Quase meio século separa os dias atuais da Revolução de Abril de 1974, que depôs o regime do Estado Novo em Portugal. Ainda assim, todo 25 de abril, faça chuva ou sol, milhares de portugueses de várias gerações saem às ruas segurando cravos vermelhos (símbolo da libertação da ditadura) nas mãos ou junto ao peito.
“A memória oficial da democracia portuguesa é antiditatorial. Não existe nenhum revisionismo sobre a ditadura, quer ao nível dos partidos políticos da direita ou da esquerda”, afirma António Costa Pinto, pesquisador coordenador do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa.
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Presente no discurso público, a narrativa antiditatiorial também é encontrada nos livros escolares, que tratam de forma crítica o período de repressão no país.
“Existe uma abordagem genérica da história, pois, evidentemente, os manuais não conseguem apresentar um ensino profundo e detalhado de um período tão grande. Neste sentido, os museus desempenham uma tarefa complementar à escola”, diz Luís Farinha, diretor do Museu do Aljube e ex-professor secundário.
Inaugurado em 2015 em Lisboa, na antiga prisão política destinada a opositores do regime ditatorial, o Museu do Aljube dedica-se à história e à memória do período e deve receber pouco mais de 10 mil alunos neste ano, cerca de 1/3 do seu público total. “Além das visitas guiadas e dos laboratórios de história, fazemos eventos; há algumas semanas, por exemplo, um ex-prisioneiro político prestou um testemunho para mais de 80 alunos de uma escola secundária, seguido por um pequeno debate”, conta Luís Farinha.
“Nossa experiência mostra que a história é compreensível para adolescentes e crianças, até para aquelas que estão no ensino primário. Eles compreendem tudo mesmo nascendo muito tempo após a Revolução dos Cravos. Não há nenhuma dificuldade, o que existe, às vezes, é falta de conhecimento. Mas, depois das visitas, eles ficam muito impressionados e sensibilizados, e percebem bem a diferença do que é viver em democracia e com ditadura”, completa.
Olhos sempre abertos
Com a ascensão do autoritarismo pela Europa, Portugal tem reforçado sua preocupação com a existência de locais de memória. Para 2019, por exemplo, está prevista a inauguração do Museu Nacional da Resistência e da Liberdade, localizado na Fortaleza de Peniche, no distrito de Leiria, com uma exposição ainda não definitiva.
“Cerca de 75% dos portugueses rejeitam a ditadura atualmente. Mas estamos falando de mais 40 anos de democracia e, portanto, essa memória vai ficando cada vez mais tênue”, alerta António Costa Pinto.
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Um passado presente
O período de repressão em Portugal teve início em 1926, quando foi instaurada a ditadura militar que rompeu com o ciclo da Primeira República (proclamada em 1910). Em 1933, António de Oliveira Salazar – que durante a ditadura militar já ocupava o cargo de Ministro das Finanças – implantou o Estado Novo, um regime que “caracterizou-se por ser nacionalista, corporativo, autoritário, anticomunista, anti-socialista e anti-demoliberal”, segundo afirma a historiadora portuguesa Irene Flunser Pimentel.
Embora tenha sido um período de censura e de perseguição política, a repressão e a coerção eram exercidas sobre quem rejeitava o Estado Novo. “O resto da população tinha uma vida mais ou menos normal, desde que obedecessem às lógicas do regime e aceitassem os princípios instituídos por ele”, afirma Filipa Raimundo, pesquisadora do ICS e professora do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL).
Segundo Miguel Cardina, pesquisador do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, o processo de democratização iniciado em 1974 decorreu das guerras coloniais, que estavam em curso desde 1961 e sem um fim à vista.
“São elas que provocam a derrubada do regime da ditadura por meio de um golpe de estado militar. Democratizações protagonizadas por militares são raras, mas isso só aconteceu porque não havia solução militar pras guerras coloniais. A única solução era política, ou seja, permitir a descolonização daqueles que são hoje os países africanos de língua portuguesa”, complementa António Costa Pinto.
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Acerto de contas
Foi principalmente por ter vivido uma implementação da democracia por ruptura que Portugal se esforçou para acertar contas com o seu passado ditatorial ainda na primeira fase da democratização, logo após o fim do Estado Novo. Além do processo de “memorialização” do 25 de abril, o país exilou certos membros da elite política envolvida no regime (o ex-primeiro-ministro Marcello Caetano, por exemplo, teve de refugiar-se no Brasil) e impediu que aqueles que exerceram cargos durante a ditadura fossem reeleitos, além de ter criminalizado parte da chamada “polícia política”.
“Quando há uma transição de caráter negociado como aconteceu no Brasil, na Espanha ou na Hungria, essa necessidade de negociar a transição à democracia vem com o pacto de não abrir o debate sobre o passado. Do ponto de vista discursivo, a democracia legitima-se sem ser por oposição à ditadura, evitando um discurso crítico por necessidade dessa negociação. Ou seja, o fato da elite política não se posicionar explicitamente contra a ditadura pode legitimar um discurso menos contrário a regimes ditatoriais”, explica Filipa.
Mas o esforço em recordar do passado, ao menos no que diz respeito à ditadura, não impede que os manuais escolares sejam, em parte, reprovados por historiadores e pesquisadores. “A narrativa crítica no que toca a ditadura está sim presente nos livros, mas no que toca ao colonialismo, Portugal ainda não acertou suas contas”, afirma António Costa Pinto.
Marta Araújo, pesquisadora do CES, explica que faltam nos manuais – e na sociedade em geral – uma crítica do processo ditatorial enquanto associado ao projeto colonial.
“As lutas de libertação nacional africanas não são vistas como tendo contribuído para o 25 de Abril. Dão essa ênfase de que os soldados estavam fartos da guerra, mas nunca se fala porque a guerra começou. Não falam que prisões como a Tarrafal [em Cabo Verde] torturavam não apenas opositores ao regime do continente, como também militantes da libertação nacional”, critica.
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Remédio contra o autoritarismo?
De acordo com António Costa Pinto, não existe uma vacina contra a ascensão da extrema-direita pelo mundo. “Não é que os portugueses estejam imunes a tudo isso, mas como Portugal e Espanha conheceram ditaduras de direita que duraram muitos anos têm sido difícil para partidos de extrema-direita conquistarem um espaço proeminente. Mas é uma questão de conjuntura, tanto que o Vox [partido espanhol de extrema-direita] tem ganhado força por causa da questão da Catalunha”, avalia.
Por isso, locais de memória devem ser incentivados, mas também programados com iniciativas criativas e que interessem os jovens. Os museus históricos, afirma Luís Farinha, possuem uma motivação tanto pedagógica quanto política de mostrar àqueles que não viveram o período a real dimensão do problema.
“Eles são fundamentais também para alertar para o fato de que a ditadura pode vir a acontecer sem esperarmos. Nossos bisavós também não esperavam viver aquilo e a maior parte deles entrou na ditadura sem saber muito bem o que estava acontecendo. Normalmente, estamos sempre muito distraídos quando começam a ocorrer esses tipos de situações e só damos conta quando não há mais volta”, conclui Farinha.