Não é fácil ser professor de português na era da identidade de gênero, do politicamente correto e de linhas radicais de feminismo. Há quem odeie, por exemplo, o uso de femininos até então pouco usuais, como ‘presidenta’. Ou, por outro lado, defenda ‘alunxs’ ou ‘alun@s’ para não ferir suscetibilidades. Ou ainda exija a utilização de cartilhas sexistas e a declaração explícita dos dois gêneros em tudo: “brasileiros e brasileiras”, “todos e todas”, e não apenas o plural masculino. O fato é que um pouco de cultura, como sempre, eleva o nível do debate, coloca óleo nas feridas e ajuda a levar a sociedade para frente. Mas é preciso ensinar, ensinar, ensinar. E, da parte do professor, espera-se uma honestidade intelectual para não deixar-se levar por ideologias.
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Um dos temas mais polêmicos hoje no ensino da gramática é se existe ou não machismo na língua portuguesa – e se as suas regras deveriam mudar e serem ensinadas de forma diferente na escola por causa disso. Os linguistas respondem com dados, sem negar que a linguagem possa ser usada de forma depreciativa para as mulheres. “O professor tem a obrigação de não dizer bobagem, de não deixar que a ideologia política influencie a posição científica”, alerta o pesquisador Aldo Bizzocchi, do Núcleo de Apoio à Pesquisa em Etimologia da USP.
A primeira informação é que o gênero gramatical não corresponde sempre na língua portuguesa ao sexo biológico, ou à feminilidade ou à masculinidade. Não só no português, mas em outros idiomas, tanto de origem latina, anglo-saxã e oriental. Dar-se conta da diferença entre gênero e sexo reduz muito as confusões. Isso se verifica principalmente nos nomes de objetos. “Palavras como telha, parede, cadeira e alma não têm nada a ver com feminino, ainda que sejam femininas; assim como armário e traço não têm nada a ver com o masculino”, explica o professor Sirio Possenti, do departamento de linguística da Unicamp.
“No limite, isso [o exagero no politicamente correto] vai nos levar a uma sociedade de censura, de medo, de falta de circulação de ideias. Se entramos nisso, não vai ter fim. Vai ter sempre uma camada por trás que vai poder ser remexida e eu não vejo o que vamos ganhar com isso”.
Na sintaxe, o machismo seria identificado por alguns em regras como, por exemplo, no predicado masculino em frases de sujeitos compostos por palavras masculinas e femininas: “homens e mulheres são ricos”, e não ricas. Novamente, a origem da língua – o latim tinha um gênero neutro, cujas terminações eram parecidas com a do masculino – e a comparação com outros idiomas românicos mostram que nesse caso o masculino atua mais como uma espécie de genérico e não como uma suposta dominação machista. “Ver como uma forma de machismo é uma coisa muito discutível”, explica Possenti.
O professor aponta que o masculino adotado de uma forma genérica também aparece em frases sem sujeito, em que o predicado vai para o masculino, como ‘está cheio de uva na geladeira’ ou ‘navegar é preciso’. “Até agora nenhum desses argumentos autorizaria a dizer que a língua é machista”, diz.
O machismo viria, na opinião do professor da Unicamp, não da gramática, mas do uso da língua. “Há marcas de machismo na língua quando, por exemplo, percebe-se que os nomes de animais usados para designar mulheres são, em geral, negativos, derrisórios, frequentemente no campo sexual, como ‘galinha’. Digamos que há um machismo manifesto em formas linguísticas porque palavras que poderiam ser neutras, não são neutras, são positivas ou negativas conforme se refiram a homens ou mulheres”.
É claro que, no caso no caso do uso do masculino para as antigas funções neutras no latim, um argumento possível seria dizer que isso ocorreu porque os homens da antiga sociedade romana não aceitariam a terminação em ‘a’. Sérgio Rodrigues, pesquisador e autor do livro “Viva a Língua Brasileira!”, acredita que isso pode ter sido assim, mas ao mesmo tempo defende que tentar mudar a gramática seria focar errado a questão. “Todo esse movimento acaba tirando o foco da luta real contra discriminação racial, por igualdade de gênero, de salário, contra a violência doméstica”, afirma.
