Não há nenhuma novidade em dizer que a educação nacional passa por problemas. Analfabetismo, incapacidade de lidar com conceitos básicos, baixo desempenho em testes, violência escolar, problemas de infraestrutura e má gestão são apenas alguns centímetros do buraco que existe no ensino no país. Embora os recursos da educação pública tenham aumentado desde o início dos anos 2000, segundo relatório da própria OCDE (2015), não foram constatadas melhoras significativas do nosso desempenho em testes internacionais como o PISA.
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Um dos problemas que não tem despertado a devida atenção do público, e mesmo de boa parte dos gestores educacionais, está na formação dos professores do país. Infelizmente, ao olhar para a formação dos principais cursos superiores nacionais de pedagogia, é possível identificar um certo alheamento de campos de estudo cada vez mais revisados como a neurociência e a psicologia cognitiva.
Talvez uma pergunta ajude a clarear a questão: será que após 4 ou 5 anos nas faculdades brasileiras, nossos professores possuem conhecimentos básicos sobre a aprendizagem que os auxiliem a entender, por exemplo, o papel da cognição, o limite do processamento da informação ou mesmo algum treinamento efetivo que permita identificar crianças com dificuldades?
Com raras exceções que comprovam a regra, é possível dizer que a formação do educador brasileiro está longe de reconhecer a importância da psicologia cognitiva e mesmo de fundamentos da neurociência para a aprendizagem.
Autores
Se é verdade que os cursos adotam disciplinas associadas a psicologia na educação, também é verdade que boa parte dos autores estudados nestas disciplinas já morreram há quase 40 anos. Em linhas gerais, os autores que mais se destacam nestas disciplinas são três: Piaget, Vygotsky e Wallon. Vamos a cada um deles.
O médico e filósofo francês Henri Wallon foi o mais velho deles, nascendo no final do século XIX. Wallon tentou elaborar uma teoria da emoção que combinasse o darwinismo evolucionário, o materialismo dialético marxista e uma epistemologia do desenvolvimento. Para ele, nossos sentidos, relações e funções orgânicas compreendidos no ambiente poderiam ser explicados por antagonismos.
Considerando as emoções como uma das característica mais antigas da nossa formação, viveríamos em um constante conflito entre nossas estruturas cerebrais mais antigas evolutivamente (estruturas subcorticais) com as estruturas corticais mais recentes. Baseado neste movimento teórico, o médico francês irá descrever suas etapas do desenvolvimento, destacando a importância do ambiente e do constante movimento entre as pressões internas e externas para aprendizagem.
Também defensor do materialismo marxista, o segundo deles, Lev Vygotsky, faleceu ainda antes do início da segunda Guerra Mundial. Em seu trabalho, o psicólogo russo também enfatizou a importância do ambiente na aprendizagem. Ao reformular parte do trabalho desenvolvido pelo neuropsicólogo Alexander Luria, Vygotsky abordará certa descrença na rigidez de funções mentais do ser humano.
Segundo ele, como nosso sistema funcional dependia do ambiente, ainda que existissem órgãos dedicados a certas funções, eles operariam dentro de um sistema. Assim, como nosso aprendizado está diretamente ligado ao ambiente “sócio-histórico” em que estamos inseridos, só poderíamos compreender certos conceitos através de uma mediação do indivíduo com o ambiente. Por isso, Vygotsky se tornou conhecido como um dos principais autores da corrente “sócioconstrutivista”.
Por fim, temos o psicólogo educacional que talvez mais tenha influenciado o século XX, Jean Piaget. Piaget se interessou por como as crianças desenvolvem seus mecanismos de controle e percepção do início da vida até a fase adulta. Segundo ele, ao longo do desenvolvimento, as crianças se tornariam capazes de usar seus sentidos para entender regras, estabelecer relações de causa-consequência, fazer inferências lógicas e se socializarem. Seu trabalho deu nome a uma corrente chamada construtivismo que encontra em suas inúmeras interpretações um grande número de defensores.
Considerando que o último deles faleceu na década de 80 do século passado, quando a neurociência e as imagens de ressonância magnética apenas engatinhavam, parece estranho pensar que após tanto tempo, ainda os tomamos como esteio do currículo educacional. Muitos licenciados saem da faculdade com impressão de que, desde então, não houveram contribuições significativas da neurociência e da psicologia cognitiva.
Abordagens
Embora seja difícil negar que esses autores tenham colaborado com a discussão na área, é preciso alertar para riscos em suas abordagens, seja pela maneira em que foram assimiladas por parte dos seus intérpretes ou em como aterrissaram no ambiente escolar brasileiro.
