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Falta a sanção do governador

Por que o Distrito Federal aprovou a educação domiciliar

Projeto sobre educação domiciliar foi aprovado em dois turnos
Projeto sobre educação domiciliar foi aprovado em dois turnos (Foto: Divulgação / Câmara Legislativa do Distrito Federal)

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O dia 1º de dezembro de 2020 já faz parte da história da educação domiciliar no Brasil. É a data em que, pela primeira vez, o parlamento de uma unidade da federação aprovou o direito das famílias de serem protagonistas na educação formal de seus filhos, educando-os em casa, sem a obrigação de frequência diária a uma escola, da mesma forma como ocorre na maior parte dos países desenvolvidos do mundo.

É bem verdade que a lei ainda precisa ser sancionada pelo governador Ibaneis Rocha, mas, diante do fato de que um dos três projetos que deram origem ao texto final partiu justamente do Poder Executivo, assinado pelo ex-secretário de educação, João Pedro Ferraz, é altamente improvável que o próprio Poder Executivo vete a proposta.

Na condição de cofundador da Associação de Famílias Educadoras do Distrito Federal (Fameduc-DF) tive a oportunidade e a missão de acompanhar a tramitação da pauta na Câmara Legislativa do Distrito Federal, desde o início. Foi uma luta longa, árdua, repleta de frustrações, obstáculos e inimigos, mas, por fim, graças a uma rede de famílias e apoiadores muito determinados, venceu o bom senso.

O caminho da proposta foi longo, passou por três comissões e duas votações em plenário, com inúmeras oportunidades de discussão, o que anulou completamente o argumento de que seria preciso debater mais. Ao fim do processo, somente alguns deputados, politicamente dependentes dos sindicatos, é que se opuseram à proposta. É sabido, contudo, que mesmo entre esses, houve quem tenha se convencido da necessidade da lei, mas optou por atender a demanda de seu eleitorado mais enérgico, ao invés da própria consciência.

Sou testemunha, portanto, de que o principal argumento que gerou o consenso possível entre parlamentares tão diferentes foi a necessidade imperiosa de tirar da clandestinidade centenas de famílias que já aderiram a essa forma de educação, mesmo sem lei, e, apesar de serem totalmente capazes de apresentar amplas evidências de aprendizagem e socialização de seus filhos, ainda assim, são perseguidas. Em alguns casos, até mesmo denunciadas às autoridades, sob a acusação absolutamente injusta de “abandono intelectual”.

Outras consequências dessa situação de ilegalidade também sensibilizaram os deputados, como o fato de que as crianças educadas por meio do homeschooling, sem a existência de lei, não têm os mesmos direitos daquelas instruídas por meio da educação escolar. Esses direitos incluem, por exemplo, o da meia-entrada em eventos culturais, a possibilidade de participar de campeonatos estudantis, frequentar aulas na rede gratuita de cursos de idiomas e, claro, o direito à certificação de conclusão dos estudos.

Entre os que se convenceram sobre a necessidade da regulamentação ao longo das discussões, estão aqueles mais envolvidos com a pauta de defesa da infância, em especial das crianças e adolescentes em estado de vulnerabilidade social. Isso porque, embora a educação domiciliar seja uma realidade consolidada e em expansão, o Poder Público brasileiro, incluindo o governo do Distrito Federal, não sabe nada sobre essas famílias e essas crianças. A conscientização sobre esse fato, e dos riscos que surgem dele, acendeu um sinal de alerta entre aqueles que, a princípio, eram contrários, por acreditarem que com essa posição estariam protegendo as crianças de maus-tratos ou crimes piores.

Os mais sensatos entres esses, contudo, perceberam que, ao se oporem à existência de uma lei, estavam, na verdade, perpetuando a omissão do Estado nessa questão, como se aquelas famílias e aquelas crianças não existissem. Uma lei criteriosa, entretanto, poderia conter os dispositivos necessários para garantir a proteção social dos estudantes, em especial dos socialmente vulneráveis, ao mesmo tempo em que daria segurança jurídica aos pais e mães zelosos, que se organizam, lutam pelo direito de educar em casa e estão dispostos a se submeter a determinadas exigências para exercer tal direito.

Outros mitos também foram derrubados ao longo dos debates, como o que provocava pânico no mercado educacional, anunciando que o homeschooling seria o fim das escolas particulares. Trata-se de uma fantasia desprovida de fundamento, já que tal catástrofe não aconteceu em nenhum lugar do mundo que tenha regulamentado essa forma de educação, pois educar em casa é sempre a opção de uma minoria.  O que costuma ocorrer, aliás, é um boom de novos empreendimentos criados para atender famílias educadoras, ou mesmo o surgimento de novos serviços que escolas particulares tradicionais podem passar a oferecer.

Para entender melhor por que essas novas oportunidades certamente vão aparecer, basta saber que, hoje, enquanto estão na clandestinidade, os pais e mães homeschoolers, mesmo aqueles com alto poder aquisitivo, tendem a manter distância das escolas, por temer uma eventual e injusta denúncia. No entanto, assegurados por uma lei, muitas dessas famílias adorariam matricular seus filhos em atividades extraclasse, como judô, balé e outras, comumente oferecidas apenas aos alunos regulares das instituições privadas e que, agora, podem ser abertas também aos optantes pelo ensino domiciliar no DF.

Algo parecido se pode dizer sobre novas oportunidades profissionais para os professores. Entre as famílias educadoras de classe média, um motivador comum para a opção de educar em casa é a falta de alternativas entre uma escola pública na qual não confiam, por variados fatores, e escolas privadas muito caras. Esses pais, em especial aqueles com três ou mais filhos, não têm condições de pagar R$ 2 mil de mensalidade para cada um, mas certamente estariam dispostos a pagar valores bem maiores do que os de mercado pela hora-aula de um bom professor que dê aulas aos seus filhos em casa.

Portanto, a mentira de que o homeschooling provocaria o desemprego dos professores não resiste nem a um minuto de reflexão sincera. Felizmente, os deputados distritais perceberam a fragilidade dessa tese.

Não poderia terminar este artigo sem registrar, publicamente, minha gratidão ao deputado distrital João Cardoso, o primeiro a abraçar a causa e apresentar um projeto de lei, a pedido das famílias brasilienses, e à deputada distrital Júlia Lucy, que não apenas é autora de outro projeto sobre o tema, como também foi a principal articuladora junto ao governo do Distrito Federal, para que o mesmo entrasse no debate, apresentando sua própria proposta de regulamentação.

Esses dois parlamentares não se importaram com o fato de que as famílias educadoras, por serem uma minoria, jamais poderiam lhes trazer um volume relevante de votos, nem dispunham de muitos recursos, como os grandes conglomerados educacionais, e nem sequer tinham condições de promover intimidadoras passeatas, como os sindicatos, dado o temor das famílias em se expor. Eles realmente se compadeceram do sofrimento de centenas de pais e crianças, tomaram para si a missão de libertá-los e não desistiram, apesar das poderosas pressões que sofreram.

Essa firmeza fez história e mudou vidas. Aos dois, muito obrigado.

*Jônatas Dias Lima é jornalista e assessor parlamentar na Câmara dos Deputados, onde atua junto à Frente Parlamentar em Defesa do Homeschooling. E-mail: jonatasdl@live.com.

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