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Após aprovação na Câmara dos Deputados e no Senado, no dia 26 de agosto o Congresso Nacional promulgou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do novo Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), que o torna permanente e aumenta o repasse do governo federal, dos atuais 10%, para 23% (de forma escalonada, nos próximos anos) do total de recursos do fundo.
O novo formato do Fundeb deve passar a vigorar já em 2021, mas para isso é preciso que seja aprovada uma lei regulamentadora, cuja função principal é definir a distribuição dos recursos entre estados e municípios.
Após passar a fazer parte da Constituição Federal, o Fundeb – que é usado, por exemplo, para pagamento de professores e funcionários das escolas e aquisição de equipamentos e materiais didáticos – passa a ser maior, graças ao aumento da contribuição da União, e mais redistributivo, já que sua complementação irá para as redes de ensino com menos recursos. Porém, é a partir da aprovação da lei regulamentadora que as mudanças sairão efetivamente do papel.
Entre os principais pontos que envolvem a regulamentação estão o detalhamento de cálculo de todos os modelos de distribuição dos recursos a serem complementados pela União; a definição dos fatores de ponderação para a redistribuição de recursos; as possíveis utilizações previstas dos valores disponibilizados; e a fiscalização, avaliação e controle do uso dos recursos – esse último item é especialmente importante para coibir desvios de recursos do Fundeb.
O que propõe o projeto da deputada Professora Dorinha
O principal projeto de lei sobre o tema, o PL 4.372/20, de autoria da deputada Professora Dorinha (DEM-TO) em conjunto com outros parlamentares, como Tabata Amaral (PDT/SP), Raul Henry (MDB/PE) e Professor Israel Batista (PV/DF), foi apresentado em 27 de agosto, um dia após a promulgação da PEC do novo Fundeb. Veja alguns dos principais aspectos da proposição:
De acordo com o PL, a complementação de responsabilidade da União deverá ser aumentada progressivamente até chegar a 23% da soma dos 27 fundos estaduais em 2026. A proposição também estabelece que os repasses não poderão ultrapassar a quantia de 30% e que esses valores deverão ser utilizados da seguinte forma:
- 10% para os estados mais pobres a fim de equalizar, com relação à média de todos os estados, os valores aluno/ano, cujo indicador é o Valor Aluno/Ano Fundeb (VAAF). No ano de 2019, esse recurso foi destinado a dez estados, cujo VAAF ficou abaixo da média das unidades federativas.
- 10,5% para as redes públicas de ensino, tanto municipais quanto estaduais ou distritais, que não alcançarem a média nacional com relação ao Valor Aluno/Ano Total (VAAT). A diferença entre este indicador e o VAAF é que o VAAT considera as receitas totais, incluindo aquelas que não estão vinculadas ao Fundeb. De acordo com a proposta, 50% desses recursos, isto é, 5,25% da complementação, deverão ser destinados à educação infantil.
- 2,5% para as redes de ensino que cumprirem critérios de melhoria de gestão e alcançarem evolução de indicadores predeterminados de atendimento e melhoria da aprendizagem com redução das desigualdades, nos termos do sistema nacional de avaliação da educação básica. O indicador deste item é o Valor Aluno/Ano Resultados (VAAR).
No PL, a distribuição de recursos do Fundeb para instituições comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos e conveniadas com o poder público é permitido somente em casos em que o poder público não tenha condições de suprir a demanda, como na educação infantil oferecida em creches para crianças de até três anos, na educação do campo e em educação especial.
Na proposição, os gestores municipais e estaduais deverão destinar no mínimo 70% dos recursos anuais totais do Fundeb para a remuneração dos profissionais da educação básica em efetivo exercício, sendo vedado o uso para pagamento de aposentadorias e pensões. No mínimo 15% do valor restante deverão ser aplicados em obras e investimentos em estrutura para as instituições de ensino; os demais valores poderão ser utilizados para despesas correntes.
Críticas ao novo Fundeb
Apesar de o Fundeb ter contribuído com a universalização da educação no país (juntamente com o seu antecessor, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério – Fundef –, implementado em 1998), a forma como os recursos são utilizados e a não tradução desses investimentos em melhoras efetivas na qualidade do ensino costumam ser, frequentemente, alvos de críticas. Em 2019, o Fundeb destinou R$ 156,3 bilhões em recursos para as instituições públicas de educação básica no Brasil, e neste ano o valor distribuído será de R$ 168 bilhões – de acordo com o cálculo “antigo” de 10% de repasses da União.
“Os temas cruciais para o avanço da educação brasileira não estão em jogo. O que é crucial: currículo, livro didático, avaliação e formação docente. Nada disso entrou na conta. O que entrou foi o aumento do valor que será destinado aos professores e um cálculo bem detalhado de como garantir recursos afirmando que é crime de responsabilidade não cumpri-los”, afirma Ilona Becskeházy, doutora em política educacional e ex-secretária de Educação Básica do Ministério da Educação (MEC).
Ilona explica que a forma proposta para a distribuição dos recursos, que leva em conta a realidade de cada município, corrige uma distorção. Mas ela considera um erro aumentar o volume de repasses sem estudos que comprovem sua correlação com a melhoria na qualidade da educação.
“Por que essa ênfase na questão salarial dos professores? Não há nenhum estudo para corroborar que ‘x’ aumento de salário equivale a ‘x’ melhoria no rendimento dos alunos. Estamos falando dos direitos dos alunos. Não se pode trabalhar o aumento dos professores – amarrando a mão dos gestores ao aumentar o percentual do dinheiro que vai para salários –, usando os direitos dos alunos como justificativa”, observa.
