A polêmica reforma do ensino médio, anunciada pelo governo de Michel Temer em 2017, ainda não saiu do papel. Falta um elemento importante para colocar toda a engrenagem da nova lei em movimento: a aprovação da criticada Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento responsável por definir o que o aluno vai aprender em sala de aula. Esse texto está pronto, mas precisa do aval do Conselho Nacional de Educação (CNE) para ser colocado em prática. O órgão promete homologar a Base até o fim de 2018, mas, até lá, dependendo do resultado das eleições, muita coisa pode acontecer.
Um dos objetivos principais da reforma do ensino médio é diminuir o número de matérias dadas em sala de aula – hoje são 13 disciplinas obrigatórias nos três anos, modelo criticado tanto por educadores progressistas quanto por conservadores, pela sua ineficiência. Com a mudança, o aluno passará a escolher uma área do conhecimento para se aprofundar entre cinco “itinerários formativos”, Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza, Ciências Humanas e Formação Técnica e Profissional.
Mas quanto de Português e Matemática a escola deve dar em cada um desses caminhos formativos? E as outras disciplinas? Artes e Filosofia são desprezíveis para quem prefere estudar mais Matemática e Ciências da Natureza? Que conhecimentos serão exigidos no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio)?
A questão, que acarretou brigas acaloradas no Congresso, terminou com a definição de que apenas duas disciplinas são obrigatórias nos três anos: Português e Matemática. Filosofia, Sociologia, Educação Física e Artes também são obrigatórias, mas seria a BNCC que estipulará quanto da carga horária caberá a cada uma dessas matérias. Pela lei aprovada, 40% dos três anos do ensino médio serão dedicados ao itinerário formativo escolhido pelo aluno. Os outros 60% serão exigidos de todos os estudantes – e seriam esses os principais conteúdos a serem definidos na BNCC.
O problema é que a proposta do MEC para a Base é vaga, na opinião de muitos educadores, e não traz detalhes mais precisos de quais conteúdos devem ser incluídos nos 60% de conteúdo obrigatório. “A minha sensação é de que se trata de uma proposta incompleta”, diz o educador Cesar Callegari, membro do CNE e ex-presidente da Comissão de Elaboração da BNCC.
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Na opinião de Callegari, que deixou a comissão por não concordar com o produto final do MEC, o texto traz proposições muito genéricas relacionadas à parte obrigatória do currículo. Além disso, ele contesta a distribuição da carga horária: a reforma do ensino médio prevê aumento das atuais 2,4 mil horas de ensino para 4,2 mil horas (educação integral). Porém, os 60% de conteúdos garantidos sofreriam uma redução antes da implantação do ensino integral – de 2,4 mil horas para 1,8 mil horas em um primeiro momento. Não seria pouco? Outra questão: à exceção de aulas de Português e Matemática, as disciplinas estão diluídas no texto da Base, sem o desmembramento dos conteúdos. “Você não sabe exatamente quais temas de Química, Geografia e História serão, de fato, garantidos como direito de aprendizado”, critica Callegari.
Já Cecília Motta, presidente do Conselho Nacional dos Secretários de Educação (Consed) e atual secretária da pasta no Mato Grosso do Sul, acredita que o país demorou muito tempo para modernizar o ensino, dando ao aluno a chance de dedicar mais tempo para a área do conhecimento em que pretende atuar.
“Precisávamos de uma reforma e de uma base. Se isso não fosse feito, ocorreria uma estagnação do Ensino Médio”, condiciona. Cecília também ressalta que o modelo poderá sofrer adaptações a partir das opiniões colhidas nas audiências públicas. O Consed participou ativamente dos debates da BNCC do Ensino Médio.
Estados farão seus próprios currículos
O texto da BNCC deixa claro que o projeto não estabelece um currículo completo para o Ensino Médio brasileiro. “A Base Nacional Comum Curricular não se constitui no currículo dessa etapa, mas define as aprendizagens essenciais a serem garantidas a todos os estudantes e orienta a (re)elaboração de currículos e propostas pedagógicas”, aponta o texto do MEC. A ideia é oferecer uma referência para que estados criem seus próprios programas de conteúdo em conformidade com as culturas regionais.
