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Novos critérios

Parâmetros vagos e ideológicos de alfabetização do MEC preocupam especialistas

alfabetização
MEC definiu que estudante alfabetizado é aquele que atinge 743 pontos em língua portuguesa na escala do Saeb. (Foto: Arte/Gazeta do Povo com Midjourney)

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O Ministério da Educação (MEC) está tratando a alfabetização como sua bandeira principal e lançou há poucas semanas o Compromisso Nacional Criança Alfabetizada, sua política para subsidiar ações em estados e municípios relacionadas ao tema. O objetivo do MEC é garantir que todas crianças brasileiras estejam alfabetizadas ao fim do 2º ano do ensino fundamental, de acordo com alguns novos parâmetros estabelecidos no fim de maio para definir um estudante alfabetizado.

Especialistas em alfabetização consultados pela Gazeta do Povo consideram, no entanto, que os parâmetros definidos são vagos e ideológicos, e temem que a medição pouco objetiva da capacidade de leitura e escrita dos estudantes retrate mal a realidade e favoreça a perpetuação do analfabetismo funcional no Brasil.

Os novos critérios foram elaborados no âmbito da pesquisa Alfabetiza Brasil, que colheu opiniões de um painel com centenas de professores de todo o país. O MEC definiu que um estudante alfabetizado é aquele que atinge 743 pontos em língua portuguesa na escala de proficiência do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb).

"Essa escala, na verdade, avalia língua portuguesa, não avalia alfabetização", observa Renan Sargiani, doutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela USP. Para ele, falta objetividade nos critérios propostos pelo MEC.

Segundo o ministério, os estudantes que atingem a pontuação de 743 "leem pequenos textos, formados por períodos curtos e localizam informações na superfície textual", produzem "inferências básicas com base na articulação entre texto verbal e não verbal, como em tirinhas e histórias em quadrinhos" e "escrevem, ainda, com desvios ortográficos, textos que circulam na vida cotidiana para fins de uma comunicação simples: convidar, lembrar algo, por exemplo".

"Esses critérios são instáveis – por exemplo: compreender quadrinhos… Não é claro, não é objetivo. Dificilmente isso vai estimar, vai dar certeza de que ali temos um criança alfabetizada. Os países de melhor desempenho no mundo inteiro usam critérios como a quantidade de palavras lidas por minuto, velocidade de leitura… Esses critérios seriam mais objetivos, mas não estão colocados como critérios para decidir o que é um leitor e o que é um não leitor no Brasil", afirma Sargiani.

PNA de Bolsonaro, que tinha parâmetros objetivos, foi revogada

João Batista Oliveira, presidente do Instituto Alfa e Beto e doutor em Educação pela Florida State University, diz que o conceito de alfabetização empregado pelo MEC atual "não é alfabetização". "Mistura alhos com bugalhos, mistura ler com compreender… A única coisa interessante que o governo Bolsonaro fez nessa área foi um documento formal, baseado nas evidências científicas, na literatura científica e escrito por pessoas competentes, definindo muito bem o que é alfabetização. Este novo governo ignora isso, vira para uma espécie de 'assembleia geral' e pergunta: 'Assembleia geral, povo do Brasil, o que vocês acham que é alfabetização?' É um retrocesso e é um equívoco", comenta.

O documento a que Oliveira se refere é fruto da Política Nacional de Alfabetização (PNA), instituída em abril de 2019 pelo governo Bolsonaro e revogada no início da gestão Lula. Seu principal diferencial era estabelecer parâmetros objetivos cientificamente embasados para definir a alfabetização.

A PNA privilegiava a política educacional "feijão com arroz" da alfabetização, estabelecendo princípios simples e claros do que é estar alfabetizado. Enfatizava, entre outras coisas, a fluência de leitura e a ideia de consciência fonêmica, um componente fundamental da alfabetização, que consiste em ajudar a criança a entender como as palavras são formadas por sons e como esses sons se relacionam com as letras escritas.

Na visão de certas correntes da pedagogia no Brasil, expressões como essas em um documento federal são uma espécie de profanação ao cânon modernizante da educação – que, muitas vezes, acaba privilegiando princípios mais ideológicos que científicos. Uma rápida busca no Google por reportagens de veículos de esquerda sobre a PNA em 2019 apresenta um exército de especialistas com o mesmo viés condenando a imposição do "método fônico" – o que, aliás, é um equívoco de interpretação da PNA, que não falava em impor métodos.

Para Sargiani, a falta de referência à consciência fonêmica nos novos parâmetros da alfabetização é anticientífica. "Precisam olhar para o que as evidências estão mostrando. As evidências mostram que existem componentes curriculares fundamentais. Como é que você pode recomendar, hoje em dia, na alfabetização, um material que não trabalhe consciência fonológica? Não pode. Se você está usando ciência, não pode. Não é suficiente perguntar para professores quais são as práticas que eles usam. Isso é uma evidência completamente anedótica. Isso não é ciência de verdade", critica.

