“Se existe uma tarefa filosófica para a qual nossa era exige uma solução com urgência, é a da antropologia filosófica” escreveu Max Scheler, fenomenólogo cujo trabalho passou a ser conhecido como Personalismo. Em sua coluna de opinião no New York Times de 15 de junho de 2018 David Brooks escreveu que a filosofia personalista contém insights profundos sobre nossa atual fragmentação cultural e política.
Inicialmente, encontrei no Personalismo um meio-termo entre o individualismo radical e o coletivismo autoritário, que dominavam a política e a cultura dos séculos XIX e XX. Porém, ao entrarmos no século XXI, constatei que o Personalismo também é relevante para nossa crise educacional, que é também uma crise cultural – uma crise de amor.
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Como você responderia à questão básica da antropologia filosófica: O que significa ser humano? Como essa resposta afeta sua vida? O Personalismo não apenas me ajudou a integrar uma linguagem de amor em minha pesquisa sobre sofrimento e resiliência, como também influenciou meu trabalho como professora e orientadora. Muitos alunos não foram expostos a algumas das proposições básicas do Personalismo, como a dignidade inviolável da pessoa humana, independentemente de sua utilidade, e a ideia de que nossa singularidade representa uma incrível diversidade de pessoas que compartilham desejos universais de unidade, como criaturas feitas para amar e serem amadas.
Respondendo à pergunta
Como filosofia, o Personalismo é uma resposta específica à pergunta sobre o que significa ser humano, resposta essa que contrasta com outras derivadas do utilitarismo, do ceticismo ou do comunismo. A filosofia personalista também influenciou os movimentos de reforma social dos séculos XIX e XX, liderados por Jacques Maritain, Dorothy Day, Martin Luther King e João Paulo II; todos eles viram que a preservação da dignidade inerente a todo ser humano produz uma série de consequências para a cultura, a educação e a política.
Por ter estudado Psicologia em Yale e Sociologia em Princeton, descobri que esses dois campos do conhecimento – dedicados a entender a pessoa humana na sociedade – nunca se referiam às nossas suposições fundamentais sobre a pessoa humana. A socióloga Margaret Archer resume da seguinte maneira as visões antagônicas da pessoa humana. A partir de suposições utilitaristas, que movem grande parte da economia, fomos levados a acreditar que somos indivíduos autônomos e atomizados, que agem racional e estrategicamente para maximizar os benefícios individuais (homo economicus). Sociólogos que enfatizam o determinismo do nosso ambiente ou de uma situação específica em nosso comportamento preconizam que somos peças numa engrenagem, sem individualidade (homo sociologicus). O pós-modernismo, avassalador na literatura e em algumas ciências sociais, nos ensinou que nossas identidade e subjetividade estão mudando constantemente, sem propósito ou direção (homo inconstantus).
Em contraste, Jacques Maritain, um dos personalistas mais notáveis, descreve o Homem – a pessoa humana – como
Um animal dotado de razão, cuja suprema dignidade está no intelecto; também como indivíduo livre, em relacionamento pessoal com Deus, cuja suprema virtude consiste em obedecer voluntariamente à Lei de Deus; e, por fim, como criatura pecaminosa e ferida, chamada à vida divina e à liberdade da Graça, cuja perfeição consiste no amor.
Como escreveu Kevin Schmeising em sua história intelectual do personalismo, cerca de vinte intelectuais passaram a ser considerados “personalistas”, entre os quais Jacques Maritain, John Crosby, Emmanuel Levinas, Peter Maurin e Paul Ricoeur. Embora existam algumas distinções intelectuais importantes entre os personalistas, todos compartilham certas preocupações vitais. Como fica evidente na citação de Maritain acima, os personalistas defendem a inviolabilidade da pessoa humana, enfatizam a relacionalidade fundamental das pessoas, enxergam a pessoa como sujeito e objeto de ação livre e enfatizam a pessoa como um centro de significado e valor.
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Nem todos, mas muitos personalistas eram monoteístas. Para Maritain, convertido ao catolicismo, a questão do homem está ligada à questão do relacionamento com Deus. Embora os personalistas possam responder à questão teológica sobre a relação do homem com Deus de maneiras diversas, eles rejeitam o materialismo fundamental de grande parte da filosofia do Iluminismo. Os personalistas geralmente enfatizam que a subjetividade de uma pessoa, incluindo sua natureza espiritual, é verdadeira, e exerce força causal no mundo. Não somos apenas seres materiais; somos também seres espirituais. Nossas ações não são meras reações a estímulos ou condições ambientais. O pensamento e a ação de uma pessoa são criativos, não determinados. Temos um mundo interior em nossas almas que orienta o pensamento reflexivo sobre o significado e o propósito de estar no mundo.
