A pandemia por Covid-19 representa uma bela oportunidade para refletir criticamente sobre o papel das universidades públicas no cenário brasileiro atual. Mas, antes de tratar disso, é importante refletir um pouco sobre as atividades desenvolvidas na universidade, as quais não se restringem ao ensino, englobando também a pesquisa e a extensão. Será uma longa digressão. Isso é importante para que as pessoas compreendam a complexidade da vida acadêmica.
Acadêmicos vivem de publicações. O número e a qualidade das publicações são os critérios meritocráticos de desempenho acadêmico. Mas está cada vez mais difícil publicar. Isto significa que a vida acadêmica está cada vez mais difícil. Os periódicos "open access" proliferaram e se tornam cada vez mais caros. Atualmente, está difícil publicar em um periódico "open access" razoável por menos do US$ 3.000. Com a desvalorização do Real, isso significa pelo menos R$ 15.000. Ou seja, ficou impossível. Não há instituição de fomento ou "Fundação Família Fulano-de-tal" que sustente essa exorbitância. Somente para publicar três artigos por ano em periódicos "open access", um pesquisador necessitaria de US$ 9.000 por ano, além do financiamento da pesquisa propriamente dita.
Paralelamente, os periódicos que não cobram para publicar estão cada vez mais exigentes. A quantidade de "nãos" que se recebe de cara é acachapante. A maioria dos pesquisadores acaba adotando a estratégia de enviar inicialmente para um periódico bom, manejar a rejeição, aceitar as críticas, reformular o artigo e enviá-lo para outra revista. Por vezes, é necessário fazer isso umas duas ou três vezes até conseguir emplacar. O processo de publicar um paper pode levar até dois anos, entre as idas e vindas.
Uma prova adicional de como o sarrafo aumentou advém da leitura da literatura mais antiga. Outro dia eu peguei um paper de 2004 e fiquei abismado de como é que aquilo tinha sido publicado em uma revista importante. Hoje em dia não seria mais aceito. A menos que o autor principal fosse alguém muito importante. Mas alguém importante de fato não coloca seu nome em porcaria.
O Brasil investiu muito em pós-graduação e pesquisa nas últimas décadas. A choradeira é sempre grande. Mas, no longo prazo, o investimento foi grande. Entretanto, os investimentos sofrem altos e baixos. Agora estamos em uma fase de vacas magras.
Outro dia passei vergonha com um colega da Inglaterra: nos últimos dois anos não tive nenhum projeto de pesquisa financiado. O número de publicações por autores brasileiros aumentou incrivelmente. Mas, como aponta o prof. Marcelo Hermes-Lima, a nossa publicação científica é irrelevante. É só para fazer número. O impacto da ciência brasileira é baixíssimo.
Os motivos para isso são vários. Já mencionei a falta de financiamento, que é sempre escasso. O maior elogio que recebi na vida foi de um colega alemão com quem trabalhei por um tempo. Em alguns poucos anos, nós conseguimos publicar oito papers juntos. O cara me falou assim: "É impressionante o que vocês conseguiram com tão poucos recursos". De fato, foi impressionante.
Publicar custa dinheiro. Mesmo quando a revista não cobra. Isso foi uma das coisas que aprendi no doutorado. Naquela época, o prof. Pöppel estava concluindo um grande projeto de pesquisa, que havia recebido financiamento de DM (Marco Alemão) 1.000.000. Uma fortuna na época. Na festa de encerramento foi feito um simpósio, apresentando os resultados. Na sua fala, o prof. Pöppel calculou quanto havia custado cada paper. Não me lembro bem dos valores. Mas era algo em torno de DM 50.000. Ou seja, publicar custa caro. E quem financia, na maioria das vezes, é a "Viúva".
Além da escassez de recursos, temos também as nossas próprias insuficiências. A nossa formação intelectual e científica é deficiente. A maioria dos nossos alunos leva um choque quando vai para o exterior. Nós ainda vivemos na roça e não temos noção do que se passa na cidade. Temos muito pouca inserção internacional. Por exemplo, na maioria dos cursos de graduação em Psicologia e Pedagogia predominam autores do século passado - os quais são, justamente, clássicos. Os alunos não têm acesso à literatura mais recente e não conseguem acompanhar as inovações teóricas e metodológicas.