De acordo com o MEC, a flexibilização da estrutura curricular foi criada em cima das recomendações de especialistas e atendeu aos pedidos dos próprios secretários estaduais de Educação. A principal característica dessa maleabilidade é a implementação dos itinerários formativos. Segundo o órgão, as trilhas oferecidas pelas escolas podem se ater às áreas de conhecimento ou combinar diferentes temáticas. O estudante, assim, ganha certa autonomia para montar parte do seu currículo. As instituições também têm liberdade para focar em algum aspecto específico de uma disciplina – como música ou filosofia, por exemplo.
A formação profissionalizante, por sua vez, pode ficar prejudicada em razão da baixa oferta de cursos. Segundo o pesquisador Paulo Roberto Corbucci, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), menos de 10% dos municípios das regiões Norte e Nordeste contam com escolas técnicas do Sistema S – que agrupa entidades como Sesi e Senac. Ao todo, apenas 105 cidades oferecem a opção aos estudantes.
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Outro desafio trazido pela mudança do ensino médio é a preparação dos professores. Os docentes atuais foram capacitados para o modelo tradicional de ensino, dividido por disciplinas. Além da alteração curricular nas universidades, o Estado deverá garantir uma nova formação profissional, com foco na atuação interdisciplinar por áreas de conhecimento.
Escolas darão conta da demanda?
Conforme a BNCC, cada escola pública terá liberdade para escolher as áreas de aprofundamento. E isso pode significar uma limitação aos estudantes. Para Roberto Catelli, coordenador executivo da Ação Educativa, se não houver mais investimento nos locais de ensino, é provável que os estudantes tenham poucas opções de itinerários formativos à disposição.
O fato é que as escolas não são obrigadas a estabelecer trilhas de capacitação em todas as áreas. O BNCC apenas sugere uma diversificação desses caminhos. Assim, os estudantes podem se deparar como uma variedade abaixo da expectativa. “Não tem como os estados absorverem toda essa mudança. Os governadores aprovaram a reforma porque reduziria custo. Agora, como está, ficou diferente”, afirma Catelli.
O problema é mais acentuado em cidades de menor porte. Em geral, esses municípios contam com menos escolas – às vezes uma única instituição. Os alunos dessas localidades correm o risco de não encontrar os itinerários formativos de seu interesse, ficando condicionados à oferta existente.
Isso pode agravar ainda mais a desigualdade de acesso ao ensino. E a disparidade se torna perceptível quando o recorte é feito por renda familiar. Os brasileiros com idade entre 18 e 29 anos estudam, em média, 10,1 anos. Mas há extremos dentro desse cálculo. A população situada na fatia dos 25% mais ricos, por exemplo, passa 12,5 anos nos bancos escolares. Já os 25% mais pobres ficam apenas 8,5 anos. Os dados constam no Anuário Brasileiro da Educação Básica 2017, elaborado pela ONG Todos pela Educação em parceria com a Editora Moderna.
Existem alternativas para tentar amenizar o problema da pouca oferta de itinerários formativos. Uma possibilidade são os municípios trabalharem em regime de consórcio, prática que já ocorre em alguns estados. A maior parte desses grupos concentra esforços na criação de políticas públicas que funcionem para a sua realidade regional. A fim de solucionar a carência dos itinerários formativos, os municípios parceiros poderiam compartilhar professores entre si ou criar um sistema logístico que viabilize o transporte de alunos para outras localidades.
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Outra saída é apostar no Ensino a Distância (EAD), embora essa medida demande alguns cuidados. “É interessante, mas deve haver atenção para que não se diminua a qualidade do ensino. Isso exige recursos e um trabalho complexo, além de um controle social nesse sentido”, explica Anna Helena Altenfelder, pedagoga e presidente do Conselho do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec).
As audiências públicas, como se vê, serão importantes para aparar arestas do projeto. No entanto, os encontros devem estar desvinculados dos debates eleitorais que irão pautar o país nos próximos meses. “O conselho terá de arregaçar as mangas e trabalhar muito para corrigir os erros que estão na BNCC”, projeta Cesar Callegari, do CNE.
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