A especialista também questiona o fato de o Custo Aluno-Qualidade (CAQ) – parâmetro que define critérios de qualidade do ensino, aproximando os investimentos brasileiros em educação aos investimentos dos países mais desenvolvidos eleva em conta, dentre outros fatores, o salário de docentes e a infraestrutura das escolas – ser considerado o fator principal para aferir os padrões mínimos de qualidade do ensino. Diretrizes relacionadas ao CAQ estão mais especificadas no PL 4519/20, de autoria do senador Randolfe Rodrigues (REDE-AP).
“Estão usando uma coisa subjetiva para aumentar investimentos sem melhorar resultados. Não há recursos suficientes e, mais ainda, não há estudos de qualidade que corroborem a necessidade de que, ao implementar o CAQ, a qualidade da educação vai aumentar”, avalia.
Para Fernando Luís Schüler, cientista político e professor do Insper, um dos principais pontos que deveriam ser corrigidos na regulamentação do Fundeb é garantir autonomia aos estados e municípios, para que possam fazer a implantação dos modelos de gestão com maior eficiência.
“Mesmo que o gestor tenha outras necessidades para o uso dos recursos, ele é obrigado a gastar no mínimo 70% em folha de pagamento. Isso cria um incentivo artificial para a contratação de mais funcionários. O que se deve cuidar agora, com a regulamentação, é dar autonomia para que os prefeitos e governadores possam usar os 30% que restam como preferirem a partir de suas realidades locais”.
Schüler também questiona a vedação ao uso do Fundeb para escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas por meio de contratos de gestão. “É preciso seguir o que está escrito na Constituição Federal. De acordo com o artigo 213, os prefeitos e governadores podem optar por modelos de gestão direta ou contratualizada”, declara o professor.
“Precisa haver um sistema misto, plural, com várias modalidades de oferta e gestão, para que a sociedade possa comparar o desempenho e, com o tempo, migrar para os sistemas mais eficientes. Hoje temos um 'Apartheid' no Brasil: os mais ricos podem escolher onde estudar e escolhem o setor privado, e os mais pobres ficam reféns das instituições públicas”, reforça.
Ilona também questiona a definição, presente nos projetos de lei das duas casas legislativas federais, de os recursos do fundo estarem restritos, com raras exceções, às escolas públicas, deixando de lado instituições comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos. “É preciso que esses recursos sejam para a educação básica em geral, independentemente do arranjo. Esse é o mais importante elemento que precisa ser modificado nesse PL”, questiona.
Debate sobre a regulamentação do novo Fundeb
Como o novo Fundeb começa a vigorar no próximo ano, há uma mobilização de parlamentares das duas casas legislativas federais para aprovar a lei regulamentadora ainda neste ano. Para debater o assunto, deputados realizaram um debate virtual na semana passada com o tema “Os desafios da regulamentação do Fundeb” – evento que contou com presenças do deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara; da deputada Professora Dorinha Seabra Rezende (DEM-TO), relatora da proposta de emenda à Constituição que originou o novo Fundeb e autora do principal projeto de lei sobre a regulamentação do fundo, o PL 4.372/20; do deputado Felipe Rigoni (PSB-ES), que foi suplente na Comissão Especial do Fundeb; e de especialistas em educação.
De forma geral, os temas centrais da discussão ficaram em torno da necessidade de urgência quanto à aprovação da lei regulamentadora, porém, os participantes trouxeram seus pontos de vistas quanto às prioridades da discussão.
Felipe Rigoni destacou os desafios que envolvem a discussão da lei, apontando como pontos centrais a fiscalização, o controle do uso desse dinheiro e as formas de aferir os resultados do aumento nos repasses às redes de ensino. “Espero que o quanto antes tenhamos um texto para aprovar na Câmara e no Senado, para que o MEC tenha tempo hábil para fazer todas as alterações de sistemas e que, no início de 2021, o novo Fundeb esteja em vigor”, destacou o parlamentar.
Já Priscila Cruz, presidente-executiva do Todos Pela Educação, ressaltou a necessidade de aprovar itens-chave que integram o novo Fundeb em 2020. Desses, citou os aspectos relacionados à cesta de impostos municipais e estaduais; os detalhamentos de cálculos para as complementações da União; os sistemas de informação de receitas e despesas dos entes federados; e os recursos para financiar salários de professores. Ela afirma que há itens, como a complementação do modelo Valor Aluno/Ano Resultado (VAAR), que trata da comprovação de resultados e alcance de indicadores, e a revisão e avaliação periódica do Fundeb, que podem ficar para uma legislação posterior, a ser debatida em 2021.
Quando compara os dois projetos apresentados (o PL 4.372/20, da Câmara dos Deputados e o PL 4519/20, do Senado), Priscila afirma que, apesar de a proposta da Câmara dos Deputados focar no que é mais urgente, ambos carecem de mais discussões e aprimoramentos. Um dos casos apontados por ela é o conceito de “profissionais da educação” ser pouco específico, não deixando claro a quais profissões, além dos docentes, os recursos serão disponibilizados.
A deputada Professora Dorinha também destacou a importância da urgência para aprovar a regulamentação. “Ainda que não consigamos construir o tema ideal e tenhamos que revisitar o assunto em 2021, já que há questões que devem ser discutidas de maneira mais articulada, precisamos finalizar o texto para votar no ‘minimamente possível’”, afirmou.