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Quem é Charlotte Iserbyt e a teoria da educação projetada para nos tornar burros

Imagem do clipe da música "Another brick in the wall", de Pink Floyd. (Foto: Reprodução / You Tube)

* Nota do editor (em 22 de agosto de 2019, às 16h): Após sofrer um acidente, Charlotte Iserbyt adiou a sua vinda ao Brasil. De acordo com o Itamaraty, o evento ainda não foi remarcado.

20 years of schoolin' and they put you on the day shift.
Bob Dylan, “Subterranean Homesick Blues”

Nascida em 1930, Charlotte Thomson Iserbyt, com seus 89 anos de idade, parece ser uma daquelas velhinhas serenas, pacíficas e amorosas que estão prestes a fazer cafuné em alguma criança fofa ou então a preparar um delicioso bolo de fubá assim que alguém anuncia um novo vizinho no bairro. Mas ela não é nada disso. Na verdade, é bem feroz, implacável e impiedosa contra o inimigo que combate há mais de quarenta anos. E, para sermos honestos, é como esperamos que ela se comporte quando enfim desembarcar no Brasil na semana do dia 26 de agosto, para uma palestra a ser proferida na Fundação Alexandre de Gusmão, a escola para os diplomatas do Itamaraty, e cujo tema será “Política Educacional Globalista”.

Este parece ser um dos tentáculos da doença que Iserbyt quer destruir desde 1970, quando começou a recolher dados assustadores sobre o sistema educacional americano. Não à toa que a chamam de “the consumate whistleblower” – a informante por excelência. Ela participou da maioria dos conselhos escolares oficiais e não oficiais nas comunidades dos EUA, chegando ao ápice de ter sido nomeada, durante o primeiro governo Reagan (1980-84), como conselheira de políticas públicas do Escritório de Pesquisa Educacional e Aperfeiçoamento, um dos inúmeros braços do Departamento de Educação, o MEC deles.

Na época, Reagan dizia que queria acabar completamente com o tal departamento. Não conseguiu (colocaram a culpa no Partido Democrata, como sempre). Mas Iserbyt fez algo semelhante, ao usar as engrenagens do sistema para denunciar um documento chamado “O que nós podemos fazer para controlar e manipular as escolas”, publicado na revista conservadora Human Events. O “nós” do título era nada mais, nada menos que os burocratas que controlavam o Departamento de Educação. Obviamente, depois do vazamento, Iserbyt foi obrigada a sair do seu cargo de conselheira.

Porém, o estrago já estava feito. Nos anos seguintes, ela passou a coligir artigos, livros, pesquisas, leis e mais documentos para depois lançá-los, no ano de 1999, em um tomo gigantesco de mais de 700 páginas intitulado the deliberate dumbing down of america (assim mesmo, em minúsculas, uma idiossincrasia que esperamos ser mantida na sua tradução nacional, a ser lançada aqui pela editora Instituto Sofia Perennis com o nome “A idiotização proposital da América”, no claro intuito de aproveitar a vinda da autora).

Trata-se de uma obra apavorante, digna de um filme de horror. Não por causa do rigor da sua autora, é claro, mas sim por causa do tema abordado. Por meio de uma cronologia que vai de década a década, Iserbyt costura uma narrativa com fatos e documentos, além das declarações de educadores, psiquiatras, pedagogos, professores, políticos e jornalistas que nos fazem acreditar que a falência da educação americana foi feita como se fosse algo realmente deliberado, e que essa moléstia se espalhou para o resto do mundo graças ao globalismo, uma espécie de "pseudorreligião" que os burocratas do espírito defendem com unhas e dentes.

