Com as cinzas do prédio do Museu Nacional, destruído em um incêndio em setembro de 2018, ainda bem presentes na memória, um ex-reitor condenado e um déficit orçamentário da casa dos milhões de reais, alunos, professores e servidores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) vão às urnas na próxima semana para escolher os novos ocupantes da Reitoria da instituição. Mais do que lidar com a reconstrução do museu e gerir o orçamento defasado da universidade, o novo reitor deve estar no cargo quando a UFRJ completar 100 anos de existência, em 2020, e será o primeiro da instituição a ser indicado pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL).
DIÁRIO DE CLASSE: O mínimo que você precisa saber para entender o que acontece dentro de escolas e universidades
Três chapas compõem o cenário da disputa. Denise Pires de Carvalho, professora do Instituto de Biofísica Carlos Chagas, Oscar Rosa Mattos, da Escola Politécnica – a chapa apoiada pela atual diretoria, ligada ao PSOL – e Roberto Bartholo, do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia são os candidatos à reitoria. Todos foram procurados pela reportagem da Gazeta do Povo, e apenas Roberto Bartholo não respondeu aos contatos. Mesmo assim, foi possível acrescentar sua opinião sobre alguns assuntos, graças a um canal de vídeos que ele mantém na internet.
Em linhas gerais, os candidatos dizem estar cientes das dificuldades que os esperam no cargo. Tanto Denise quanto Oscar mostraram esperança na indicação do primeiro nome da lista resultante da consulta a ser feita na UFRJ por parte de Bolsonaro, mesmo que não haja uma previsão legal que obrigue o presidente a fazê-lo. Além disso, Bolsonaro já deixou claro que não quer reitores de esquerda no comando das federais. A decisão final, porém, só deve ser tomada no final do primeiro semestre.
Orçamento é problema principal
Com um déficit orçamentário na casa dos R$ 170 milhões, a UFRJ precisa encontrar novos meios de financiamento. Para o candidato Oscar da Rosa Mattos, essa tarefa envolve buscar alternativas em todas as esferas de governo. “Nós temos um projeto em cooperação com o BNDES que vai nos ajudar bastante, mas só isso não basta. Vamos tentar emendas parlamentares, buscar recursos em todos os demais ministérios, não só no MEC. E essa tarefa é uma tarefa de união de toda a UFRJ”, destaca.
Já para a professora Denise Pires de Carvalho, a solução pode estar dentro de casa. “Pretendemos redimensionar o orçamento de forma a reduzir o déficit nestes quatro anos de gestão. Para isso, nós vamos implementar imediatamente uma comissão permanente de orçamento com os melhores administradores da universidade. A UFRJ tem os melhores quadros do país, então precisamos usar esses nossos quadros e redimensionar o orçamento e planejar. O que faltou à universidade na última década foi planejamento adequado”, aponta.
Bartholo, em seu canal na internet, disse que não pode garantir ter êxito na “empreitada” de aumentar o orçamento da UFRJ. “Em contrapartida, aquilo que eu acredito e que sem buscar inovações institucionais no aporte de recursos extra orçamentários, me parece muito improvável que no futuro próximo a universidade que desejamos, a universidade que necessitamos possa caber no nosso orçamento”, afirmou.
Lava Jato da Educação
O ex-reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Carlos Antônio Levi da Conceição, e outros quatro ex-gestores da instituição foram condenados pelos crimes de peculato cometidos por meio da Fundação Universitária José Bonifácio (FUJB), entre 2007 e 2011. A decisão é da juíza Caroline Vieira Figueiredo, da 7ª. Vara Criminal da Justiça Federal, e ainda cabe recurso.