O que diferencia os personalistas de outros filósofos é sua ênfase na ideia de que a pessoa humana é única e insubstituível. Essa singularidade é a razão pela qual uma pessoa humana não pode ser trocada por outra, nem pode ser usada por outra. Descrever uma pessoa em termos de utilidade implica que sua “função” poderia ser cumprida tal e qual por outro indivíduo. Para os personalistas, a diferença entre um indivíduo e uma pessoa é que um indivíduo pode ser trocado por outro indivíduo, mas a pessoa é única e insubstituível. Uma pessoa humana não é um objeto – uma coisa– , mas um alguém – um centro de significado e propósito, confluência de mente, corpo e alma.
A relevância do Personalismo
O Personalismo continua a ser relevante porque muitas pessoas não se dispõem a refletir sobre sua própria dignidade como seres humanos. Por exemplo: certa feita, depois de ensinar algumas dessas ideias em um curso sobre virtudes, felicidade e bem comum, em Yale, uma aluna me procurou após a aula e perguntou: O que é “amor incondicional”? Como é possível alcançar esse amor, se nunca o teve?
Expliquei como vivi uma vida fragmentada por muitos anos. Busquei a segurança e o status que uma formação nas melhores universidades do país deveriam me proporcionar, mas, ao mesmo tempo, procurava viver uma vida com significado, propósito e amor, por meio do serviço voluntário. Trabalhar com os mais pobres me ensinou muitas coisas que nunca aprendi em sala de aula. Uma delas é que, não importa quanto dinheiro ou bens alguém tenha ou não tenha: tenho de acreditar em meu coração que cada pessoa é digna de amor, pelo simples fato de que ela existe. Isso é amor incondicional.
Para experimentar amor incondicional, encorajei a aluna a encontrar alguma comunidade na qual ela pudesse ser voluntária e doar seu tempo e talento aos outros. Expliquei a ela:
Quando você percebe que as pessoas que você ajuda se importam mais com você como pessoa do que com aquilo que você está oferecendo, então você entenderá o que é amor incondicional: sua dignidade não é baseada em bens materiais, status ou talento, mas em sua dignidade como ser humano. Você será desafiada a abrir seu coração para permitir que eles a amem em primeiro lugar, simplesmente porque você existe e entrou em suas vidas.
Não muito depois dessa conversa, a aluna me confidenciou que sofria de depressão profunda. Ela tentou terapia e medicação, e trancou a matrícula na universidade. Após uma leve melhora, ela teve uma recaída depois de voltar para o campus. Então ela admitiu que pensava em suicídio quase todos os dias em seu quarto, em Yale.
Por enfrentar essas dificuldades, ela ficou extremamente grata pela oportunidade que eu lhe oferecia, por meio das atividades que eu propunha e das nossas conversas, para tentar pensar mais sobre o que a impedia de ser feliz.
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Certo dia, enquanto almoçávamos no refeitório, fiz uma lista de todos os recursos disponíveis em Yale para ajudá-la, tais como os serviços de saúde mental para terapia ou medicação, e a própria Reitoria para aconselhamento acadêmico, e também fiz uma lista de prós e contras um trancamento temporário da matrícula, dadas suas limitações. Mas eu também sabia que ela queria mais do que conselhos – ela queria ser minha amiga. Eu confidenciei a ela que, apesar de estar aparentemente feliz e realizada, passei por momentos muito sombrios, os quais tive medo de nunca superar. Durante esses tempos difíceis, aprendi que minha autossuficiência era uma ilusão, e me tornei mais aberta a receber o amor dos outros. Meus problemas não desapareceram, mas minha perspectiva foi transformada através da experiência do amor incondicional.
Agradeci a aluna por confiar em mim e disse a ela que estava realmente preocupada. Assegurei que estava disposta a ouvir ou tentar ajudá-la da maneira que fosse necessária. Então me baseei na filosofia personalista, e em minha própria experiência, para lhe dizer o que eu realmente acreditava que ela mais precisava ouvir:
Mesmo que você não consiga perceber isso agora, sua vida tem significado e propósito simplesmente porque você existe. Mesmo que você nunca supere totalmente sua depressão, acredito que, aos poucos, você compreenderá que pertence a esse mundo, e que é amada incondicionalmente.