Em termos históricos, ela mostra que, graças às pesquisas de comportamento feitas por B.F. Skinner e os experimentos pragmáticos elaborados por John Dewey, o que antes era uma educação dedicada à formação da personalidade individual, responsabilizando integralmente o sujeito pelos seus atos e pensamentos, agora tornou-se um laboratório para condicionar o comportamento humano, pronto para destruir a sua capacidade de praticar o livre-arbítrio. Ao contrário do que muitos ingênuos possam pensar, esta não foi uma ideia que ficou apenas na cabeça de uma minoria; ela se instalou como um parasita na mente de cada burocrata, de cada político e de cada jornalista dos EUA, todos colaborando para a criação de uma estrutura tecnológica que invadiu a vida pessoal de cada cidadão, com apenas uma única (e perversa) intenção nas suas decisões públicas: transformar o ser humano em um mero animal.

O raciocínio de Iserbyt é muito semelhante ao de um outro livro inquietante sobre o mesmo assunto – o francês Maquiavel Pedagogo (Vide Editorial), escrito por Pascal Benardin. Não é por acaso que ela também o cita no decorrer da sua narrativa. Ambos fazem uma leitura minuciosa de documentos, sejam do Departamento de Educação americano, sejam da UNESCO ou da ONU, e chegam à mesma conclusão: há, de fato, um plano para nos tornar cada vez mais burros e, assim, destruir por dentro a soberania de cada nação que não se render diante da sutil coerção dos organismos supranacionais. E o eixo de todo esse processo é justamente o tema da palestra que Iserbyt dará para os jovens do Itamaraty, o tal do “Projeto Educacional Globalista”.

Apesar do nítido tom de “teoria da conspiração” que há nas obras de Iserbyt e Bernardin, não podemos negar duas coisas: a primeira é que ela é uma excelente crítica cultural, precisa nos conceitos, afiada na escolha dos documentos a serem analisados e arguta na sua conclusão implacável; a segunda é que, no fundo, nem ela, nem Pascal Bernardin estão errados. Ambos estão certos em seus pressupostos e nas consequências que extraíram durante as suas experiências com os seus respectivos sistemas educacionais analisados.

Pois trata-se de um fato que, a cada ano que passa, a sociedade moderna se aperfeiçoou no progresso da sua tecnologia, mas esqueceu-se que o preço disto tudo foi a morte do espírito. É evidente que estamos cada vez mais próximos de uma estupidez não só deliberada, mas sobretudo permanente. O globalismo que Iserbyt declarou como seu inimigo é uma estrutura digna dos contos de H.P. Lovecraft, na qual nós somos mais uma engrenagem em um pandemônio infernal que, a longo prazo, afetará a alma das nossas crianças – e, portanto, o destino do futuro de qualquer país que deseja manter o mínimo de dignidade.

Todo este ambiente faz parte de um dos componentes centrais do projeto de poder do governo Jair Bolsonaro – o da “guerra cultural”. Oriundo do termo kulturkampf, surgido na Alemanha no final do século XIX e que ali tornou-se uma verdadeira obsessão no início do século XX, culminando naquele acontecimento apocalíptico chamado “Primeira Guerra Mundial”, este novo tipo de conflito – que não usa armas ou bombas, mas atinge a consciência individual – passou por diversas metamorfoses até ser usada tanto pela esquerda como a direita americanas na década de 1960, depois no auge dos anos 1980 e 1990, quando ninguém mais sabia o que era mentira e o que era verdade. Como sempre acontece no Brasil, a “guerra cultural” virou um pastiche, mais uma daquelas alucinações dignas do Festival de Besteiras que Assolam o País descrito por Stanislaw Ponte Preta, que, ao ser apossada por uma determinada parte da direita tupiniquim – para ser exato, uma parcela nitidamente neointegralista –, foi capaz de deformar uma meia-verdade (a doutrinação gramsciana nas escolas e nas universidades) e torná-la uma realidade monomaníaca, que fez a fama de várias pessoas, da Escola Sem Partido a Olavo de Carvalho, passando pelos três filhos do Presidente da República.

