No Brasil, pelo menos 77 municípios preferiram oficialmente deixar de receber de graça livros didáticos em 2017 para comprar sistemas de ensino apostilados. A justifica para a prática é a percepção dessas prefeituras de que o serviço oferecido pelas empresas – além das apostilas, treinamento e acompanhamento de professores – seria melhor do que utilizar os livros didáticos oferecidos pelo Ministério da Educação (MEC). A opção, porém, é polêmica e alvo de ações civis públicas pelo gasto ser visto como desnecessário, pela falta de licitação na compra do produto em muitos casos e também pela ausência de avaliação pedagógica do conteúdo adquirido.
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“O material do PNLD [Plano Nacional do Livro Didático] vem para o município gratuitamente, pois o programa é financiado pelo MEC. Abrir mão desse material significa gastar recursos municipais que poderiam ser investidos em outras áreas da educação”, avalia Tatiana Feitosa de Britto, consultora legislativa do Senado Federal.
Em defesa, os municípios dizem que os sistemas de ensino apostilados conseguem ajudar mais na qualidade da educação do que o recebimento dos livros didáticos. “Tendo em conta o acompanhamento pedagógico que esses profissionais oferecem, tem vantagem investir um dinheiro nesse tipo de material, do que ganhar o livro”, afirma Sirlei Bernardi, coordenadora educacional da Secretaria de Educação do município paranaense de Marmeleiro.
“O livro fica na escola guardado. E as apostilas, o aluno leva para casa (...), ele escreve nela, o pai vê o que ele está fazendo, e se o professor não completa o que era direito de aprendizagem do aluno e dever do professor, a sociedade civil tem condições de cobrar”
Especialistas que criticam o uso das apostilas chamam isso de “engessamento” do professor, já que ele tem todas as suas aulas pré-preparadas e o aluno recebe um material fragmentado, sem ideia do todo. “Os professores consideram as apostilas um material razoável, não muito bom”, diz o professor Ivair Fernandes de Amorim, autor de uma pesquisa na Universidade Estadual Paulista (Unesp) com professores de municípios que utilizam apostilas. “Mas como facilita a vida do professor, em um cenário em que o tempo para preparar a aula é irrisório – alguns têm 30 aulas e duas horas para preparar, ou 40 aulas e cinco horas para preparar, eles preferem continuar com as apostilas. A grande crítica é: o problema da formação do professor e da falta de estrutura existem? Existem. Mas não é por meio de um manual que ele vai ser resolvido”, acredita.
Não é bem assim que avaliam os responsáveis pelas áreas pedagógicas das empresas. Eles lembram que as apostilas, assim como os livros, não impedem que o professor vá além do escrito. Elas apenas organizam as aulas e garantem que todos os conteúdos previstos sejam realmente ensinados. “É um mito dizer que a apostila engessa o trabalho do professor. Quando o professor tem apenas o livro didático ele geralmente se detém nos aspectos que tem mais domínio, de que gosta mais ou que a própria classe demonstra interesse. Muitas vezes, acontece de o professor usar a metade do livro e não alcançar os objetivos pedagógicos”, diz Márcia Carvalhinha, coordenadora do departamento pedagógico do sistema Objetivo.
Em números
No total, 59 municípios de São Paulo pediram a suspensão do recebimento de livros didáticos. Além deles, quatro prefeituras de Santa Catarina, três do Mato Grosso, duas em Minas Gerais, outras duas em Goiás e um município em cada um dos estados de Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro e Roraima. No Paraná, quatro municípios preferiram adquirir apostilas: Guaíra, Marmeleiro, Renascença e São Jorge d’Oeste.
Outras prefeituras preferem receber tanto os livros didáticos quanto comprar os programas vendidos pelos sistemas de ensino privados.
