• Carregando...
 |
| Foto:

Professores debatem, constantemente, as melhores maneiras de ajudar seus alunos a tornarem-se “cidadãos críticos”. Não se trata de mero chavão, lugar comum dos discursos educacionais, mas sim de um dos pilares do atual Plano Nacional de Educação estabelecido pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. O documento, cuja versão mais recente data de 1996, insiste no desenvolvimento do “pensamento crítico” e da “autonomia intelectual” dos estudantes de todo o país. Mas afinal, o que isso de fato significa em nossos dias? 

Leia também: Em defesa das Ciências Humanas

No senso comum, compreende-se o aluno crítico como aquele que “questiona”, que não aceita tudo aquilo que lhe dizem, e a “autonomia intelectual” seria a capacidade de julgar, individualmente, a veracidade e a qualidade das informações que recebemos diariamente. São habilidades especialmente relevantes nos tempos atuais, quando somos cercados por informações das mais diversas fontes a uma velocidade que nunca antes foi possível. Não à toa o Plano Nacional de Educação deseja que os alunos do país sejam “leitores críticos” das “múltiplas linguagens midiáticas”, formando cidadãos capazes de não serem facilmente enganados e tomarem suas próprias decisões a partir de seu conhecimento intelectual.  

A dificuldade desse discurso encontra-se, entretanto, no fato de que a crítica tornou-se hoje em dia um dos maiores motores da indústria cultural, especialmente na internet: vende-se a ideia de que toda informação tem a intenção de nos enganar para, assim, entregar ao consumidor uma informação nova que deveria lhe servir de verdade ou de guia. São tempos daquilo que convencionou-se chamar de “pós-verdade”, ou seja, informações ou interpretações pouco convencionais, carentes de embasamento, que contrariam as fontes mais tradicionais ou estabelecidas. Sob o argumento de que “devemos duvidar de tudo”, passa-se a questionar as fontes que antes eram tidas como confiáveis e substituí-las por informações de origem desconhecida, interpretações canhestras e uma enorme quantidade de material anônimo que propaga rapidamente com auxílio da tecnologia e das redes sociais. Se por um lado o questionamento das fontes tradicionais tem um importante valor em qualquer sociedade democrática, por outro abre espaço para os oportunistas, para as correntes com afirmações mentirosas e para as teorias de conspiração que incitam medo e desinformação.  

O professor, nesse ambiente, passa a ter então um desafio duplo: por um lado, deve formar cidadãos capazes de trafegar nesse terreno perigoso e caótico da “pós-verdade”; por outro, precisa lidar com o fato de que sua orientação aos alunos também se encontra sobre suspeita, sendo amplamente questionada por uma geração que chega à escola tendo aprendido a duvidar de tudo e sem conhecer a origem do conhecimento docente.  

Tradição do pensamento 

Quando um professor expõe em sala de aula um conteúdo de sua disciplina, inclui os seus alunos na visão “acadêmica” a respeito de um determinado assunto. Isso significa inserir os alunos dentro de um debate que inclui grandes especialistas, métodos verificáveis, critérios para determinar a aceitabilidade de uma teoria e, mais importante, uma “história” das abordagens possíveis a respeito desse tema. Para a filósofa Hannah Arendt, uma das principais pensadoras do papel da educação no século 20, cabe à escola justamente a inserção do aluno dentro de uma “tradição” do pensamento, de um debate maior e mais antigo do que o próprio aluno, e que carrega dentro de si todas as dúvidas, questionamentos e controvérsias que se somaram ao longo da história. 

Leia também: O muro da educação: militantes de jaleco travestidos de professores

Segundo ela, qualquer pensamento novo ou abordagem original precisa, primeiro, partir dessa tradição: isso garante que estejamos falando uma espécie de “mesma língua”, partindo dos mesmos princípios e garantindo uma coerência nos métodos. Na prática isso significa que para criticar algo tradicionalmente estabelecido em nossa sociedade – a medicina, a ciência, a biologia etc. – é preciso conhecer seus métodos, seus critérios e sua história. Só a partir de então conseguimos ver suas limitações e, assim, aperfeiçoá-las. 

A “pós-verdade”, no entanto, ignora por completo a tradição – na verdade, quase sempre desconhece inteiramente os métodos que a compõe. Opta por conclusões simples, desatreladas de uma “história”, que alcançam conclusões impossíveis de serem comprovadas ou facilmente refutáveis por qualquer método científico. 

Por isso crianças e adolescentes em idade escolar são tão sujeitos a elas: por ainda desconhecerem a tradição e os métodos do pensamento acadêmico, acabam preferindo as conclusões que encontram, soltas e sem comprovação, na internet. Essas informações de origem duvidosa ou desconhecida são especialmente poderosas quando criam uma sensação de “individualização”, quando acreditamos fazer parte de um seleto grupo que é capaz de ver a “verdade” enquanto todos os outros estão “cegos” – o caso, a cegueira se daria pela aceitação da tradição, mesmo que amplamente testada ou confirmada. 

