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Por que é tão difícil fazer doações a universidades no Brasil

Ex-alunos até gostariam de ajudar financeiramente o ensino público, mas são impedidos pela burocracia | Jonathan Campos /Gazeta do Povo
Ex-alunos até gostariam de ajudar financeiramente o ensino público, mas são impedidos pela burocracia (Foto: Jonathan Campos /Gazeta do Povo)

Comum na cultura norte-americana, a doação de dinheiro ou de equipamentos de ex-alunos às universidades em que se formaram não é tarefa simples no Brasil. Entraves legais, burocráticos e culturais tornam árduo o caminho de egressos interessados em, por meio de doações, retribuir o ensino recebido. São raras as iniciativas de sucesso. 

O maior problema está na doação de dinheiro, que esbarra, entre outras coisas, no limite de gastos públicos federais decretado pela Emenda Constitucional 241/95, que restringe a ampliação do orçamento à variação da inflação oficial. O limite vigora desde o ano passado, estende-se até 2037 e, na prática, reduz a capacidade de as universidades receberem recursos voluntários.  

Isso acontece porque a verba é incorporada pelo Tesouro Nacional e passa a integrar o orçamento da universidade, em uma rubrica específica para dinheiro arrecadado, que inclui as doações. 

“A PEC nos atingiu muito. Ela cria dificuldades no orçamento de capital e custeio, sendo que já temos crescimento vegetativo da folha de pagamento. É uma medida que ameaça seriamente o futuro da universidade”, avalia o reitor da Universidade Federal de Goiás (UFG) e ex-presidente e membro da Associação Nacional Dos Dirigentes Das Instituições Federais De Ensino Superior (Andifes), Edward Madureira.  

No caso específico da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), o engessamento imposto pela lei tem travado as doações, relata o assessor de Desenvolvimento Institucional da Reitoria da UTFPR, Vilson Ongaratto. “A doação entra como arrecadação da universidade, e a gente depende de limite orçamentário para poder executar a verba. Nós temos superávit, mas não temos limite de empenho. O dinheiro fica parado no Tesouro Nacional”.  

O procedimento de doação era mais complicado até outubro do ano passado, quando passou a vigorar uma lei (13.490/2017, de autoria do senador Wilder Morais [PP-GO]) que permite a alocação da verba a setores ou projetos específicos da universidade - até então, os recursos compunham o orçamento geral das instituições, sem garantias de aplicação direcionada.  

A nova lei, porém, traz temores de que apenas setores estratégicos para parceiros privados recebam investimentos, em detrimento de áreas menos atrativas, como Filosofia, por exemplo. “É importante que o dinheiro seja distribuído”, pondera o pró-reitor de Administração da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Marco Antonio Ribas Cavalieri.  

A luta das universidades federais, agora, é por mais avanços legislativos, que permitam contornar o limite de gastos federais e que estimulem e perenizem a prática de doações e aportes privados. A UFPR, em particular, montou, a pedido do reitor, um grupo de estudos para avaliar modelos eficientes de arrecadação de doações.  

Dificuldades culturais 

Também há dificuldades de caráter cultural, como a falta de tradição da filantropia no país. “É estranho alguém doar algo no Brasil, especialmente sem ter segundas intenções. Uma iniciativa assim é comum na América do Norte e na Europa, mas, no Brasil, ainda causa estranheza. O normal aqui é o indivíduo agir para extorquir e exaurir a Nação”, avalia o empresário Luiz Donaduzzi, que firmou parcerias com a UFPR e a UTFPR. 

Também se discute se o uso de verba privada é legítimo, já que a responsabilidade de financiar o ensino público cabe ao Estado. Cavalieri reconhece que há, na UFPR, servidores são resistentes às doações, mas vê avanços. "Estou na universidade há quase 20 anos e noto que essa resistência ideológica diminuiu bastante. Professores contratados mais recentemente, por exemplo, não pensam mais assim".  

Madureira, da Andifes, defende a coexistência das duas fontes de financiamento, com aplicações distintas. “O ponto mais importante é encarar esses recursos como complementares, e jamais como verba de manutenção. A responsabilidade da manutenção é do Governo, e não podemos abrir mão disso. O dinheiro das doações, então, é bem-vindo para projetos especiais”.  

Doação de bens é mais simples 

A doação de bens móveis, imóveis e de materiais de consumo é mais fácil. Na Universidade Federal do Paraná (UFPR), por exemplo, o interessado procura o setor da universidade que deseja contemplar com o donativo, para que se avalie o interesse em recebê-lo e a conveniência da oferta. O passo seguinte é a formalização da intenção do doador, que será analisada pela Divisão de Patrimônio e pela Pró-Reitoria de Administração. Se aceito, o bem é incorporado ao patrimônio da instituição e fica à disposição para uso.  