Como as crianças não podem levar o livro para casa, que permanece na escola, os pais também não podem acompanhar se o aluno está aprendendo o currículo proposto. “O aluno leva para casa a apostila, ele escreve nela, o pai vê o que ele está fazendo, e se o professor não completa o que era direito de aprendizagem do aluno e dever do professor, a sociedade civil tem condições de cobrar”, acrescenta Elen Goulart, Gerente Pedagógica do Sistema de Ensino Aprende Brasil, da Editora Positivo.
“Na apostila, a gente faz um recorte de tudo que é fundamental que o aluno aprenda. Tudo aquilo que está ali é importante porque é subsídio do que vem em seguida. Se o professor tem uma sala que avança mais, que ele tem condições de ampliar, nada impede que o professor amplie”, acrescenta Márcia Carvalhinha.
Questão de ideologia
Tanto defensores dos livros didáticos quanto das apostilas alegam questões ideológicas como argumento para apoiar um material ou outro. Os favoráveis aos livros didáticos dizem que as apostilas não passam por nenhum tipo de controle e, como muitas editoras têm acionistas estrangeiros, elas poderiam disseminar certos padrões ideológicos. Já os defensores das apostilas lembram que tanto no governo do PT quanto durante a ditadura militar os materiais didáticos escolhidos pelo governo eram favoráveis ao pensamento dessas autoridades, sem mostrar o contraditório.
Ação contra a prefeitura de Taubaté: suspeita de superfaturamento
Em 2008, o Ministério Público Federal impetrou uma ação civil pública contra a Prefeitura de Taubaté para questionar a compra de material didático ao preço de R$ 33 milhões. No documento, o procurador João Gilberto Gonçalves Filho apontou suspeita de superfaturamento, já que os livros didáticos correspondentes para a cidade custariam R$ 170 mil para a União, por meio do Programa Nacional do Livro Didático (PNDL). A ação acabou sendo extinta porque o Tribunal Regional Federal afirmou que o MPF não era legítimo propor a ação já que o dinheiro gasto para comprar as apostilas era do município e não da União.
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O fato é que existe uma insatisfação tanto em relação ao livro didático quanto às apostilas, que faz com que as segundas, pelo conjunto de serviços oferecidos pelas empresas, ganhem mercado. Nélio Bizzo, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), que foi perito judicial em ações contra dois municípios paulistas que contrataram os sistemas de ensino privado, teve uma péssima impressão do material que ele analisou.
“Não estou dizendo que todas as apostilas são assim [mas nas que eu avaliei] havia uma profusão de erros, de confusões”, lembra. “As apostilas são um material impresso pelo qual não se tem nenhum tipo de controle. Você pode nem saber a autoria, nem saber o ano de edição, quando isso foi feito, por quem foi feito, se isso foi copiado, se os direitos autorais foram respeitados, se é fruto de pirataria, você não tem nenhum tipo de controle sobre aquilo que aparece ali estampado”, afirma o professor .
R$ 1,23 bilhão
Foi o valor gasto pelo governo para a compra de um total de 144, 8 milhões de livros didáticos pelo PNDL 2017. Pelo PNLD de 2016, a editora Ática foi a que mais vendeu livros para a União, R$ 169,1 milhões por 20.723.417 livros.
Em resposta, as editoras dizem que jamais colocariam no mercado materiais didáticos que comprometessem o seu nome. “Temos uma equipe de autores, professores que estão em sala de aula, que usam o próprio material que produzem em nossas escolas”, diz Márcia Carvalhinha, da Objetivo. “Tem um trabalho interno nosso de avaliação, de revisão e da aprendizagem dos alunos. O que se pode dizer, acompanhando os resultados, que se uma prefeitura mantém a parceria há mais de dez anos, alguma coisa de bom deve estar acontecendo”.
Elen Goulart, da Editora Positivo, afirma que algumas pessoas veem as apostilas ainda como o antigo ‘resumão’ dos cursinhos da década de 70. “Hoje nem a editora Positivo e posso assegurar que nem os nossos concorrentes tratam mais os conteúdos como um ‘resumão’. Tudo é feito com um conjunto de especialistas e o que passamos para a prefeitura são mais de 30 anos de experiência em sala de aula”, ressalta.
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