Essa aluna podia estar passando por uma crise de saúde mental, mas também sofria uma crise de amor. Em sua formação acadêmica, ela estava buscando ajuda para guiá-la no aprendizado do amor. Ela concordou que nossa singularidade como seres humanos é a fonte de valor infinito. Pouco tempo depois, ela se tornou voluntária num grupo de teatro infantil.
Para os personalistas, parte do nosso desenvolvimento pessoal é doar livremente nós mesmos ao outro. Mas fazer um presente de si mesmo para o outro requer abraçar nossa própria liberdade, antes de mais nada. Ao doar-se aos outros de forma não-utilitária, oferecendo-se livremente, essa aluna encontrou o contentamento que estava procurando.
Não é preciso ser perfeito para doar si mesmo livremente. Nessa perspectiva, vale a pena enfatizar: ser física ou mentalmente doente não diminui nossa dignidade inerente, ou nossa capacidade de amar. Nosso currículo não é a medida da nossa dignidade. O valor de uma pessoa é sempre distinto de sua utilidade. O valor de alguém no mercado, ou seu estado de saúde, nunca pode ser a sua medida como pessoa.
Uma educação no amor
Ler alguns textos clássicos do Personalismo nos ajuda a tomar consciência das suposições que fazemos sobre a pessoa humana. Comecei minha jornada rumo ao Personalismo com a leitura do livro de Jacques Maritain Humanismo Integral e até mesmo preparei um curso de verão para ensinar suas ideias – e as de outros grandes pensadores – sobre a crise da modernidade.
Mas também é importante refletirmos sobre as suposições que guiam nossas próprias vidas. Como as ideias que encontramos na antropologia filosófica se relacionam com as preocupações e lutas de nosso tempo, com nosso lugar e nossa vocação em particular?
Passei dez anos estudando e treze anos atuando como pesquisadora, professora e mentora em universidades de elite – Yale, Princeton, Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill, e agora no Princeton Theological Seminary. A proximidade com os alunos me ensinou algo que minhas experiências acadêmicas não ensinaram (pelo menos até eu descobrir o Personalismo): o amor deve permear todos os aspectos da cultura e da política. Porque, se a finalidade da educação é o desenvolvimento da pessoa como um todo, o amor também deve estar no centro da educação.
Muitos alunos de alto desempenho não acreditam em sua dignidade e grandeza como seres humanos. Eles nunca tiveram orientadores acadêmicos que também estivessem dispostos a explorar seus mais profundos anseios por amor, significado e propósito.
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Os alunos estão à procura de mestres que sejam brilhantes, mas também abertos para receber seu amor, apreciar seus talentos, respeitar sua liberdade e compartilhar suas próprias jornadas. Eles precisam de guias sábios e amorosos, com os quais possam conversar sobre coisas que nunca constarão em seu currículo, mas que podem ser fundamentais em sua história de vida – suas dúvidas, medos e desejos. Reconhecer nossa própria vulnerabilidade – e humildade – é um ponto de abertura importante para discutirmos, com nossos alunos, o que significa ser humano. Encorajo meus alunos a serem ousados, a fazer perguntas sobre a humanidade e a lutar pela grandeza, ao mesmo tempo em que reconhecem humildemente as limitações de nossos corpos, espíritos e mentes.
Devemos celebrar nossa singularidade como seres humanos, que produz uma diversidade maravilhosa, e reconhecer aquilo que compartilhamos universalmente: o desejo de amar e ser amado, de ser tratado como sujeito e não como objeto; de nunca ser usado como meio aos fins de outra pessoa; e oferecer amorosamente os nossos dons ao bem comum, sem perder nossa liberdade e individualidade.
Nenhum estudioso, cidadão, pai, educador – ninguém em absoluto – deve viver uma vida sem perguntar: quem somos nós, enquanto humanos? Quer reconheçamos ou não, nosso sistema econômico, político e educacional bem como nossos próprios compromissos e hábitos pessoais respondem essa pergunta. Se trabalharmos juntos para respondê-la, poderemos desenvolver a sabedoria prática de que todos nós precisamos para curar nossas próprias feridas e divisões sociais.
Margarita A. Mooney é Professora Associada de Estudos Congregacionais no Seminário de Teologia de Princeton. Ela também é diretora executiva da Fundação Scala. Você pode encontrar mais artigos da autora em seu site, margaritamooney.com . Acompanhe o trabalho de Mooney no Twitter (@margaritamooney ) e Instagram (margaritamooney).
©2018 Public Discourse. Publicado com permissão. Original em inglês.
Tradução: Ana Peregrino
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