O estudante Mateus Magnani Cruz tem apenas 11 anos e, apesar da pouca idade, vem criando estratégias para acompanhar o novo ritmo que sua vida escolar tomou. Aluno de uma escola tradicional da rede privada de ensino de Curitiba, Mateus ingressou este ano no 6.º ano do Ensino Fundamental e percebeu, na prática, as discrepâncias que marcam os anos iniciais e finais da educação básica no Brasil.
As diferenças, segundo ele, “são assustadoras”. Vão desde o impacto causado pelo aumento na frequência das provas à adaptação aos novos professores – em número muito maior do que aquele a que ele estava acostumado até o 5º ano. “Cada professor tem uma forma de ensinar e de fazer as avaliações. E a gente tem que pegar o jeito de cada um”, desabafa o estudante.
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Apesar do cenário desafiador, Mateus ainda tem algumas vantagens em comparação com a maioria dos estudantes brasileiros de sua faixa etária. O colégio, os amigos e o ambiente estudantil são os mesmo aos quais está acostumado desde o início de sua trajetória acadêmica. Se sua vida fosse um jogo de videogame, seria possível dizer que “ele avançou de fase”, mas ainda está tentando compreender as propostas e desafios da nova etapa do game. São aulas mais extensas, mudanças na metodologia de ensino e nas práticas pedagógicas.
Acolhimento
Para os alunos da rede pública, além de tudo o que foi elencado por Mateus, há o agravante da mudança de escola. Isso porque, conforme a legislação federal, a responsabilidade da educação básica se divide entre estados e municípios. Em geral, a rede municipal de ensino no país atende às crianças da educação infantil até o 5º ano. Já a segunda etapa do ensino fundamental, que vai do 6º ao 9º ano, e o ensino médio são responsabilidades dos estados. No Paraná, há ainda o impacto do georreferenciamento, para que os estudantes da rede pública sejam alocados em escolas próximas de suas residências. De acordo com o Censo Escolar da Educação Básica de 2018, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), das 48,5 milhões de matrículas nas 181,9 mil escolas de educação básica brasileiras, 67,8% são alunos estão na rede municipal, que é a principal responsável pela oferta dos anos iniciais e finais do ensino fundamental.
A partir do 6º ano, os estudantes da rede pública precisam se adaptar ainda a uma nova realidade: outro ambiente escolar e professores completamente desconhecidos até então, assim como os novos colegas.
Para o professor Ocimar Alavarse, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), essas mudanças curricular e ambiental são os fatores que causam maior impacto na vida acadêmica da criança. “Em geral, eles trocam um único professor por, no mínimo, oito”, pondera. “Para saber (como está o desempenho) do estudante, é necessário consultar pelo menos oito professores. Isso revela uma dificuldade que a escola não consegue resolver: a questão do acolhimento aos alunos”, critica.
“Barreira psicológica”
Alavarse classifica esse momento como “uma grande barreira psicológica” e uma fase em que os estudantes precisam “organizar os estímulos”. Segundo ele, mesmo escolas mais estruturadas têm dificuldades de fazer o acompanhamento do aluno nessa hora. Tanto que, historicamente, as taxas de rendimento e de aprovação no 6º ano são as menores de todo o ensino fundamental, conforme os dados do Ministério da Educação (MEC).
Os dados mais recentes, de 2017, mostram que a taxa de aprovação no 6º ano foi de 84,5% – uma evolução considerável na comparação com 2007, quando a marca foi de 76,2%, mas ainda assim inferior a todos os demais anos do ensino fundamental.
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Mas o professor universitário chama a atenção para outro problema que mostra a gravidade do momento: a distorção “idade-série”. É esse indicador que permite avaliar o porcentual de alunos que têm mais de dois anos acima da idade recomendada para uma determinada série – considerando a idade de seis anos para ingresso no ensino fundamental. Em 2018, a taxa média no Brasil foi de 3,1% no 1º ano. No 5º ano, esse índice subiu para 18,6% e chegou a 25,8% no 6º ano. “O resultado é o aumento nas taxas de abandono escolar”, pontua.
Processo de transição
A professora Roberlayne Borges Roballo, do Departamento de Planejamento e Administração Escolar da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e ex-secretária de Educação da Prefeitura de Curitiba, destaca a necessidade de se reforçar as ações de acolhimento da criança nessa fase escolar para tornar esse processo de transição mais tranquilo e saudável para o estudante. “Principalmente no caso dos alunos da rede pública, é um trabalho que não pode se limitar à matrícula na nova escola. Essa criança precisa ser acolhida”, enfatiza.