Fatos como esse reforçam ainda mais a tese dos que defendem uma Lava Jato na Educação. O termo foi citado pelo presidente Bolsonaro, quando informou por meio de postagens em uma rede social que o Ministério da Educação, em parceria com o Ministério da Justiça, a Polícia Federal, a Advocacia-Geral da União e a Controladoria-Geral da União, criara a investigação. “A máquina está sendo usada para manutenção de algo que não interessa ao Brasil”, disse o presidente em uma das postagens.
Para o professor Oscar, investigações como essa não podem atacar a autonomia das instituições de ensino superior. “Tem que se ter muito cuidado para não confundir corrupção com utilização de verbas que eventualmente possam ser usadas para gastos que necessitem um emprego e decisão muito rápida do administrador. Isso tem que ser revisto dentro de uma condição que leve em conta se existe ou não a autonomia universitária. Mas de corrupção do ponto de vista da pessoa furtar verbas da universidade, de projetos, de orçamento, eu desconheço isso. Se existe, eu desconheço”, disse.
Já a professora Denise destaca que há inúmeros processos de auditoria e controle nas universidades, e que falar de Lava Jato da Educação passa uma ideia errada para a população. “O governo deveria estar preocupado em rever a lei de importação, a taxação de material para pesquisa e para o ensino nas universidades públicas. Isso é grave, porque eu pago aqui de 3 a 4 vezes no mesmo reagente que um pesquisador do exterior. Isso é grave, e não é Lava Jato: eu pago esse preço por causa dos impostos. O governo deveria pensar numa isenção de impostos para esses casos. O governo deveria pensar no que fazer para melhorar a vida do sistema nacional de ciência e tecnologia e educação superior. É desagradável ouvir falar em Lava Jato da Educação, como se as universidades fossem antros de corrupção”, comenta.
Atuação de partidos nas universidades
Um dos poucos pontos de divergência entre os dois candidatos ouvidos pela reportagem é a presença de integrantes de partidos políticos na administração da UFRJ. O atual reitor é filiado ao PSOL, assim como parte da equipe da reitoria.
Oscar da Rosa Mattos disse não ver problema na participação de filiados políticos na administração da universidade, desde que os interesses da UFRJ sejam priorizados. “Os partidos políticos existem e desde que eles atuem dentro da universidade defendendo os interesses da universidade e não do partido, não vejo nenhum problema nisso”, afirma. Questionado se isso é possível, o professor – que garante não ser filiado a nenhum partido pol[itico - disse que sim, e que “tem que haver uma mobilização da universidade em defender seus interesses. Que os partidos dentro da universidade sejam os partidos da UFRJ, independente da filiação das pessoas.”
Já Denise Pires de Carvalho é enfática: “Partidos têm conflitos de interesses com qualquer instituição que não seja o próprio partido. Quando pensamos que partidos estão fazendo parte da gestão isso é ruim. É ruim para qualquer instituição”, declara a professora, que disse não ser e nunca ter sido filiada a nenhum partido. “Também não podemos ter um olhar de patrulhamento ideológico sobre as instituições. A universidade é de todas as ideologias. Eu fico escutando ‘que não haja influência ideológica’. Quem fala em não ter influência ideológica é porque já tem uma ideologia. A pluralidade é fundamental, mas a partidarização não é bem-vinda. Se um partido está interessado em uma instituição, ele está pensando nisso com que finalidade?”
Cobrança de mensalidades
Uma das possíveis saídas para tentar equalizar as contas seria a cobrança de mensalidades de alguns alunos das universidades federais. A proposta foi feita ainda durante a campanha pela equipe de Bolsonaro, e previa a cobrança de mensalidade para alunos de alta renda para financiar as vagas de alunos mais pobres. A medida é vista como inócua por ambos os candidatos ouvidos pela reportagem.