“A luta pela igualdade, a meu ver legítima, nesse caso leva a pensar que há um erro de análise exemplificado pelos ‘alunos’ da escola com x ou @. Porque esse ‘alunos’ é um genérico, não um masculino, isso não faz muito sentido.”
Presidenta
Já há casos de palavras que incomodam alguns, mas que existem, como ‘presidenta’. O termo é registrado desde o século XIX. Gosto é gosto e não faltam aqueles que considerem ‘presidenta’ uma palavra mal construída, porque outras com a mesma origem latina não fazem feminino em ‘a’, como ‘gerenta’, ‘clienta’, ‘estudanta’, ou seja, para eles não seria um bom português, como ‘presidento’ também não seria. “Críticas à parte, não se pode dizer que está errada”, diz o pesquisador Aldo Bizzocchi.
Agora, como ‘presidenta’ passou a ser utilizado ao invés de ‘a presidente’ com mais frequência após a posse de Dilma Rousseff, em um cenário de luta contra o machismo, não se pode negar o espírito por trás do uso do termo. “Decidir chamar de presidente ou de presidenta é simultaneamente uma ação gramatical e uma ação política, algo interessante do ponto de vista linguístico”, afirma Possenti.
Ao comentar a ‘presidenta’, Sérgio Rodrigues lembra a celeuma ao redor da palavra ‘poeta’. Historicamente ‘poetas’ eram os homens e, as mulheres, ‘poetisas’. Imbuídas de inspiração feminista, elas exigiriam serem chamadas de ‘poetas’ e hoje tende-se a considerar a palavra com dois gêneros. “O caso da palavra poeta é interessante, ela faz o caminho inverso, oposto ao que se tentou fazer com presidente/presidenta, porque o mesmo impulso feminista levou a duas direções bem diferentes”, aponta.
Alunxs, alun@s, alunes
A preferência por trocar as letras ‘o’ e ‘a’ em palavras como ‘alunos’ por ‘x’ ou ‘@’, no entanto, é bem difícil de ser justificada do ponto de vista linguístico. A intenção seria boa – defender as mulheres de terem sido ‘silenciadas’ no plural masculino – mas desconhece que, nesse caso, mais uma vez, o plural masculino não tem função de masculinidade. “A luta pela igualdade, a meu ver legítima, nesse caso leva a pensar que há um erro de análise exemplificado pelos ‘alunos’ da escola com x ou @. Porque esse ‘alunos’ é um genérico, não um masculino, isso não faz muito sentido”, diz Possenti. Além disso, tendo em conta que a língua primeiro é falada e depois escrita, o professor ressalta como outro argumento contrário a esse tipo de neologismo a dificuldade de ler termos escritos dessa forma.
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Cartilhas sexistas e o politicamente correto
Outra tentativa questionável de mudança na língua seria obrigar sempre a menção dos dois sexos, “brasileiros e brasileiras”, “companheiros e companheiras”, “amigos e amigas”, “filhos e filhas”, como sugerem as autonomeadas “cartilhas sexistas”. Esses documentos sugerem também que sejam retirados todos os termos com “inspiração machista”: não se deveria usar, por exemplo, “membros”, mas “integrantes ou componentes”; nem “pelos seguintes representantes” e sim “pela seguinte representação” e assim por diante.
O perigo desse tipo de abordagem, de acordo com os linguistas, é o de colocar em risco a liberdade de expressão. “Isso cria uma sociedade de censura e acaba enchendo a língua de entulho, de pedidos de desculpas. No limite, isso vai nos levar a uma sociedade de medo, de falta de circulação de ideias. Se entramos nisso, não vai ter fim. Vai ter sempre uma camada por trás que vai poder ser remexida e eu não vejo o que vamos ganhar com isso”, alerta Sérgio Rodrigues.
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