Segundo ela, o ideal é que o contato inicial para a recepção do estudante comece entre as instituições de ensino e envolva os professores e as famílias. “São dois movimentos distintos: o da escola municipal, que deve preparar a criança para esse rito de passagem da melhor forma possível, e o do colégio estadual, que precisa estar estruturado para conhecer melhor esse estudante que chega”, explica.
Para o estudante que ingressa no 6º ano, o processo de adaptação não envolve apenas o currículo escolar, com as aulas de Matemática e Língua Portuguesa. “Com 10, 11 anos, esse aluno ainda é uma criança e ainda precisa de referências. A perda de vínculos é o que desencadeia os problemas e as dificuldades nesse momento da vida escolar”, analisa.
A psicóloga e professora da FAE nos cursos de Pedagogia, Psicologia e Filosofia, Jocimara Chiarello Rocha, trabalha há vários anos na área da educação básica e afirma que um dos fatores que faz diferença nessa fase da vida escolar é o desenvolvimento da autonomia do estudante. Segundo ela, aqueles que têm uma maior dependência do professor e de intervenções mais individualizadas são os que mais sofrem durante o processo de transição. “Nem todos estão preparados para esse novo ritmo”, comenta.
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Segundo ela, o papel da família é essencial para que a transição seja mais confortável. “Autonomia é algo que precisa ser cobrada gradativamente. Não se desenvolve a autonomia se alguém fizer tudo pela criança”, pondera.
Jocimara aponta ainda outro ponto delicado: a preparação da equipe docente. Em geral, são professores com conhecimentos técnicos de áreas específicas, mas que nem sempre estão preparados para compreender os aspectos cognitivos, psicológicos e sociais que envolvem essa fase na vida da criança. “O professor precisa compreender quais são as características dessa criança para ter uma maior compreensão de como trabalhar, de como lidar com as diferenças em sala de aula, possibilitando um melhor acolhimento”, salienta.
No caso do estudante Mateus Magnani Cruz, o apoio da família tem sido fundamental para que ele consiga encarar esse momento de forma mais tranquila e menos traumática. Sua mãe, a empresária e professora de inglês Giovana de Souza Magnani, recorreu à ajuda de uma profissional para auxiliar o menino em seus maiores desafios: a dificuldade de gerenciar tantas novidades, organizar o tempo e criar uma rotina de estudo. “Desde o ano passado eu já vinha percebendo mudanças no rendimento do Mateus. Esse ano, eu não quis ficar na tentativa e erro novamente”, afirma.
A psicóloga e coach de infantil Thais Sech Ribas, que faz o acompanhamento de Mateus, explica que esse tipo de situação é recorrente em seu consultório. Além das questões mais genéricas que envolvem as diferenças nos perfis das crianças, das instituições de ensino e das famílias, ela percebe algumas demandas bastante comuns: “Uma queixa muito frequente dos estudantes é a de não compreender o sentido de tudo aquilo que estão recebendo de conteúdo na escola”, exemplifica.
De acordo com Thais, uma das formas de agir nesse tipo de situação é buscar traçar paralelos com a realidade da criança e de como tudo aquilo será utilizado ao longo da vida. Uma prova de Matemática talvez não faça o menor sentido se os exercícios exigirem o resultado do número de azulejos na parede da cozinha de uma casa. Por outro lado, se a criança compreender que aquela conta é necessária para desenvolver suas conexões neurais e aprimorar o raciocínio lógico e que tudo aquilo será necessário em vários momentos ao longo da sua vida, a chance de assimilação desse conteúdo aumenta consideravelmente. “No caso da Matemática, eu cito como exemplo a carteira de habilitação, que só é obtida depois desse tipo de teste. E mesmo que não seja uma necessidade imediata da criança, ela vai entender que será útil em algum momento. Há muita reclamação de que os professores não trazem essas questões práticas e isso provoca uma série de conflitos e questionamentos nos pequenos”, explica.
O papel dos pais, afirma Thais, é orientar, escutar e dar exemplos. E aceitar inclusive que o filho pode ter interesses e formas particulares de conduzir sua dinâmica de estudos. “É necessário ver o que desperta o interesse da criança. Não aquilo que os pais acham importante. Se a criança gosta de futebol, uma boa solução para incentivar a leitura é procurar um livro sobre o assunto. A criança pode até não gostar de estudar, mas pode encontrar alternativas e formas mais interessantes de buscar o conhecimento”, orienta.