Portanto, alguém precisa informar à Charlotte Iserbyt que a sua ida ao Brasil vem para fomentar algo que se opõe frontalmente a tudo o que ela defendeu em sua obra. A “guerra cultural” descrita em suas denúncias não é uma fábrica para criar um novo tipo de economia estruturada em torno do Estado Patrimonialista brasileiro. É algo pior: trata-se de uma guerra deliberada contra o espírito humano. As circunstâncias americanas e as brasileiras são semelhantes por analogia, mas completamente diferentes nas suas essências concretas. A própria Iserbyt mostra, em seus textos, soluções práticas que o cidadão americano consegue obter contra este embrutecimento da alma, como uma desobediência civil baseada principalmente em protestos comunitários, o boicote no pagamento de taxas e de impostos e, last but not least, o homeschooling – a educação em casa, feita pela própria família da criança. O globalismo pode até tentar impedir a realização desta última saída, mas ainda assim os EUA têm uma Constituição que permite a liberdade individual, algo que não existe (e nunca existiu) no Brasil, que, na sua carta magna, esqueceu-se do indivíduo e lembrou-se apenas da isonomia democrática que sempre foi a origem daquilo que Tocqueville mais temia: a tirania da maioria.

Se a visita de Iserbyt for realmente válida (e honesta), sugiro que o Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, a leve para conhecer um pouco da realidade concreta de um professor brasileiro – em especial, um professor que não seja viciado pelas bobagens de um Paulo Freire, muito menos enfeitiçado pela tecnocracia de um Instituto Ayrton Senna, mas que queira somente fazer o que a sua vocação exige: ensinar crianças que desejam ser educadas. Se algo semelhante for feito, é quase certo que Iserbyt verificará algo que nem o seu tomo gigantesco conseguiu registrar: ela testemunhará professores que, apesar da disfunção sistêmica do Estado, pagam do seu próprio bolso para burlar as exigências educacionais das apostilas recheadas de jargões politicamente corretos (pois todas as impressoras da escola foram recolhidas sem aviso); enfrentam alunos que se renderam à epidemia das drogas e da bandidagem sem nenhuma arma; são boicotados pelos coordenadores porque simplesmente não se vergam diante do corporativismo público; e, por isso, conforme o relato da professora Paula Rosiska publicado há alguns dias no Twitter, vivem com medo de darem suas aulas, já que não têm nenhuma vontade de serem agredidos, tanto pelos estudantes como pelos burocratas que os sufocam com suas decisões arbitrárias, feitas de cima para baixo, e sem nenhuma preocupação com quem realmente assume o risco da empreitada.

Discorrer sobre a “política educacional globalista” em um auditório cheio de funcionários públicos de primeira categoria é fácil. O que eu gostaria de realmente ver é como Charlotte Iserbyt, justamente por causa da sua implacável honestidade intelectual, perceberá que sua palestra no Itamaraty é uma amostra de que ela é mais uma vítima do “fetichismo do conceito” que sempre atacou a nossa elite política – demonstrado aqui pela preferência de discutir um globalismo que é apenas uma abstração em nosso dia a dia em vez de atacar uma epidemia nacional que tem sua origem na mesma “revolta das elites” que organizou tanto a esquerda do PT como também a ascensão de uma direita que continua naquela guerra deliberada contra o espírito humano.

Portanto, fica aqui o aviso para que Charlotte Thomson Iserbyt, esta nobre senhora defensora da educação que respeita a liberdade humana, não entre no engodo de ter suas ideias usadas por um governo que, mesmo sendo contra a hegemonia gramsciana, praticará o que qualquer aparelho digno do nosso totalitarismo cultural sempre fez: destruir a alma das nossas crianças para depois colocá-las no moedor de carne que é o mercado de trabalho, a única coisa interessante para um país cujo pragmatismo técnico é, no final, o irmão gêmeo do tão temido globalismo que o bolsolavismo alega combater. Se a boa velhinha não perceber isso, então só podemos terminar este artigo parafraseando a antológica prece dita por um malfadado ex-deputado federal durante uma das nossas encruzilhadas históricas: Que Deus tenha misericórdia desta mulher.

* Martim Vasques da Cunha é autor dos livros Crise e Utopia – O Dilema de Thomas More (Vide Editorial, 2012) e A Poeira da Glória – Uma (inesperada) história da literatura brasileira (Record, 2015).

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