O Brasil é um dos países que mais gasta com o ensino superior, na comparação com os investimentos feitos no ensino básico, segundo dados da OCDE, principal fonte internacional de dados sobre a educação.
Uma solução debatida – e que ganha força em tempos de crise econômica – é a cobrança de mensalidades em universidades públicas. A ideia é baseada no descompasso na distribuição de renda dos alunos de instituições públicas: a maior parte deles é integrante de famílias de renda mais alta e completou o ensino básico em escolas particulares.
Remédio amargo
De acordo com reportagem publicada pelo Estado de S. Paulo, para integrantes da equipe que preparam o programa de governo do candidato a implementação da medida é dada como certa; a proposta prevê a cobrança de mensalidade em universidades federais para alunos de alta renda e pretende utilizar os fundos arrecadados para financiar as vagas de alunos de renda mais baixa.
“Há uma inversão cruel do perfil do aluno das universidades públicas. Em geral, quem cursa a educação básica na rede privada conquista uma vaga nas instituições públicas”, afirmou Sólon Caldas, diretor executivo da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES), em entrevista à Gazeta do Povo, ainda em agosto.
A solução também é defendida pelo Banco Mundial no relatório “Um ajuste justo”, divulgado em novembro de 2017. De acordo com o documento, cerca de 65% dos estudantes das IES federais integram a faixa dos 40% mais ricos da população.
Acesso
O desafio para um aluno com pouco poder aquisitivo chegar à universidade pública é grande. A chance de um jovem com renda familiar per capita de R$ 250 ao mês ingressar em uma faculdade estatal é de 2%, segundo estudo realizado pelo Instituto Mercado Popular em 2016. Entre os alunos com renda superior a R$ 20 mil, a probabilidade chega a 40%.
Como mecanismos de equilíbrio, o Banco Mundial recomenda a distribuição de bolsas e a expansão de linhas de financiamento – a exemplo do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies). O ProUni concede bolsas parciais ou totais para viabilizar o ingresso de pessoas com menor renda nas universidades particulares. A condição é o candidato ter cursado o Ensino Médio em escolas públicas ou como bolsista integral na rede privada.
Problema amplo
O tema da cobrança de mensalidades ainda suscita outros debates, como a questão gerencial e a própria idoneidade administrativa. Há quem receie, por exemplo, uma diminuição da atenção dedicada pelo governo federal às instituições.
“Se houver o pagamento de mensalidades, acredito que os governos se sentirão menos obrigados a sustentar as universidades. Os repassem cairão”, disse Roberto Lobo, consultor de ensino superior do International Entrepreneurship Center (IEC-EUA) e ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP), à Gazeta do Povo também em agosto.
A proposta de Lobo seria cobrar dos alunos com maior poder aquisitivo para equilibrar o orçamento e dar apoio aos estudantes carentes – similar ao modelo defendido pela equipe de Bolsonaro. Um problema seria a insegurança quanto à destinação das verbas provenientes das mensalidades.
Os recursos até poderiam ser alocados em outros projetos governamentais, desde que tivessem o propósito de reduzir a desigualdade. Seria aceitável. Mas temos uma classe política que só dá maus exemplos. Quem poderia acreditar nisso? A situação é agravada pela falta absoluta de confiança nos gestores públicos brasileiros.
Divergência
Já Arabela Oliven, doutora em Sociologia pela Universidade de Londres e professora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), se posiciona contra a cobrança. A professora considera a ideia simplificadora e inócua em diversos âmbitos, além de mascarar uma das principais chagas do país.
“A medida teria um impacto mínimo no financiamento da educação superior e encobre o grande problema brasileiro que é a imensa concentração de renda. Os ricos não devem pagar por meio das matrículas dos seus filhos, mas por meio de um sistema tributário mais justo”, diz.
Outro ponto levantado por ela é a inconstitucionalidade da pauta: o ensino público gratuito é garantido pela Constituição Federal de 1988. O princípio de gratuidade do ensino poderia ser alterado com a aprovação de um Projeto de Emenda Constitucional (PEC).
“Esse não é um tema simples”, diz a professora de Direito de Estado da Universidade de São Paulo (USP) Nina Ranieri, em entrevista ao Estado de S. Paulo. Para aprovação de PEC, seriam necessários duas discussões na Câmara e no Senado e três quintos dos votos de parlamentares.
Conceito anacrônico
A gratuidade do ensino foi estipulada na Constituição de 1988, mas a adequação dessa diretriz à atual conjuntura sofre contestações. O cientista político Simon Schwartzman considera-a anacrônica.
A lei foi feita quando havia muito menos estudantes, os custos eram bem menores e o desequilíbrio fiscal sequer era vislumbrado. Não se trata de um princípio de direito universal.
O Brasil tinha 1,5 milhão de universitários em 1988 – 39% matriculados na rede pública. Atualmente, o número de graduandos ultrapassa os 8 milhões. Cerca de 25% deles estão em instituições gratuitas. Os dados são do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP).
O próprio conceito de gratuidade é relativizado. “Não existe gratuidade nos serviços públicos. A universidade não tem custo para quem estuda, mas é financiada pelos contribuintes. No caso, os mais pobres pagam para os mais ricos”, criticou Sólon Caldas, da ABMES, em entrevista recente à Gazeta do Povo.
Passos lentos
A cobrança de mensalidades no ensino superior público foi tema de projetos antes de Bolsonaro. Em outubro de 2017, o deputado federal Andrés Sanchez (PT-SP) enviou à Câmara Federal uma proposta de emenda constitucional (PEC 366/17) que permite a cobrança de mensalidades condicionadas ao nível socioeconômico do aluno. A PEC prevê a isenção apenas para estudantes que tenham cursado o Ensino Médio completo em escola pública ou como bolsistas integrais em unidades particulares
Em março de 2017, a Câmara Federal reprovou a PEC 395/14, que admitia a cobrança de mensalidades em cursos de extensão e pós-graduação lato sensu (especializações) em faculdades públicas. O Superior Tribunal Federal, por sua vez, foi no sentido inverso e um mês depois liberou as universidades para cobrarem por essas modalidades de ensino.
Existe outra proposta relacionada ao tema tramitando em Brasília – a PL 782/15, elaborada originalmente em 2005 pelo então deputado federal Marcelo Crivella (PRB-RJ), hoje prefeito do Rio de Janeiro. O texto prevê a cobrança de mensalidade para alunos com renda familiar superior a 30 salários mínimos.