muito fortes, mas são pessoas marcadas por traumas e tragédias. Muitas deles têm medo de fogos de artifício, por exemplo, porque presenciaram bombardeios”, explica.

Quando a criança se adapta ao sistema escolar, ela acaba se integrando também à comunidade. O movimento natural então é que ela acabe integrando o resto da família.  

“Os pais que até então eram vistos como heróis e referências, se encontram em um lugar onde não sabem nada, não entendem nada. Elas muitas vezes se tornam tradutoras da família e isso é algo ruim. Como as coisas precisam ser ditas de forma clara para que ela entenda e consiga traduzir, a criança acaba recebendo informações que ela não deveria ter conhecimento pela idade”, conclui Reis. 

Desafios rumo à inclusão

Com trabalho voltado para a inclusão de refugiados, a professora e pesquisadora Giuliana Redin está à frente do Migraidh (Grupo de Ensino, Pesquisa e Extensão Direitos Humanos e Mobilidade Humana Internacional) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Em entrevista à Gazeta do Povo, a docente fala sobre as barreiras para inclusão de estudantes refugiados e os caminhos para a escola se tornar mais acessível. 

Com o aumento no número de crianças e jovens refugiados no Brasil, qual o papel da escola e da universidade para a inserção deles no contexto da sociedade brasileira? 

A migração forçada implica em situações adversas, sobretudo dada a necessidade de recomeço em um novo país e as dificuldades que se apresentam a partir dessa condição migratória. 

O acesso à educação é um dos mais fundamentais instrumentos para a integração local da população refugiada porque possibilita a igualdade de oportunidades e a inserção social nos vários aspectos da vida. 

O refugiado enfrenta situações de múltiplas vulnerabilidades decorrentes da migração forçada, como barreiras linguísticas, culturais, econômicas, documentais, que são também psicossociais e de exclusão. 

As universidades e as escolas têm papel fundamental na promoção de políticas públicas inclusivas, sendo que no caso da população refugiada, precisam reconhecer instrumentos de facilitação de acesso e ações de permanência que dialoguem com a realidade específica da pessoa que migra forçosamente.  

Quais as maiores dificuldades enfrentadas por estudantes refugiados? 

A barreira linguística é uma das maiores dificuldades. Ela não pode representar impeditivo do acesso à educação e às próprias instituições de ensino, portanto, nesse aspecto, universidades e escolas, têm responsabilidade de promover acessibilidade linguística e desenvolver instrumentos para minimizá-la. 

A acessibilidade linguística é fundamental para a inserção social e, no que diz respeito às instituições de ensino, significa também a possibilidade de permanência dos estudantes. Essa acessibilidade deve considerar as especificidades culturais, linguísticas e os aspectos psicossociais que envolvem a particular situação do refugiado. 

Até onde a escola está preparada para receber estudantes refugiados? Quais as dificuldades com esse novo perfil de aluno? 

A escola e a universidade precisam dialogar com essa realidade e oferecer respostas inclusivas, de acessibilidade e de respeito à diversidade cultural, linguística e compreender o que envolve a situação de refúgio para a criança, para o jovem, para o adulto. 

Pode-se citar a complexidade e o desafio, por exemplo, que envolve a alfabetização de uma criança migrante ou refugiada, quando a sua língua materna não é o português ou do retorno à sala de aula em outro país e cultura de uma criança que teve o estudo interrompido por conta da situação de refúgio. 

Como as escolas podem se preparar melhor para acolher estudantes refugiados? Qual o papel da gestão escolar para esse processo? 

A educação voltada à população refugiada requer a sensibilização sobre o próprio tema do refúgio. É um tema que precisa estar inserido nos debates das Conferências de Educação e nas formações continuadas das equipes multidisciplinares. No acolhimento de um estudante refugiado, a barreira linguística e cultural é um dos principais aspectos a serem observados pela equipe que atua nas escolas, que precisa estar preparada para práticas pedagógicas que permitam a acessibilidade e a inserção social. 

A UFSM conta com ações voltadas para populações refugiadas. Como são essas iniciativas? Até onde elas podem ser modelos para as escolas? 

Desenvolvemos o Programa de Acesso à Educação Superior e Técnica para Refugiados e Imigrantes em Situação de Vulnerabilidade (Resolução 41/2016), com a criação de vagas suplementares específicas para atender essa população. 

Trata-se de uma política de ação afirmativa que viabiliza o acesso de refugiados e migrantes em situação de vulnerabilidade em condições diferenciadas, observada a facilitação documental para a comprovação de conclusão de ensino médio, com dispensa de provas para o ingresso ou qualquer comprovação ou exigência de domínio do português, o que seria a principal barreira para o ingresso. 

Aliás, um relatório de 2017 da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) mostrou que é ainda mais crítica a situação do acesso ao ensino superior por parte de refugiados: apenas 1% consegue acessar. Ações como a criação de bolsas específicas para estudantes refugiados e migrantes participarem de projetos de pesquisa, ensino e extensão de docentes nas mais variadas áreas da formação, bem como de monitoria para estudantes contribuírem para a facilitação e acessibilidade linguística já foram estabelecidas agora em 2018. 

Além dessa política, a acessibilidade linguística é um dos temas mais sensíveis, que está envolvendo o trabalho de órgãos da universidade, juntamente com profissionais, professores e pesquisadores. 

Na UFSM, também existe um órgão específico para as ações ligadas à permanência de estudantes, que é a Coordenadoria de Ações Educacionais (CAED), que possui comissões de trabalho onde participam também estudantes refugiados e imigrantes.

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