Por conta disso, não são raras as vezes em que vemos alunos duvidando de seus professores, seja negando a existência de fatos históricos como a ditadura militar brasileira, seja negando fatos científicos como o formato da Terra ou a ação dos medicamentos sobre as doenças. Acreditam estar sendo críticos, duvidando de todas as fontes de conhecimento e das figuras de poder, armados das informações que coletaram no livre ambiente da internet. Certamente a situação configura um grande desafio para os professores e para o próprio Plano Nacional de Educação, mas também cria uma enorme possibilidade para que o professor cumpra seu papel: o de mostrar os métodos de sua disciplina e não apenas o conteúdo. 

Quando vê um conteúdo num livro didático, o aluno não tem qualquer razão para acreditar que se trata de uma informação melhor ou mais confiável do que aquela que recebeu de seu youtuber favorito, da corrente em seu aplicativo de mensagens ou nas redes sociais. Falta parâmetro para julgar a pertinência, a relevância e a credibilidade de quaisquer fontes, de modo que a complexidade e a autoridade da escola a tornam um alvo muito fácil para a incredulidade. Por sorte, o papel da escola não é apenas apresentar os conteúdos, nem como se fossem verdades absolutas, nem como se tivessem o mesmo valor dos conteúdos de fontes duvidosas. O que cabe à escola é justamente mostrar qual é o processo da construção de um conhecimento, o que faz dele confiável e como os especialistas chegam às suas conclusões. Trata-se de uma inserção na tradição da metodologia, não do conteúdo puro como se ele não passasse de mais uma opinião banal. 

Leia também: Existe algo tóxico no mundo da pós-graduação. Mestres e doutores que se cuidem

Trajeto confiável 

Dada a carga elevada de conteúdos e a notória falta de estrutura que assola a educação brasileira, é comum que professores tornem-se meros reprodutores de verdades estabelecidas, reafirmando o material didático e, em seguida, cobrando a capacidade do aluno de se lembrar dele. Nessas circunstâncias a escola falha miseravelmente em sua tarefa autoproclamada de criar “cidadãos críticos”, uma vez que o único motivo para o aluno acreditar naquilo que aprende seria uma “hierarquia”, um poder que se exerce inteiramente de cima para baixo, tanto do professor quanto do material didático que adquire uma posição “canônica”. 

Ao invés disso, deveria ser função do professor demonstrar justamente os métodos que tornam esse conteúdo confiável: as bases matemáticas das ciências, os cálculos simples que confirmam o formato da Terra, o processo de investigação dos historiadores, os critérios para se refutar teorias científicas etc. É o trajeto confiável que garante a crença no ponto de chegada, não o contrário. Um aluno crítico, portanto, não duvida de uma informação em si, mas sim da maneira como essa informação foi construída. 

Não se trata de acreditar no professor apenas porque ele é dono de um cargo de poder, de um diploma, mas sim porque ele é capaz de demonstrar os caminhos que forjam um conhecimento. O que importa não é apontar o conceito que aparece no livro didático, mas sim explicar como os conceitos vão parar ali – qual é o longo trajeto, de séculos de duração, que fez com que aquele conteúdo, dentre tantos outros, fosse impresso naquela folha de papel. É esse desvelamento da tradição que Hannah Arendt entrega aos educadores para que tenhamos alunos capazes de conversar com a história sem recair cegamente em qualquer possibilidade de um totalitarismo. 

Restaurar a confiança da sociedade nos professores – e também nos especialistas, jornalistas, acadêmicos – não pode ser uma questão de autoridade simplesmente porque não se trata de uma saída funcional. Ao invés disso, essa confiança deve ser uma consequência da compreensão dos métodos desses profissionais e da falta de legitimidade das informações que não possuem método algum, que não possuem trajetória, que surgem “de repente” para encantar e iludir os incautos. Numa sociedade em que é cada vez mais difícil saber em quem devemos acreditar dado o excesso de informações, encontrar meios para construir alguma credibilidade constitui uma questão urgente para pais, professores e para toda mídia em geral. 

Nem toda crítica em sala de aula é válida: muitas vezes os alunos questionam graças a um total desconhecimento dos conteúdos, baseados em falsas informações e mentiras oportunistas. Mas toda crítica em sala de aula é uma oportunidade de o professor deixar de se esconder atrás do conteúdo e explicitar aos seus alunos os caminhos para a construção desse conteúdo. 

A “pós-verdade” e as mentiras que rondam a internet não estão destruindo a educação – estão, na verdade, forçando os professores a mostrarem as engrenagens e a estrutura de suas disciplinas. Mais do que nunca, o professor tem um papel essencial na formação e no direcionamento dos jovens cidadãos – desde que esteja preparado, sem decoreba, para mostrar como sua disciplina de fato funciona.

*Danilo Silvestre é professor de Filosofia e cursa Mestrado em Filosofia, Psicologia e Linguagem na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]