Oliveira destaca o mesmo problema: "Quem define essas coisas não é a 'assembleia geral'. Quem tem autoridade para definir essas coisas é especialista. Especialista é o cara que conhece a literatura. Eles fizeram consulta a pessoas que não estão alfabetizando e que não conhecem a literatura. A prova disso é o que produziram. É o processo errado e é a consulta às pessoas erradas".

À Gazeta do Povo, a secretária de Educação Básica do MEC, Katia Schweickardt, diz que a pasta estabeleceu, antes da revogação do documento de Bolsonaro, "uma análise profunda dos elementos que constituíam a antiga Política Nacional de Alfabetização".

"Para isso, dialogamos com os servidores do quadro do Ministério da Educação que faziam parte da antiga Secretaria de Alfabetização e participaram de todo o processo de implementação da Política. Também dialogamos com os especialistas e técnicos do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais – INEP. Finalmente, dialogamos com a União Nacional de Dirigentes Municipais de Educação (Undime) e com o Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Educação (Consed). Foi nesse espírito democrático, dialógico e colaborativo que construímos o consenso e a decisão de revogar a Política Nacional de Alfabetização", explica Katia.

MEC atual tem gestores que acreditam na alfabetização baseada em evidências

Sargiani destaca que, entre os atuais membros do MEC, há alguns que participaram de boas experiências de gestão de políticas de alfabetização no Brasil e que não são avessos à pauta da alfabetização baseada em evidências científicas – o governo do Ceará, por exemplo, onde trabalhou o atual ministro da Educação, Camilo Santana, não era fechado a isso. O estado tem resultados melhores que a média brasileira em alfabetização. Sargiani lamenta, contudo, que esses especialistas estejam seguindo outro tipo de cartilha no atual governo.

"Eu mesmo já trabalhei com eles. A secretária [de Educação Básica do MEC] Katia [Schweickardt], por exemplo, eu trabalhei com ela, fui nomeado por ela para construir a política municipal de alfabetização de Manaus, quando ela era secretária em Manaus. E lá construímos um entendimento muito bom. Ela é uma pessoa superesclarecida, que tem muito a agregar, como o próprio ministro [Camilo] Santana; mas precisam parar de seguir a cartilha das ideologias, e seguir o que dizem as pesquisas", afirma.

Na visão de Katia, "é equivocada e, talvez, autoritária" a ideia de que, a partir de Brasília, será instaurado "o método infalível de ensinar a ler e escrever para todas as salas de aula, escolas e redes de ensino no país". "O Compromisso Nacional Criança Alfabetizada é uma convocação para cada professora, cada escola, cada município e cada estado do Brasil se comprometa num esforço integrado pelo direito de ler e escrever de todas as nossas crianças. O papel do ministério é induzir as políticas e apoiar essa grande comunidade, numa perspectiva dialógica, democrática e emancipadora", afirma.

Segundo ela, o MEC "respeita a autonomia dos entes federados, das escolas e dos professores alfabetizadores", e reserva a eles "competência de definir quais são as melhores estratégias, procedimentos metodológicos e escolhas didáticas capazes de produzir boas experiências de aprendizagem da leitura e da escrita, que façam sentido nos diferentes territórios desse país".

Katia garante que o Brasil continuará participando do PIRLS (Progress in International Reading Literacy Study – Estudo Internacional de Progresso em Leitura), uma avaliação internacional da capacidade de leitura de estudantes de 10 anos de idade da qual o país fez parte pela primeira vez durante o governo Bolsonaro.

"O Brasil participará de todos os esforços que a comunidade internacional construir para produzir evidências que ajudem a melhorar nossas políticas educacionais. Isso inclui o PIRLS e outros instrumentos que possam dialogar com as nossas realidades e com a nossa história e trajetória de política de avaliação", diz.

Para Katia, "há uma concepção enviesada que, muitas vezes, quer reeditar uma guerra entre métodos de alfabetização que a boa ciência da educação já superou faz tempo". "Nossa visão sobre esse tema é muito simples e, ao mesmo tempo desafiadora: desejamos que todas as professoras se sintam efetivamente capazes de ensinar e que todas as crianças brasileiras tenham o direito de aprender a ler e escrever, no tempo adequado."

João Batista Oliveira diz que essa relativização significa "ignorar a ciência". "É o mesmo problema do terraplanismo. Tem uma ciência cognitiva sobre leitura, uma ciência internacional, testada em diversas culturas. Para a maioria das pessoas, isso funciona e funciona melhor do que as outras coisas. Algumas pessoas aprendem sozinhas ou aprendem por qualquer outro caminho, mas para a maioria não é assim. Se há carradas de evidência acumuladas, não fazer isso é o equivalente a malpractice. Você está violando um código de ética. É absolutamente aterrorizante você viver num país, sobretudo um país de analfabetos, em que os governos não levam isso extremamente a sério. Você tem uma coisa [a alfabetização] que é fundamental, que é a base da escolaridade; há evidências sólidas de que algo funciona para alfabetizar a maioria das crianças, inclusive as crianças mais pobres, e eles fingem que não existe: 'Vamos deixar os professores inventarem, porque isso aí é bobagem'", comenta.

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