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Verdadeiro legado: expansão das matrículas com grande participação do Estado, sem que qualidade da produção e do ensino acompanhassem o ritmo dos investimentos. |
Verdadeiro legado: expansão das matrículas com grande participação do Estado, sem que qualidade da produção e do ensino acompanhassem o ritmo dos investimentos.| Foto:

Nos últimos 15 anos, a educação foi uma das principais bandeiras dos governantes brasileiros. “Só a educação liberta um povo e lhe abre as portas de um futuro próspero”, disse a então presidente Dilma Rousseff em seu discurso de posse, em 1.º de janeiro de 2016; a alcunha de “Pátria Educadora”, dada ao país no mesmo dia, defendia que “democratizar o conhecimento” significava “universalizar o acesso a um ensino de qualidade em todos os níveis, da creche à pós-graduação”. 

O que se viu no período, porém, aponta para um legado de expansão das matrículas com grande participação do Estado – direta ou indireta, por meio de programas como Fies e Reuni – em que nem sempre a qualidade da produção e do ensino acompanharam o ritmo dos investimentos.  

O ministro da Educação mais importante do período foi Fernando Haddad, que comandou a pasta entre 2005 e 2012. Seu período no cargo, que se estendeu pela maior parte do governo Lula e metade do primeiro mandato de Dilma, só não foi mais extenso do que os de Paulo Renato de Souza, ministro durante os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) e Gustavo Capanema, que ficou mais de uma década no ministério (1934-1945) durante a ditadura de Getúlio Vargas. 

Expansão do ensino superior 

O cenário era de fartura, então os recursos gerados pelo crescimento econômico da primeira década após a virada do século foram destinados a promover a expansão do ensino superior no país. E se a universidade, inegavelmente, se tornou mais acessível, a última década também é marcada pela estagnação do ensino básico e por medidas que indicam que a quantidade foi priorizada, e não a qualidade. 

Em termos numéricos, os resultados para o ensino superior são evidentes. Em 2016, quando Dilma deixou a presidência, as instituições públicas e privadas contabilizavam mais de 8 milhões de estudantes contra 3,5 milhões em 2002, último ano do governo FHC – um aumento de 128,6%. No mesmo período, a população do país cresceu pouco mais de 20%. 

Foi a expansão mais rápida vivenciada pelo Brasil desde aquela promovida nos primeiros anos da ditadura militar, quando as matrículas quintuplicaram no intervalo entre 1960 e 1970 (passando de pouco mais de 93 mil para 563 mil estudantes), embora os números da época fossem bem mais modestos que os atuais.

Ainda que o governo petista tenha se valido de um discurso de fortalecimento do estado e sua participação na educação, foram as universidades particulares que lideraram a expansão. A tendência de crescimento da participação das instituições privadas no ensino superior foi mantida durante os períodos de Lula e Dilma no poder – expansão esta iniciada no governo FHC, que viabilizou inúmeros centros universitários sem necessariamente exigir qualidade como contrapartida. 

Hoje, cerca de 75,3% das matrículas no ensino superior estão nas universidades privadas – contra 69,2% em 2002. A continuidade do crescimento do setor privado, além da expansão natural do setor em função do aumento da renda média da população, foi facilitada também por subsídios estatais como o Prouni e o Fies, que bancaram a matrícula de estudantes de baixa renda. 

No Prouni, criado em 2004, estudantes com renda familiar per capita inferior a três salários mínimos podiam concorrer a bolsas parciais ou integrais a partir das suas notas no Enem. Já o Fies, que oferece financiamentos para estudantes, é anterior ao governo do PT, e foi idealizado em 1999. 

O Fies registrou uma explosão a partir de 2010, quando a taxa anual de juros foi reduzida, o período de carência passou a ser de dezoito meses e o período de amortização da dívida por parte do estudante se tornou o equivalente ao triplo do tempo necessário para se formar. Antes da mudança de regras ocorrida no início de dezembro, os juros do Fies estavam fixados em 6,5% ao ano, valor que vinha ficando consistentemente abaixo da inflação. 

Já a ampliação de investimentos em bolsas de estudos iniciada na época de Haddad contribuiu para qualificar os docentes tanto nas instituições públicas quanto nas privadas. Em 2006, havia 34,6 mil professores de ensino superior (11,5% do total, na época) apenas com uma graduação no currículo – no ano passado, esse número havia sido reduzido para cerca de 5,4 mil (1,4% do total). 

Em relação ao grau de formação dos professores, a proporção de mestres e doutores lecionando nas universidades brasileiras passou de 58,5% para 78,2% nos últimos dez anos – um acréscimo de 123,8 mil educadores, em números absolutos.

Mesmo assim, a ampliação da pesquisa no país não foi acompanhada por uma maior relevância da ciência produzida no país: entre 2002 e 2016, o número de artigos científicos elaborados por brasileiros quadruplicou, mas a quantidade de citações por paper diminuiu. No período, considerando as 50 nações com maior volume de pesquisa, o Brasil caiu do 30.º para o 37.º lugar em citações, segundo dados da Scimago, publicação que compila dados de produção científica. 

