Pegue um livro. Não precisa ser um romance de mil páginas escrito por um irlandês genial. Pode ser um livrinho de 120 páginas sobre um grupo de jovens arrancados de suas rotinas para lutar na Primeira Guerra Mundial. Quando o escritor sabe lidar com as palavras e consegue colocar você dentro de uma situação ou da cabeça de um personagem – também é isso que faz um texto ser “complexo” –, o cérebro vai acionar regiões responsáveis pela experiência vivida e isso é absolutamente incrível: significa que ler um livro bom sobre a Primeira Guerra pode fazer você experimentar o conflito de certa forma. Não como se estivesse enfiado as botas na lama europeia, mas algo relativamente próximo disso.
Descobertas assim foram feitas nos últimos anos por uma série de pesquisas envolvendo neurociências, psicologia e linguística.
59% de todos os links compartilhados em redes sociais nunca foram clicados por ninguém. Isso significa que seis em dez pessoas compartilham textos que não leram
Quando você lê algo desafiador, o cérebro avança sobre território virgem. Ele abre caminho a facão. Se o texto é capaz de fazer você sentir e pensar em coisas e de se envolver com personagens e situações, mais tarde, quando você se deparar com uma situação em que precisa acessar essas coisas em que pensou e que sentiu, ao escrever um texto, por exemplo, o seu cérebro vai saber por onde ir e vai levar você com ele.
Foram duas pesquisadoras da Universidade da Flórida em Gainesville que chegaram a essas conclusões, Yellowlees Douglas e Samantha Miller. Elas realizaram um estudo em que conseguiram provar que a leitura de textos com vocabulários e sintaxes complexos torna você um escritor melhor.
O resultado da pesquisa acaba de ser publicado pelo International Journal of Business Administration e inspirou o texto “O que você lê importa mais do que você pensa”, de Susan Reynolds, para o “Psychology Today” e publicado também no “Quartz”.
A própria Reynolds é autora de livros que tratam de neurociência aplicada a objetivos específicos, o mais novo deles, “Fire Up Your Writing Brain”, usa pesquisas para aprimorar habilidades de escrita.
“Estudantes [com idades entre 23 e 42 anos] que leem publicações acadêmicas e textos de ficção e de não ficção escreveram com sintaxe mais sofisticada (com frases mais elaboradas) do que aqueles que leem só livros de gênero (mistério, fantasia ou ficção científica) ou exclusivamente plataformas na web como Reddit, Tumblr e Buzzfeed”, escreve Reynolds. O melhor desempenho foi de quem lê publicações acadêmicas. O pior, de quem se fia apenas em conteúdo taquigráfico para a web.
Se você lê só o que não presta – e abraçar redes sociais como fontes únicas de leitura e de informação não presta –, sua capacidade de compreender o mundo, de lidar com ele e com as pessoas que vivem nele está em jogo.
Tenha em mente a pesquisa feita pela Columbia University com o French National Institute, noticiada pelo “Washington Post” em junho passado: 59% de todos os links compartilhados em redes sociais nunca foram clicados por ninguém. Isso significa que seis em dez pessoas compartilham textos que não leram.
“Sim, não apenas estudos, mas a prática mostra que as pessoas andam lendo pouco, mal, pela ‘superfície’, somente as chamadas, e por aí vai”, diz o professor, escritor e pesquisador Benedito Costa Neto. “Claro que existem pessoas que leem bem e em quantidade... mas o nível de leitura geral é terrível.”
Para Costa Neto, a leitura é “uma conquista que vem aos poucos”. Ler não é apenas decifrar uma escrita. “É tentar atravessá-la, resgatar o que há de sentido nela, ter um entendimento dela. Leitura e escrita são exercícios.”
Quando a edição mais recente da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil saiu há dois meses, muitos veículos – esta Gazeta entre eles – se concentraram na estatística mais evidente: 44% da população brasileira não tem o hábito de ler.
“Claro que existem pessoas que leem bem e em quantidade... mas o nível de leitura geral é terrível”.
Citando Costa Neto, leitura é mais exercício do que hábito. Fora isso, alguns dados escabrosos apareceram de maneira discreta na pesquisa. A pesquisa aceita que a Bíblia e gibis são “obras literárias” e considera leitor alguém que tenha lido apenas um trecho de livro nos últimos três meses. Não fosse assim, a quantidade de gente que lê no Brasil seria muito, muito menor do que os 56% apurados pelo Instituto Pró-Livro. O retrato é turvo.
Leitura profunda
“Pesquisas em ciência cognitiva, psicologia e neurociência demonstraram que a leitura profunda – lenta, imersiva, rica em detalhes sensoriais e com complexidade moral e emocional – é uma experiência distinta, bem diferente da mera decodificação de palavras”, argumenta Annie Murphy Paul em texto de 2013 para a revista “Time”.
Paul escreve sobre questões científicas e chegou a falar sobre aprendizado de fetos numa daquelas palestras chamadas de TED Talks. Quando trata do efeito da leitura no cérebro, ela argumenta que a “leitura profunda” não é exclusividade de livros, mas que o objeto de papel e tinta privilegia a imersão do leitor. E é essa imersão que faz diferença.