O que acontece quando uma imagem microscópica produzida em laboratório não corresponde à tese que o pesquisador pretende provar? A resposta correta é: diante de novos fatos, o cientista deve repetir as experiências e, se necessário, revisar sua teoria. Acontece que, em milhares de diferentes situações, os pesquisadores simplesmente adulteram as imagens. É um método mais difícil de identificar do que o plágio textual, e tem efeitos especialmente danosos sobre a qualidade da produção acadêmica.
Mas como identificar fraudes em imagens? A pesquisadora holandesa Elisabeth Bik encontrou sua vocação precisamente nesse setor. Foi um longo caminho até ela descobrir que tinha jeito para detetive de imagens. Em sua graduação, ela se especializou em microbiologia e, no início dos anos 1990, estudou o bacilo da cólera que devastou a Índia e Bangladesh para sua tese de PhD pela Universidade de Utrecht, na Holanda. Em 2001, mudou-se com o marido para a Califórnia, onde vive desde então.
Foi só há cinco anos, já na casa dos 40, que Elisabeth descobriu que tem um talento incomum para localizar duplicações e inserções inadequadas. Desde então, já localizou mais de 1300 artigos com indícios de fraudes, identificados depois de mais de 5 mil horas de pesquisas – outras 700 pesquisas contêm duplicações, mas há sinais de que elas foram involuntárias, acidentais. Ex-diretora da companhia médica especializada Astarte, na Califórnia, e ex-pesquisadora do Departamento de Microbiologia e Imunologia da Universidade Stanford, ela recentemente se tornou uma consultora independente.
Assumiu então, em tempo integral, a tarefa que de no início era um hobby, e agora fez dela uma celebridade respeitada e temida, a de especialista em investigar casos de manipulação em imagens de pesquisas em microbiologia. E ela o faz de forma artesanal, observando artigos atentamente, por horas. Quando localiza um primeiro sinal de manipulação em alguma imagem, mergulha no paper em busca de outros indícios.
Fotos manipuladas
“Comecei a buscar fraudes em 2014”, ela conta, em entrevista à Gazeta do Povo. “Primeiro foquei em encontrar plágios em artigos de revisão. Um dia, por acidente, encontrei, na mesma tese de PhD, várias imagens rotacionadas ou espelhadas, representando diferentes experimentos. Foi quando percebi que estava acontecendo algo muito mais danoso para a ciência do que o simples plágio. Comecei então a procurar por imagens clonadas, esticadas, duplicadas ou que envolvem rotação e espalhamento”.
Rapidamente, a pesquisadora identificou dois tipos mais comuns de manipulação em artigos científicos. “O primeiro tipo é a reutilização de imagens de linhas em algumas proteínas. Elas deveriam ter a mesma intensidade, então são parecidas entre si. Ainda assim, são únicas, e você pode, com frequência, encontrar duplicatas forjadas”, ela explica. “O outro tipo é a junção de duas fotos microscópicas”.
Além do meio acadêmico, o talento da pesquisadora já provocou constrangimento em outros setores, como a imprensa. A centenária revista National Geographic, por exemplo, foi alvo da investigação de Bik, que identificou manipulações em imagens de fotojornalistas mundialmente respeitados, como Beth Moon e Steve McCurry. As fotos continham edições e duplicações visando aumentar seu impacto e eliminar elementos redundantes. As fotorreportagens foram retiradas do site da revista.
China e Índia
As avaliações de Elisabeth Bik já provocaram dezenas de retratações da parte dos pesquisadores e, principalmente, das revistas que aceitaram os estudos. Ainda assim, um estudo preliminar da pesquisadora aponta que apenas um terço das revistas com artigos denunciados forneceu algum tipo de resposta. Graças ao trabalho da microbióloga é que a companhia farmacêutica americana Pfizer, por exemplo, está investigando sete trabalhos de sua ex-pesquisadora Min-Jean Yin.
Elisabeth Bik mantém o procedimento que criou já cinco anos: envia relatórios para as publicações (raramente para os autores) e depois insiste em receber algum tipo de retorno. Além disso, no site aberto para revisões entre pares PubPeer, em seu blog e nas redes sociais, em especial o Twitter, compartilha suas suspeitas e pede que os seguidores ajudem a identificar casos semelhantes.
Existe algum país em que esse tipo de manipulação é mais comum? Elisabeth realizou dois estudos complementares só para responder a essa pergunta. “Analisamos 400 papers com duplicações inapropriadas, encontradas em 10 mil artigos, do mesmo jornal”, ela explica.
“Comparamos a origem e descobrimos que artigos produzidos na China e na Índia têm maior chance de apresentar imagens duplicadas”. Trata-se de um problema recorrente nos dois países, diz ela. “A cultura acadêmica e os incentivos financeiros para apresentar resultados são fatores comuns a esses dois países”.
Por enquanto, a pesquisadora está focada em encontrar manipulações no mesmo artigo. O próximo passo, ainda mais trabalhoso, já que ainda não existem softwares capazes de identificar manipulações em imagens geradas em laboratórios de microbiologia, é localizar casos de plágio, em que imagens manipuladas sejam utilizadas em mais de um trabalho. Quando ela alcançar esse estágio em seu trabalho, é de se imaginar que muitos outros casos de retratação virão.
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