Um outro elogio muito gostoso que recebi foi de uma aluna, hoje professora universitária e pesquisadora, a qual tinha ido fazer intercâmbio na Inglaterra durante a graduação. Essa moça me mandou um e-mail dizendo: "Estou fazendo disciplinas de neuropsicologia cognitiva e psicologia evolucionária. Agora entendo a importância das coisas que você fala".
O Brasil é um país-continente. Vivemos isolados. Temos poucas oportunidades de praticar a língua inglesa, de conviver com pessoas e pesquisadores de outros países. É óbvio que houve avanços. O maior de todos foi o Periódicos.CAPES. Hoje podemos fazer revisões sistemáticas da literatura! Houve também aquele programa há alguns anos que mandou um monte de alunos de graduação para o exterior sem critério algum. No meu caso, isso não se aplicou. Uma meia dúzia de alunos meus foi para o exterior e aproveitou muito. O problema que algumas dessas pessoas retornaram para o exterior e não vão mais voltar. Não deixa de ter seu lado positivo: perde-se um pesquisador brasileiro, ganha-se um colaborador internacional.
O próprio sucesso da pós-graduação no Brasil acaba impondo empecilhos ao aumento da nossa relevância científica. As pós-graduações em senso estrito se popularizaram muito. É crescente a demanda por mestrado e doutorado entre profissionais inseridos no mercado. Isso é ótimo. O mestrado e o doutorado permitem a esses profissionais informar sua prática profissional por evidências. Mas como, um grande contingente de alunos que cursa mestrado e doutorado não tem vocação para a pesquisa, isso pouco contribui para aumentar a relevância científica brasileira.
Como um grande contingente de alunos de pós-graduação não tem noção das complexidades envolvidas na pesquisa e do que se passa lá fora, sua agenda é distinta da agenda da ciência. A agenda do aluno consiste de dois anos para terminar o mestrado e quatro anos para terminar o doutorado. Sem pressa para tocar a pesquisa. Por vezes surge uma ideia interessante, uma hipótese que poderia ser facilmente testada em pouco tempo - apesar da escassez de recursos tecnológicos e financeiros. O aluno parece não compreender a urgência em testar a hipótese.
O tempo vai passando e, em alguns meses, alguém publica o teste daquela mesma hipótese. A qual deixou de ser original. Quando, finalmente, o artigo brasileiro sair após dois ou quatro anos será mais um exemplo de pesquisa tipo "me too". "Ah, os gringos fizeram, então eu faço também". Sem contar a produtividade. Um post-doc na Europa consegue coletar em quatro meses os dados que nós levamos um ano para coletar, contando com a boa vontade de um monte de alunos voluntários de iniciação científica.
Face a essas complexidades, o único remédio é a dedicação, o esforço. Trabalhar muito é a única coisa que podemos fazer para compensar nossas insuficiências. Nesse sentido, é muito confortador receber as críticas e os elogios que muitos revisores fazem aos nossos trabalhos, como por exemplo: "Este é um manuscrito significativamente melhorado. Obrigado por considerar todos os meus comentários. É louvável a quantidade de trabalho e esforço que você dedicou a melhorar este manuscrito". Esse comentário foi feito por ocasião da segunda revisão de um manuscrit [aqui seria manuscrito?], em vias de ser (mas ainda não) aceito. As críticas também são bem-vindas. As críticas doem, mas são aulas gratuitas, ministradas por um revisor anônimo que generosamente se dispõe a doar seu tempo para melhorar o trabalho alheio.