Ao mesmo tempo, o total de artigos saltou de 17.834 para 68.908. O número de citações importa pois revela quantas vezes um determinado estudo tem sido usado como referência para novas pesquisas ao redor do mundo: quanto mais citado é determinado trabalho, mais “relevante” ele tem sido para a sua área. 

Deficiências no ensino básico 

O foco dado ao ensino superior no período também não encontrou um mesmo volume de investimentos na educação básica, que apresentou avanços tímidos. A taxa de analfabetismo continuou reduzindo gradualmente durante o governo Lula, mas em um ritmo naturalmente menor do que na década anterior: o índice de analfabetos acima de 15 anos passou de 17,2% para 11,8% nos dez anos antes da posse de Lula. Ao final do governo petista, o número havia caído para 8,6%. 

Embora o número de vagas no ensino básico tenha sido ampliado, o país seguiu ocupando as últimas posições nos rankings internacionais de educação, sem jamais ensaiar uma melhora em avaliações como o Pisa (sigla em inglês para Programa Internacional de Avaliação de Estudantes). 

O desempenho dos estudantes brasileiros, que já era pífio, permaneceu praticamente estagnado. A nota de leitura dos brasileiros, por exemplo, passou de 403 pontos na prova de 2003 para 407 na prova de 2015, uma melhora inferior a 1%. 

O pequeno avanço fica ainda mais evidente quando o Brasil é comparado a outro país latino-americano que possuía uma nota parecida: o México saltou de 400 pontos para 423 no mesmo período, um avanço de 5,75%. Na avaliação mais recente, em 2015, o Brasil ocupava a 59ª posição em leitura, a 63ª em ciência e a 66ª em matemática – de um total de 72 países considerados. 

“Logo no primeiro ano, o governo Lula decidiu priorizar o ensino superior, porque priorizar o ensino médio não garante votos. Houve um uso eleitoral da educação no Brasil”, aponta o senador Cristovam Buarque (PPS-DF), que chegou a ser o primeiro ministro da Educação de Lula, mas deixou o cargo em janeiro de 2004, um ano após a posse, e se tornou um crítico do governo. 

“Temos 13 milhões de analfabetos. No entanto, nossa preocupação é com a universidade. A preocupação do governo é com o ensino superior, mas na verdade deveríamos nos preocupar com o ensino básico”, analisa. 

Para Buarque, o Brasil quer aumentar o número de alunos de universidades sem aumentar a qualidade da educação de base. “Queremos ter a mesma taxa de universitários que países da OCDE mas, nesses países, todos terminam o ensino médio, que é de qualidade”, diz. 

Endividamento 

Ao mesmo tempo em que ampliaram o acesso ao ensino superior, programas como o Prouni e o Fies contribuíram para aumentar a dependência das instituições privadas em relação ao auxílio estatal. 

Estima-se que, hoje, quase um terço das matrículas em universidades particulares seja financiada por um dos dois programas, ou ambos simultaneamente. Em alguns estados, a grande maioria do setor de ensino superior privado depende do subsídio governamental, casos do Acre (74% das matrículas sustentadas por Fies ou Prouni), Mato Grosso (67%), Amapá (58%) e Paraíba (54%). 

Por cobrar juros que com frequência ficam abaixo da inflação, o Fies acaba pesando sobre o investimento público, situação agravada pela inadimplência crescente em função da crise. No início de 2017, reportagem da Folha de S. Paulo revelou que 53% dos 526,2 mil contratos em fase de pagamentos estavam em atraso. 

O Fies é mais barato que uma universidade pública, mas o modelo instituído mantém o estado como base do funcionamento do ensino superior, mesmo em um contexto em que as universidades privadas aumentaram sua participação no mercado. De um modo ou de outro, é um sistema sustentado em grande medida por subsídios, sejam públicos ou privados. 

“Se as universidades privadas não estão pagando o que devem à União pelas dificuldades que estão tendo, essa foi uma forma de ajudá-los e, inclusive, ajudar também os alunos. Eles abriram vagas e isso ia sendo uma forma compensatória”, argumenta o senador Paulo Paim (PT-RS). 

“Calcule essas instituições com toda essa dívida. Elas vão continuar não pagando a União. Pelo menos com esse programa conseguimos fazer com que a dívida delas fosse sendo paga, em parte, abrindo vagas para estudantes pobres”, defende. 

Cultura do diploma 

A facilidade para efetuar a matrícula e, também, para abrir novos cursos no país axiliou a consolidação de instituições menores de qualidade questionável. A hierarquização de diplomas gerada por esse cenário contribuiu, ainda, para um efeito novo na sociedade brasileira quando a crise econômica começou a ser sentida: a existência de um contingente de jovens donos de um diploma superior, mas sem colocação no mercado em função da crise. 