Um exemplo de doação vem de Toledo, a cerca de 550 quilômetros de Curitiba. O edifício que abriga a estrutura do curso de Medicina da UFPR no campus local foi construído e cedido à universidade pelo empresário Luiz Donaduzzi, do ramo farmacêutico. A obra custou em torno de R$ 22 milhões, teve parte dos recursos financiados e futuramente será doada à UFPR.  

A estrutura tem aproximadamente 9 mil metros, 5 mil dos quais já foram concluídos e inaugurados em janeiro deste ano. Por volta de 150 estudantes usam o espaço. O empresário conta que contribuiu porque identificou dificuldade da universidade em executar a obra em tempo hábil para garantir o funcionamento pleno do curso, aberto em 2014.  

Ele também relata que se moveu por um sentimento de gratidão, já que, na década de 1980, recebeu bolsa do governo brasileiro para fazer doutorado em Biotecnologia e Indústrias Alimentares na França. 

“O investimento é uma maneira de pagar uma dívida: no passado, os brasileiros, por meio de impostos, permitiram que eu estudasse fora do país”.  

Universidades se espelham em modelo americano  

A principal demanda das universidades brasileiras para alavancar doações em dinheiro é a aprovação de uma lei que regulamente fundos patrimoniais, chamados de endowment e muito comuns em universidades americanas, como Harvard, Stanford, Princeton e Yale. A demanda está contemplada no Projeto de Lei do Senado (PSL) 16/2015, de autoria da senadora Ana Amélia (PP/RS) e atualmente em trâmite na Câmara dos Deputados.  

O modelo prevê a criação de um fundo de investimentos que capta recursos juntos a pessoas físicas e jurídicas. O capital é aplicado no mercado financeiro, de forma que apenas o lucro obtido com a operação é direcionado às universidades, o que garante a preservação do patrimônio inicial e a perenidade da receita.  

O projeto estabelece que os fundos serão administrados por fundações de direito privado, que poderão apoiar, cada, até quatro instituições de ensino - os representantes dessas instituições devem ter assento permanente, com direito a voto, no conselho de administração da fundação a qual se vinculam. O dinheiro não pode ser gasto com verbas de custeio, como pagamento de salários.  

Há um projeto semelhante, de autoria da deputada federal Bruna Furlan (PSDB/SP), que também versa sobre a criação de fundos patrimoniais e que tramita no Senado Federal.  

A Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) apoia os projetos e vislumbra a possibilidade de unificação de ambos. 

“Percebemos que existem pessoas dotadas desse tipo de altruísmo e que carregam sentimento de gratidão. Precisamos de mecanismos para dar agilidade a essa vontade de doar”, diz o ex-presidente e membro da Andifes, Edward Madureira, que também é reitor da Universidade Federal de Goiás (UFG).  

Duas importantes universidades brasileiras - a Universidade de São Paulo (USP), via Escola Politécnica; e a Universidade de Brasília (UnB) - têm projetos que funcionam nos moldes dos fundos de investimentos previstos nos projetos das parlamentares. “As iniciativas são excelentes, mas ainda muito tímidas, com capacidade ainda muito baixa de arrecadação”, avalia o pró-reitor de Administração da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Marco Antonio Ribas Cavalieri.  

Modelo Amigos do HC  

Em Curitiba, um modelo de sucesso na arrecadação de recursos é a Associação dos Amigos do Hospital de Clínicas, que arrecada dinheiro a partir de diversas frentes e o aplica na compra de equipamentos, para doação ao hospital.  

Em vias de completar 32 anos, a entidade arrecadou, no ano passado, valor superior a R$ 10 milhões, por meio de ações como doações diretas, ações de renúncia fiscal, venda de produtos licenciados, eventos e uma parceria com o programa estadual Nota Paraná.  

Em posse do dinheiro, a associação se mobiliza para atender demandas estabelecidas pelo próprio hospital. “Não doamos nem um centavo. O hospital tem orçamento próprio. O que fazemos é transferir um bem, para ajudar o hospital a ter mais eficiência”, explica o presidente da Associação dos Amigos do HC, Pedro de Paula de Filho.  

O projeto é considerado um sucesso e serve como referência para o grupo de estudo montado pela UFPR para avaliar modelos viáveis de arrecadação de verba junto à comunidade.

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