A pesquisa científica é um processo muito mais complexo do que uma observação externa possa supor. Ao mesmo tempo em que os critérios de exigência se elevam progressivamente, a pesquisa se presta a manipulações políticas e interesses econômicos escusos, como se testemunha atualmente com Covid-19. A pandemia colocou a ciência no limite em vários sentidos. Nos ajudou a reconhecer os limites entre o conhecido e o desconhecido. Mas ajudou também a reconhecer a vulnerabilidade da ciência à manipulação e suas limitações.
As limitações do sistema brasileiro de universidades públicas foram escancaradas. Com todos seus defeitos, as universidades públicas brasileiras representam aquilo de melhor que o Brasil consegue fazer. Colegas estrangeiros ficam abismados quando lhes informamos que o país tem 70 universidades federais. Uma vez levei um colega alemão para conhecer o Hospital de Clínicas. Terminada a visita, ele me falou assim: "Quer dizer que seu ficar doente, posso vir aqui e ser atendido de graça?". Ao que eu respondi: "Depende, se você fosse brasileiro, poderia".
Ao mesmo tempo em que as universidades públicas representam capital social e cognitivo, elas têm sido cada vez mais frequentemente objeto de crítica. Muitas dessas críticas são interpretadas como ameaças à "educação pública, gratuita e de qualidade". Grande parte das "ameaças" são externas e plenamente justificáveis. As universidades federais custam caro. Cada aluno/mês em uma universidade federal pode custar até cerca de R$ 3.000. É muito dinheiro. Assim, a responsabilidade é grande e a sociedade tem o direito e a obrigação de cobrar.
Mas as ameaças ao ensino "público, gratuito e de qualidade" não são apenas externas. Elas são internas também. Até algumas décadas, as universidades se dedicavam ao ensino, pesquisa e extensão. Parece que o ativismo político foi acrescentado ao rol de finalidades das universidades. Isso ficou muito claro com o coronavírus.
Se a universidade pública, gratuita e de qualidade está sendo questionada, a pandemia poderia ser uma oportunidade para demonstrar sua relevância. Com algumas honrosas exceções, não foi isso que aconteceu na maioria das universidades públicas brasileiras. Professores foram praticamente proibidos de ministrar aulas remotas pela internet, uma vez que os créditos não seriam reconhecidos. O argumento usado era de que uma minoria de alunos não teria acesso às aulas remotas. Ou seja, para impedir que uma minoria fosse "discriminada" os interesses de todos os envolvidos foram prejudicados.
Isso não adiantou de nada. Os alunos que não tinham acesso, continuam sem ele e ficou todo mundo parado. Após quatro meses, as universidades começam, lentamente, a reorganizar a volta às aulas sob a forma remota e começa a organizar uma estrutura financeira e administrativa que garanta a inclusão digital de todos os alunos. Mas os alunos e professores continuam desorientados, sem receber uma sinalização precisa do que e quando vai acontecer.
Isso sem falar na dimensão extensionista da universidade pública. O potencial de prestação de serviços gratuitos e de qualidade para a população através das universidades é imenso. Numa época de crise como essa que estamos vivendo, as universidades poderiam ter se organizado de forma mais proativa e estratégica no sentido de fornecer serviços online para a população. Por exemplo, sob a forma de cursos a distância, teleatendimento na área de saúde e consultorias na área empresarial. As universidades contam com infraestrutura para isso.
Ao invés de um planejamento estratégico e coordenado por parte da associação nacional de dirigentes, o que se viu foram iniciativas isoladas de algumas universidades ou de alguns professores. Frente às "ameaças" reais ou imaginárias, foi uma oportunidade desperdiçada de prestar serviços à população, mostrando o valor que o nosso sistema público de universidades tem e porque ele merece ser sustentado com o suor dos pagadores de impostos. As atividades acadêmicas não se restringem a dar aulas (que ficaram paradas durante a pandemia). Atividades igualmente importantes são a pesquisa (que teve a parte empírica prejudicada, mas que continua sendo tocada por professores e alunos através da análise de dados, seminários de laboratórios e publicações) e a extensão (na qual ocorreram apenas iniciativas isoladas ou em escala muito reduzida).
*Vitor Geraldi Haase é professor titular do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).