De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), em dados divulgados em novembro, cerca de 30% dos jovens brasileiros de até 25 anos de idade estão sem emprego, faixa que inclui os recém-formados – trata-se do índice mais alto da série histórica, iniciada em 1991. Em seu nível mais baixo, em 1995, a taxa de desemprego entre os jovens brasileiros era estimada em 11,4% pela OIT. 

Apesar da expansão, o Brasil ainda enfrenta um déficit de formação em áreas estratégicas, quando comparado às nações da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).  

O investimento mais direto nas universidades federais, por meio do Reuni, também causou controvérsia. Instituído em 2007, o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais canalizou recursos para que as instituições públicas ampliassem e atualizassem sua estrutura física e equipamentos, em troca de aumentar a oferta de cursos e o total de vagas. 

Para Paulo Paim, “se não está bom com o Reuni, pior seria sem ele. Antes não tínhamos nada e agora, pelo menos, se ampliou, se qualificou”. 

O senador argumenta também que o programa foi fundamental para aumentar vagas e qualificar professores. “É inegável que com o PT houve um avanço enorme em todas as áreas”, acredita. 

Por outro lado, na visão de muitos críticos da iniciativa, o Reuni escondeu com prédios novos uma precarização prática dentro da sala de aula, com turmas maiores em alguns casos, e a abertura de cursos sem um corpo docente adequado, muitas vezes improvisando professores substitutos para poder começar as aulas a tempo e receber os valores pretendidos.  

“Além do aumento da relação professor-aluno, que contribui para a precarização do ensino, as condições em que foi realizado o processo de expansão em muitas universidades, já documentado e analisado por inúmeros pesquisadores, sinaliza para uma inequívoca precarização das condições de trabalho e estudo nas universidades”, diz Ana Paula Ribeiro de Sousa, professora da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e doutoranda em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF).  

Na UFMA, muito cursos criados no período da expansão entre 2010 e 2012 funcionaram, durante anos, em espaços improvisados, escolas públicas cedidas pelos municípios onde se situavam os polos, prédios antigos da universidade com estruturas deficientes. 

“Eles não possuíam laboratórios, bibliotecas, salas de professores, espaços administrativos adequados, ou seja, não ofereciam muito além do que salas de aula e professores. Em muitos casos nem isso. Muitos cursos iniciaram suas atividades sem quadro docente completo”, conta Ana Paula.  

Para ela, o estabelecimento de metas quantitativas ligadas ao recebimento de verbas do Reuni também contribuiu para que muitas universidades passassem a funcionar como “emissoras de certificados pós-secundários”, buscando garantir a aprovação de alunos.  

“Para elevar a relação professor-aluno nos moldes definidos pelo programa, necessariamente vai haver uma precarização e uma intensificação do trabalho do professor; elevar a taxa de conclusão de cursos de graduação para 90% vai acarretar um processo de certificação em larga escala; diminuir o tempo de conclusão média dos cursos vai promover um aligeiramento da formação”, analisa.  

Já na opinião de Denise Léda, também professora da UFMA e que pesquisou os impactos do Reuni, “a expansão das universidades públicas é algo imprescindível”. No entanto, tal expansão de cursos e vagas e matrículas não se deu com o aporte de recursos financeiros (verbas) e humanos (docentes e técnicos) em número suficiente. “A pós-graduação, que não era o foco do Reuni, cresceu significativamente em diversas instituições, agravando ainda mais o quadro de precarização”, diz. 

Além das dificuldades observadas em relação à estrutura física dos cursos, ela destaca a escassez de recursos humanos para lidar com a acelerada expansão, resumindo a atividade de muitos professores ao simples “dar aulas”: houve uma “focalização do trabalho docente sobre a atividade do ensino, com salas lotadas, reduzindo a disponibilidade dos professores para o desenvolvimento de pesquisa e extensão, além do acentuado déficit de técnicos para as atividades administrativas, que precisaram ser assumidas por docentes ou alunos bolsistas”. 

A pesquisadora aponta, ainda, que em muitos casos a aprovação da entrada das universidades no programa se deu de maneira apressada e sem a devida discussão das consequências: 

 “Se voltarmos a ter um governo que invista da mesma maneira, devemos iniciar o processo trazendo para dentro de cada universidade pública o debate democrático sobre as necessidades específicas de cada instituição e de cada estado em que tal universidade está inserida, e não como ocorreu com o Reuni, que foi o estabelecimento de um contrato de metas para cada universidade, onde ficou instituído o repasse de verbas pelo Ministério da Educação (MEC), que, por sua vez, exigiu das universidades federais a apresentação de resultados estipulados no contrato.”

Outro lado

Gazeta do Povo procurou contato com Haddad e Aloizio Mercadante, responsáveis pelo Ministério da Educação na maior parte do período analisado, para comentar os dados trazidos nesta reportagem, mas não obteve resposta até o fechamento do texto. O senador Lindbergh Farias (PT-RJ), titular da Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado, também não retornou os pedidos de entrevista.

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