“Sou professora há 30 anos, não acho correto que você tenha em um mesmo ambiente alunos que pagam e alunos que não pagam. Isso gera uma série de problemas internos para o professor em sala de aula. É um problema social importante. ‘Eu mereço receber mais atenção porque eu pago e você não paga.’ É ruim criar mais de um grupo de pessoas dentro da sala, é ruim porque isso significa o início da privatização definitiva. Eu sou contra a cobrança de mensalidade porque não resolve o problema financeiro e traz problemas do dia a dia que são muito deletérios para a sociedade e para a comunidade acadêmica”, alerta Denise.
Para Oscar, o problema ainda é mais grave porque envolve uma mudança na Constituição brasileira. “A Constituição brasileira não permite cobrar no ensino stricto sensu. Não basta a simples vontade de alguém, e também não é um problema de ser contra ou a favor. Em particular, eu sou contra. Mas para que isso seja viabilizado precisaria ser feita uma alteração na Constituição”, disse.
Teto de gastos
Falando em Constituição, a emenda que limitou os gastos públicos também é alvo de críticas de ambos os candidatos. A medida afeta diretamente o desenvolvimento de pesquisas dentro do ambiente universitário.
“As áreas de educação e ciência e tecnologia não devem receber cortes, porque nós já somos subfinanciados. A UFRJ tem vários campi, ela expandiu em área e número de cursos e não pode ser penalizada por isso. Ela atende vários estudantes, são quase 70 mil e a comunidade acadêmica não pode ser penalizada por estar trabalhando. O governo deveria olhar para a comunidade acadêmica, entender que a universidade ampliou as atividades e que por isso deveria ter um orçamento melhor. E eles encurtaram o nosso orçamento. O país precisa entender que não conseguirá avançar se não houver ciência e tecnologia e educação de qualidade. E o que garante esse avanço tecnológico são as verbas públicas. Essa emenda corta, de forma visceral a possibilidade de avanço nessa área”, alerta Denise.
Oscar chama a atenção para o fato de que esse problema não é exclusivo das universidades, mas também dos órgãos que deveriam incentivar a pesquisa. “Realmente as condições de hoje de financiamento estão muito limitadas, seja diretamente para as universidades ou para projetos individuais de pesquisadores. Não é só na área da UFRJ, mas em todo o Brasil. Todo o sistema de ensino, pesquisa e desenvolvimento do Brasil passa por esse problema, isso não é exclusivo da UFRJ. Como a Academia Brasileira de Ciências já colocou, a Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência já colocou, pode causar muitos danos à pesquisa no nosso país. Para quem dedicou a sua vida a esse tipo de atividade, a pesquisa, isso é bastante complicado”, comenta.
Cotas para trans
Em 2018 um edital do programa de Mestrado de Políticas Públicas em Direitos Humanos da UFRJ chamou a atenção por conta de um dos itens: das 25 vagas, duas eram destinadas a pessoas trans. Provocada por um pastor evangélico, a Justiça Federal proferiu uma decisão em que cancelava a reserva de cotas.
A professora Denise, em um primeiro momento, disse não ter “uma visão clara de benefícios sociais” das chamadas ações afirmativas para ingresso em cursos de pós-graduação. “Se é para abrir alguma cota, que seja para aqueles oriundos de alguma universidade de menor qualidade”, afirma. Mas disse também entender a visão de quem defendeu a cota para as pessoas trans no caso específico do mestrado cujo edital foi alvo de uma decisão judicial. “São pessoas que resolvem fazer a transição durante o curso de graduação e que podem ter, por isso, sofrido não só preconceitos – o que acontece muito – mas também a questão física que pode vir por uma mudança hormonal. E isso impacta definitivamente na performance acadêmica dessas pessoas. E isso sem falar no preconceito, que é algo horroroso e que nós não podemos aceitar”, complementa.
Oscar trata o assunto de forma mais genérica, e reforça a defesa da inclusão de todos – presente também no nome da chapa: “Unidade e diversidade pela universidade pública e gratuita”. “Estamos empenhados para que a UFRJ seja uma universidade mais inclusiva, mais humana e respeite as minorias. Quando colocamos unidade com diversidade é exatamente isso: respeitar todas as diversidades, encarar todas as problemáticas e existem em diferentes pensamentos na universidade e sobretudo nesse aspecto das minorias, das pessoas com deficiências. Tudo isso precisa ser olhado com muito carinho para tornar a universidade um local mais humano, mais justo e inclusivo”, explica.