Por exemplo, como bem demonstrou D. Klahr e M. Nigam em artigo publicado pela Psychological Science (2004), Piaget chega a estabelecer a seguinte sentença: “Cada vez que alguém ensina de forma prematura a uma criança algo que ela poderia ter descoberto por conta própria, a criança é privada de inventá-lo e, conseqüentemente, de compreendê-lo completamente”. Sentenças como essa levam um grande número de profissionais a acreditarem que, em nome do construtivismo, o conhecimento deveria ser construído pela criança e não transmitido pelo professor. Alguns pedagogos chegaram mesmo a declarar guerra contra o ensino instrucional. Para eles, a melhor forma de uma criança aprender ocorreria através de situações-problema, onde o aluno identificaria por conta própria os nexos causais, para aprender certo conteúdo.
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"Combate à transmissão do conhecimento"
Em nome da “autonomia do estudante” pela “construção dos saberes”, muitos cursos de licenciatura abraçaram a missão de combater a transmissão do conhecimento, a aprendizagem por imitação e o papel de instrutor do docente que, agora, deveria ser visto mais como um “mediador” ou “facilitador”.
Alguns dados evidenciam que estas ideias não ficaram apenas no papel. Uma pesquisa realizada pela Unesco (2004) com professores identificou que apenas 16,7 % dos entrevistados acreditavam que entre as finalidades mais importantes da educação está a de “transmitir conhecimentos atualizados e relevantes”. Quanto ao objetivo de “proporcionar conhecimentos básicos”, o percentual cai para 8,9%. Já outros atributos mais vagos e abstratos, que não podem constituir as habilidades de nenhum currículo a priori como “desenvolver a criatividade e o espírito crítico” foram consideradas importantes para mais de 60,5% dos profissionais.
Boa parte da formação educacional brasileira defende que a aprendizagem é uma atividade que deve ser construída pelo aluno. Como um epistemólogo-cientista que lança hipóteses para desvendar um problema e chegar a uma resposta, esse estudante deveria aprender sem interferências incisivas do professor.
Em algumas vertentes mais radicais, como da construtivista Catherine Fosnot (1998), encontra-se até o enaltecimento do erro na aprendizagem. Para ela, o “desequilíbrio” facilita o ensino de modo que os erros não deveriam ser minimizados ou evitados. Infelizmente, tais pressupostos apresentam sérios problemas do ponto de vista cognitivo.
Estudos independentes, realizados nos últimos 20 anos têm demonstrado não só o quanto o erro desmotiva o aprendizado mas também o quanto propostas de ensino baseadas em pressupostos construtivistas têm se apresentado de forma menos eficiente do que as que usam em algum nível do caráter instrucional, desde a alfabetização, até continhas de multiplicação e resolução de problemas mais práticos. Contudo, o problema da formação do professor brasileiro não encerra aqui.
A radicalização de alguns dos pressupostos acima - que já podiam ser encontradas em Wallon, Piaget, Vigostki e demais construtivistas - como o marxismo epistemológico, o saber mediado pelo meio, e a crítica à transmissão do conhecimento, criarão um ambiente propício para ampla aceitação nos cursos de licenciatura do patrono da educação brasileira, Paulo Freire. Sem entrar no mérito do apreço do pedagogo por figuras controversas como Che Guevara, Fidel Castro, Lênin e Mao Tse-Tung, Freire estabelecerá em seus livros pressupostos difíceis de sustentar do campo de vista prático e metodológico que visem a implementação de qualquer prática educacional baseada em evidências.
Por exemplo, em seu Pedagogia da autonomia, Freire chega a dizer que “ensinar não é transferir conhecimento” ao mesmo tempo, que institui como uma obrigação do educador transmitir seus posicionamentos e valores políticos na educação. Mais uma vez, essas ideias não ficaram só no papel. Ainda de acordo com a pesquisa da Unesco (a mesma que demonstrou que menos de um quinto dos professores considerava uma das finalidades mais importantes do ensino transmitir informações atuais e relevantes) 91 % dos professores tem concordância alta ou muita alta com a ideia de que é sua função “desenvolver a consciência social e política das nova gerações”.
Enquanto a formação dos cursos de licenciatura não se convence da necessidade de transmitir informações atualizadas para o aprendizado, apenas 11% dos profissionais de licenciatura brasileiros têm conseguido identificar que mais de 10% dos seus alunos têm necessidades especiais na aprendizagem (OCDE, 2019).
Número muito menor do que países como Estados Unidos (51%), Suécia (40%), FInlândia (26%) ou mesmo de vizinhos nossos como o Chile (55%) (OCDE, 2019). A não ser que alguém comprove que os alunos destes países possuem problemas cognitivos ou de aprendizagem maiores que os nossos, cremos ser justo afirmar que é preciso rever a formação dos nossos professores.
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*Henrique Simplício é bacharel e licenciado em ciências sociais, mestre em Sociologia e doutorando em Neurociências.
*Vitor Geraldi Haase é professor titular do Departamento de Psicologia da UFMG.
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