Museu Nacional
Reconstruir a estrutura do Museu Nacional é prioridade para ambos os candidatos. Mas a iniciativa pode encontrar obstáculos e muita burocracia como na lei de licitações, que regula os gastos em trabalhos como a criação e execução de projetos e obras de reforma e reconstrução.
“Vamos estar de braços dados com a direção do museu para a reconstrução e reinauguração do Museu Nacional. Mas para isso precisamos tocar as licitações. O diretor do museu consegue receber verbas da ordem de R$ 20 milhões e não consegue gastar na reconstrução porque tem que licitar. E daí ouvimos falar em Lava Jato, entendeu? Há entraves burocráticos impostos pelo próprio governo que vem falar em Lava Jato da Educação. Mas nós vamos conseguir. Já estão sendo feitos os projetos, e até mesmo esses projetos precisam ser licitados porque são maiores do que R$ 15 mil”, comenta Denise.
Oscar defende uma mudança de postura da UFRJ em relação à reconstrução do Museu Nacional e também à manutenção de outros espaços semelhantes. Uma questão em comum precisa ser equacionada: o orçamento. “Temos que ter uma verba direcionada para isso. Temos que tentar mostrar que a UFRJ tem esse acervo cultural, tem o Museu e vários outros locais que precisam de uma atenção especial para poder ter a manutenção, poder ter uma verba especial para esses locais. Temos vários locais parecidos com o Museu Nacional que são locais históricos e que precisam de uma atenção especial”, disse.
Indicação do novo reitor
A lei não obriga o Presidente da República a indicar como reitor o primeiro nome da lista tríplice. E isso já ocorreu na UFRJ, em 1998, quando a escolha da universidade foi “contrariada”. O primeiro colocado era Aloísio Teixeira, um ex-militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) que viveu na clandestinidade e chegou a ser preso e torturado em 1969. Mas o ministro Paulo Renato Souza, do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), escolheu o terceiro nome, José Henrique Vilhena de Paiva. Vilhena cumpriu o mandato até 2002 e não se apresentou para reeleição. Foram quatro anos de manifestações e protestos por parte de alunos e técnicos. O Plano Estratégico traçado pelo reitor ficou no papel, porque cada uma das mudanças que ele tentou implementar foi alvo de protestos e barrada pelo Conselho Universitário. Vilhena chegou a manter um guarda em sua porta, para garantir sua própria segurança.
Ambos os candidatos lembram desse período, e dizem torcer para que isso não aconteça novamente. “Nós gostaríamos que o primeiro das lista fosse realmente indicado pelo governo. Nós já tivemos uma experiência anterior muito ruim, que por uma vez indicou o terceiro da lista. E isso foi um problema muito grande dentro da universidade, que nós não gostaríamos de repetir. Existe uma tradição, e que assim o seja”, aponta Oscar.
Denise pensa bem parecido. “Ele [o presidente Jair Bolsonaro] está respaldado pela lei, ele pode fazer isso, ele tem esse poder. O que nós esperamos é que ele olhe com muito cuidado para o que a comunidade acadêmica quer e defina em sua escolha o que for melhor para a instituição. É uma instituição que vai fazer 100 anos, é a primeira que vai ter o processo eleitoral nesse novo governo. É a maior federal do Brasil, uma das melhores e a mais antiga. Nós temos uma tradição muito longa, mas aconteceu há alguns anos atrás do primeiro da lista não ser escolhido. Isso abriu uma crise institucional muito grave na UFRJ. E a última coisa que precisamos é de uma crise interna”, afirmou ela.
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